1994: Romário à solta na América

O 'Baixinho' liderou o escrete nos Estados Unidos, na sequência de uma época arrasadora no Barcelona
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A política voltou a ter uma palavra forte. Começou com a atribuição da organização a uns Estados Unidos que já nem campeonato tinham desde 1984, uma decisão que se revelou sensacional. Bateram-se recordes de espetadores nas bancadas (total de 3.587.538 milhões e média de 68.991 mil por jogo) e houve bom futebol, sobretudo nos pés e corpo traquina de Romário, que liderou o Brasil rumo ao tetra (numa final muito fechada, a contrariar a tendência do torneio, o escrete bateu novamente a Itália, tal como 24 anos antes no México, mas agora nos penáltis). A Bulgária, a Suécia e a Roménia jogaram muito.

Numa edição em que pela primeira vez as vitórias valiam três pontos e os guarda-redes não podiam agarrar a bola atrasada com as pernas pelos colegas, já se viu muito da geopolítica atual. A Alemanha tinha-se unificado, a Rússia saía dos escombros da URSS e dizia presente, já a Checoslováquia desintegrara-se em 1992 e falhara a qualificação como "Representação de Checos e Eslovacos", enquanto a Jugoslávia estava suspensa devido à guerra na Bósnia. Seleções que entraram no léxico moderno do jogo, como Grécia, Nigéria e Arábia Saudita, estrearam-se na prova.

Foi também a triste despedida de Diego Armando Maradona, que acusou efedrina num controlo antidoping após ter marcado frente à Grécia (4-0) num livre de raiva. Foi-se embora um dos maiores do futebol.

A Itália foi a Itália. Com um predestinado como Roberto Baggio (cinco golos), sobressaíram jogadores defensivos como Baresi (ainda que limitado por uma operação recente a um joelho) e Paolo Maldini, que dava sequência à saga da família (o pai Cesare atuou no Mundial 1962).

Mas foi Romário que andou à solta na América. O baixinho tinha tido uma época arrasadora no Barcelona (goleador da Liga, com 30 golos, à frente de Davor Suker, 24, que haveria de ter o seu lugar nos mundiais). Aliás, a Liga espanhola já dava cartas: os melhores marcadores do Mundial 1994 jogavam lá; casos de Bebeto, 16 golos pelo Deportivo, Hristo Stoichkov, 16 pelo Barcelona, e Oleg Salenko, 16 pelo Logroñes - e que seria, em igualdade com o búlgaro do Barça, o melhor marcador do mundial, com seis golos (todos na primeira fase, em que a Rússia foi eliminada, com um recorde de cinco num só jogo, frente aos Camarões). Destaque ainda para o golo marcado pelo camaronês Roger Milla frente à Rússia, que lhe garante o estatuto do mais velho jogador a marcar num mundial (aos 42 anos).

E se Romário tinha sido ignorado pelo escrete no ano anterior, nos EUA, Romário marcou em cinco dos sete jogos (em branco apenas nos oitavos e na final) e partiu os rins de todas as latitudes.

Este era um Brasil que preparava o próximo jogador de topo mundial (Ronaldo, o fenómeno, tinha 17 anos e não saiu do banco) e que tinha jogadores com ligações a Portugal, casos de Branco (FC Porto, 88/91), Aldair (Benfica, 89/90) e Ricardo Rocha (passagem breve pelo Sporting em 1988).

