1820, 1834, 1910, 1974
As quatro datas que encimam esta crónica representam momentos fundamentais da História Portuguesa, relativamente ao constitucionalismo e à conceção democrática liberal da vida política e da cidadania. Num momento em que vivemos na Europa uma estranha guerra em que está em causa a soberania dos povos e a tentativa de um tirano tornar letra morta regras essenciais do direito e da paz, devemos tirar as lições da história política, pela afirmação da democracia como sistema de valores centrados na dignidade humana e nos direitos fundamentais da pessoa humana, e não como um modo de organização das sociedades. Ao contrário do que alguns proclamam, as democracias iliberais são grotescas contradições nos seus termos. O elemento liberal corresponde ao reconhecimento da liberdade das pessoas, como pedra angular da vida em sociedade. Não é o mercado que tudo comanda, mas sim a salvaguarda do bem comum pelo reconhecimento da autonomia individual. A liberdade económica é uma consequência da cidadania inclusiva e apenas faz sentido se as diferentes gerações dos direitos humanos forem escrupulosamente respeitadas - direitos individuais, direitos sociais económicos e culturais, direito ao desenvolvimento humano e à sustentabilidade. E na presente circunstância é o Direito da Paz e o Estado social de direito, centrados no primado da lei, na legitimidade do voto, na legitimidade do exercício e no respeito da justiça, que têm de ser arduamente defendidos. E temos de afirmar que muito do que assistimos é, tantas vezes, um grave atropelo dos mais elementares direitos, desde os juízos na praça pública sem a possibilidade de defesa até aos crimes contra a humanidade que os últimos dias têm revelado. Como poderemos pôr em causa o primado da lei e da justiça?
Há pouco, Portugal ultrapassou os 17500 dias de democracia, depois de 25 de abril de 1974, marco correspondente ao tempo da ditadura. Ao lembrarmos as datas que nos últimos dois séculos correspondem à defesa do constitucionalismo liberal, pomos a tónica na necessidade de cuidar da democracia como permanente atenção à responsabilidade e à participação, como cidadania ativa, como respeito mútuo e defesa dos valores éticos. Em 1820 e na primeira Constituição de 1822 o absolutismo cedeu lugar à soberania dos cidadãos e à separação, interdependência e limitação dos poderes. Depois da guerra civil, a causa de D. Pedro e de D. Maria da Glória viu reconhecida a vitória da liberdade em Évora Monte e a Carta Constitucional de 1826 pôde renovar o caminho para o constitucionalismo, com a Constituição de 1838 ou com o Ato Adicional à Carta de 1852, que permitiram à Regeneração modernizar o País, aproximá-lo da Europa e pôr a tónica no primado da lei e na liberdade de opinião, sendo a proibição das Conferências do Casino de 1871 uma singular exceção.
E o republicanismo, de que foi símbolo a "Renascença Portuguesa", representou a procura de um novo alento para os valores democráticos. E, após a ditadura, ao chegarmos a 25 de abril de 1974, tratou-se do renascer a democracia em toda a sua vitalidade na Europa e no concerto das nações - tarefa que nunca poderemos considerar terminada ou completa. Em 1820, com todas as vicissitudes conhecidas, renovou-se a tradição portuguesa, a um tempo fiel ao espírito de independência de D. Afonso Henriques e de D. Dinis, e à audácia de 1383-1385 e da Ínclita Geração e dos Altos Infantes, mas também às tradições do povo e à expansão da língua portuguesa em todos os continentes. A democracia e o constitucionalismo não são obra do acaso, mas de trabalho e de grandes responsabilidades. E a imperfeição natural da democracia obriga-nos à atenção e ao cuidado permanentes. Longe de um otimismo fácil, precisamos de muita determinação, para podermos superar os erros, as incertezas e as resistências.
Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian