Não será a memória mais fresca que teremos dos mandatos de Bill Clinton, mas vale a pena recordar que nesses oito anos os EUA lideraram nove intervenções militares: Somália (1993), Iraque (1993, 1996, 1998), Haiti (1994), Bósnia (1995), Iraque, Afeganistão, Sudão (1998) e Kosovo (1999). É certo que umas com mais enquadramento legal do que outras, algumas com menos aliados do que o desejável, todas com epílogos distintos, mas sempre de acordo com o cardápio que definiu a doutrina Clinton: punir ditadores, mudar regimes, travar limpezas étnicas, mostrar músculo militar, vincar o estatuto de "nação indispensável", contornar os vetos de terceiros no Conselho de Segurança e confirmar o triunfalismo ocidental vencedor da Guerra Fria. No essencial, este menu foi continuado nos anos de George W. Bush, com três nuances que fizeram toda a diferença..A primeira diz respeito ao nível de qualidade política dessa afirmação americana, o qual se traduziu num menosprezo pelas alianças tradicionais nos anos de Bush (sobretudo no primeiro mandato) e por uma roupagem mais atrativa na forma como Clinton "vendia" a unipolaridade e até o unilateralismo americano. No fundo, a grande estratégia do "alargamento democrático" (a expressão é de Anthony Lake) tinha um charme diferente na década de 1990 que já não carregava nos anos seguintes ao 11 de Setembro de 2001..A segunda nuance entra precisamente com esta data, um marco que não tendo alterado a estrutura de poder internacional, como os choques tectónicos de 1945 ou 1989, expôs os limites do poder americano e conduziu a uma resposta rápida, hipermusculada e errática. E foi precisamente a gestão calamitosa das decisões tomadas sob o efeito dos ataques de 11 de Setembro (sobretudo a de invadir o Iraque) que acabou por definir os restantes anos de Bush e condicionar totalmente Obama, injustificando (financeira, politica e militarmente) qualquer opção semelhante num horizonte temporal alargado. Já para não falar nos efeitos provocados no Médio Oriente, na coesão ocidental e nos meios ao dispor para limitar os danos da crise de 2008-2009..A terceira nuance reforça o 11 de Setembro como data-gatilho na transformação dos tais eixos da doutrina Clinton numa agenda Bush tão revolucionária como perigosa. Senão, vejamos. Bush apresenta-se a eleições em 2000 com uma agenda externa restritiva quanto a intervenções militares e contrária a permanências de longa duração. Al Gore era o "falcão" da campanha e o fiel depositário da estratégia clintoniana que, aliás, havia aprovado em 1998 no Congresso uma política oficial de mudança de regime para o Iraque (Iraq Liberation Act): o Senado aprovou-a por unanimidade e só 38 representantes votaram contra na respetiva câmara. Quando Bush retomou o dossiê Iraque e tomou a decisão política de derrubar Saddam em dezembro de 2001 sabia que tinha uma ampla base legal no Congresso para o fazer. O que lhe faltava era "pintar" a ameaça de tal forma que gerasse consenso popular interno e um lastro de seguidores internacionais capazes de validar uma agenda de resposta múltipla num clima de choque e pavor. O seu problema foi, porém, duplo: a mentira teve perna curta e a incompetência em pós-guerras visível no modo e no espaço. Quinze anos depois, o modo e o espaço estão a fazer ricochete contra Washington e, ainda mais grave, contra a ordem liberal por si encabeçada..Nos EUA, o debate radicalizou-se a um nível capaz de poder eleger Donald Trump para a Casa Branca. Foram expostas novas fraturas sociais, étnicas e a agressividade discursiva atingiu níveis indignos em democracia. Na Europa, as tensões institucionais e políticas estão a tornar irrespirável a convivência entre Estados, entretanto rodeados por frentes de insegurança (russa, mediterrânica, xenófoba) para as quais não têm respostas à altura. Se o 11 de Setembro foi um momento de comoção transatlântica, 15 anos depois essa solidariedade pode vir a assentar num eixo inimaginável entre Trump e Putin, com Le Pen no meio. Se o 11 de Setembro não foi capaz de implodir a ordem liberal fundada em 1945 e reforçada a partir de 1989, 15 anos depois essa ordem está em xeque pela simples razão que para ser liberal tem de estar estruturada em democracias liberais. E como o protecionismo económico é a antecâmara do retrocesso democrático e a vaga que o defende está a ganhar os vários debates no Ocidente, 15 anos depois estamos mais vulneráveis ao terror à medida que formos menos livres, menos democráticos e menos conscientes dos nossos valores. O respeito por eles é a melhor forma de os tornar atrativos, de os expandir sem recorrer à força, de os preservar sem perder terreno para o autoritarismo. É isto que, 15 anos depois, está em cima da mesa.