Despedida de Preud'homme

Entre as seleções que melhor jogaram, estava a Roménia era liderada pelo "Maradona dos Cárpatos", Gheorghe Hagi, mas também tinha Popescu, Petrescu ou Raducioiu (eliminaram nos oitavos-de-final a Argentina de Redondo, Caniggia, Batistuta, Diego Simeone e Ariel Ortega - e já sem Maradona desde 1 de julho e antes do último encontro da fase de grupos). A Suécia de Schwars (saiu neste verão do Benfica), do capitão Thern (Benfica, 89/92), do guarda-redes suplente Lars Eriksson (FC Porto, 95/98) e de Henrik Larssen, Thomas Ravelli, Dahlin e Brolin. Na Bulgária, brilhava Stoichkov, e também Kostadinov (fechava um ciclo de quatro épocas no FC Porto), Balakov (91/95), Yordanov (Sporting, 91/2001), Mikhailov (Belenenses, 89/91), contando ainda com Boncho Genchev (Sporting, 91/92), Petar Mitharski (FC Porto, 91/94). Nota ainda para a segunda e última participação de Michel Preud"homme em mundiais pela Bélgica (caiu nos oitavos frente à Alemanha, 2-3), considerado o melhor guarda-redes do torneio e que se mudou nesse verão para o Benfica, terminando na Luz a carreira cinco anos depois. Um dos seus suplentes era Filip De Wilde, que mais tarde representaria o Sporting (96/98).

Apesar de ser um mundial em que dava muita importância aos trincos (Mauro Silva e Dunga, no Brasil; Roberto Baggio e Demetrio Albertini, na Itália; Popescu, na Roménia; etc.), foi um salto para a humanidade a melhoria do futebol em relação ao Itália 90.

No Brasil, a companhia de Bebeto no ataque fazia bem a Romário, na Itália, mais defensiva (e que, após o Espanha 1982, voltou a passar a fase de grupos devido à diferença de golos), o génio de Roberto Baggio dava-lhe uma imagem artística que impedia a equipa de ficar confinada a ser apenas uma grande defesa. Itália que tinha afastado Portugal do EUA 1994, batendo a equipa de Carlos Queiroz em San Siro no último encontro do apuramento (os lusos tinham de ganhar). "É preciso varrer a porcaria que há na federação portuguesa. Há muita coisa para mudar", desabafou minutos depois do jogo um irritado selecionador.

Morte de Escobar

Referência ainda à Colômbia de Valderrama, Rincón e Asprilla: Andrés Escobar foi assassinado a 2 de julho. Na altura e por muitos anos (inclusive hoje), acredita-se que a razão tenha sido o auto-golo frente aos Estados Unidos que impossibilitou o apuramento dos colombianos para a segunda fase, mas o treinador de então, Francisco Maturana, argumentaria a morte de Escobar nada tinha a ver com futebol. "Estava no lugar errado à hora errada", defendeu, referindo-se ao clima de grande violência que então assolava o país.

No caminho para a final, o Brasil desembaraçou-se dos Estados Unidos (1-0, Bebeto) nos oitavos, Holanda nos quartos (3-2, golos de Romário, Bebeto e Branco; Bergkamp e Winter) e Suécia nas meias-finais (1-0, Romário). Já a Itália enfrentou um caminho teoricamente mais duro, batendo a Nigéria (2-1, bis de Roberto Baggio após prolongamento), a Espanha (2-1, golos de Dino Baggio e Roberto Baggio; e Caminero), e a Bulgária (2-1, bis de Roberto Baggio; penálti de Stoichkov).

No jogo em que estava em causa o 3.º posto, a Suécia arrasou a Bulgária, por 4-0, com golos de Brolin, Mild, Larsson e Keneth Andersson, que chegou aos cinco golos na prova).

A final não foi muito aberta, mas os guarda-redes Taffarel e Pagliuca acabaram por ser fundamentais para manter tudo a zeros até ao final do prolongamento. Nos penáltis, os deuses do futebol castigaram um dos mais dotados: a faltar um penálti para cada lado, Roberto Baggio atirou para o céu azul da Califórnia, quase fazendo a bola sair do lotado Rose Bowl (94.194 mil pessoas). E o Brasil era tetra: fugia aos tricampeões RFA/agora Alemanha e Itália, deixando mais longe Uruguai e Argentina e distanciando-se da Inglaterra (1966).

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