Nas primeiras horas da madrugada de 12 de outubro de 1995, o bispo Sérgio von Helder entrou nos estúdios da TV Record, controlada pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), para mais uma edição do programa religioso Despertar da Fé..Os telespetadores do programa estavam habituados ao estilo espalhafatoso do bispo mas não ao ponto de assistir ao que viram naquela manhã de há exatos 25 anos: Helder pontapeou e socou, sem dó nem piedade, uma imagem de Nossa Senhora de Aparecida, a padroeira do Brasil, cujo dia se festejava, com direito a feriado nacional e romaria de centenas de milhares de brasileiros ao seu santuário, precisamente naquela quinta-feira.."Nós estamos mostrando às pessoas que isso aqui não funciona, isso aqui não é santo coisa nenhuma, custa 500 reais no supermercado e tem gente que compra. Agora se você quiser uma santa mais barata, você encontra até por cem reais. Será que Deus, o criador do universo, pode ser comparado a um boneco desses, tão feio, tão horrível, tão desgraçado?", exclamava Helder, enquanto chutava uma imagem sagrada para a maioritária população católica do Brasil..Veja aqui o vídeo:.YouTubeyoutube-3gpqwec9Q0.Em ascensão mediática no Brasil por aqueles anos, conforme escreve o jornalista especializado em religião Gilberto Nascimento no livro O Reino, a IURD tentava, via Helder, sublinhar um dos traços mais distintivos entre a Igreja Católica, que faz adoração a santos e imagens, e a fé protestante, que os ignora..Logo naquele dia, o já extinto jornal Folha da Tarde publicou nas suas páginas uma imagem do vídeo. Horas depois, o caso tornou-se abertura do Jornal Nacional, principal noticiário da TV Globo, então no auge de uma batalha com a concorrente TV Record por causa da exibição da minissérie Decadência, cujo protagonista, Mariel Batista (interpretado por Edson Celulari), era alegadamente inspirado em Edir Macedo, dono do canal e líder da IURD..Apelidado de "Chute na Santa", o escândalo dominou a imprensa nos meses seguintes e invadiu esquadras de polícia e salas de tribunais em forma de queixas-crime e processos de católicos - e até de evangélicos fiéis a denominações concorrentes da IURD - contra Helder..Na sequência de um desabafo de Dom Eugênio de Araújo Salles, o arcebispo do Rio de Janeiro, segundo o qual havia "risco de guerra santa se as emoções não forem controladas", o próprio Papa João Paulo II sentiu-se obrigado a intervir, pedindo aos católicos para "não responderem ao mal praticando o mal"..O Congresso Nacional e o poder executivo também reagiram. "O Brasil é um país democrático conhecido pela sua tolerância", pontuou Fernando Henrique Cardoso, eleito um ano antes presidente da República. "Qualquer manifestação de intolerância prejudica o espírito de união e o espírito cristão do país.".O caso não passou indiferente ao mundo da cultura: Guerra Santa seria o título de uma música de Gilberto Gil lançada dois anos depois em referência ao "chute"..Em Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil, o cientista social Ricardo Mariano descreve o incidente como algo que "causou comoção nacional", adquirindo, com efeito, "ares de guerra santa"..Edir Macedo, lembra o autor, começou por reagir na defensiva, ao classificar de "impensada, insensata, inconsequente e desastrosa" a atitude de Helder. Na sequência, afastou-o das suas funções e exilou-o nos EUA; Ronaldo Didini, estrela da TV Record que havia defendido publicamente Helder, também acabou deportado pela cúpula da IURD para a África do Sul..Mais tarde, no entanto, alegando que templos da IURD haviam sido alvo de atentados, apedrejamentos, incêndios e ameaças de bomba, Macedo vitimizou-se, classificando esses ataques como "fúria do diabo" e acusando a TV Globo de instituir o tal "clima de guerra santa" que se viveu.."Ele [Helder] agiu como um menino e a TV Globo me transformou num monstro", disse o líder da IURD em entrevista. "A investigação é produto de inquisição contra o meu cliente", resumiu, na sequência, o seu advogado e futuro ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos..Para Flávio Sofiati, especialista em sociologia da religião da Universidade Federal de Goiás, falar-se em "guerra santa" é exagerado. "Apesar da comoção entre católicos e neopentecostais, de o assunto ter chegado ao Congresso e às lideranças clericais, inclusivamente ao Papa, não chegou a haver uma 'guerra santa', porque o Brasil é tradicionalmente pacifista nesse aspeto religioso e porque a IURD foi hábil a defender-se", contextualiza o pesquisador em conversa com o DN..Christina Vital, pesquisadora da Universidade Federal Fluminense e autora de Religião e Política: Medos Sociais, Extremismo Religioso e as Eleições de 2014, concorda que esse dia, no entanto, é "um marco". "Foi um episódio muito importante no contexto social e político, foi um marco que trouxe para o debate a questão da intolerância religiosa e retomou o debate da questão da laicidade do Estado", diz em conversa com o DN.."Um chute numa imagem de Nossa Senhora de Aparecida, num feriado nacional, dia da santa padroeira do Brasil, anunciou diferentes camadas de contestação, sobretudo aos católicos que têm adoração a símbolos religiosos", continua.."O dia 12 de outubro é tão importante no Brasil", regista entretanto Sofiati, "que, além de dia de Nossa Senhora de Aparecida, padroeira do país desde o governo de Getúlio Vargas nos anos 1930, é ainda o Dia da Criança.".A imagem da padroeira do Brasil apareceu no fundo do mar a 12 de outubro de 1717. Num relato que lembra o milagre bíblico da multiplicação dos peixes, três pescadores, Filipe Pedroso, Domingos Garcia e João Alves, lançaram-se ao rio Paraíba a fim de pescar o jantar de homenagem ao conde de Assumar, nomeado pela coroa portuguesa como terceiro governador da Capitania de São Paulo e Minas de Ouro, de visita por aqueles dias à cidade de Guaratinguetá..Lançada a rede, em vez de peixes surgiu o corpo, sem a cabeça, de uma imagem de terracota de Nossa Senhora da Conceição. Lançada a rede novamente, veio a cabeça. A partir daí, apesar de ser época baixa no Paraíba, a pescaria foi de tal ordem que quase afundou o barco com o peso..Há relatos históricos, míticos, além de milhares de casos anónimos, de outros milagres atribuídos à santa desde então no Brasil e no mundo..O Santuário de Nossa Senhora de Aparecida, no estado de São Paulo, é o maior templo mariano mundial, à frente do de Guadalupe (México), do de Lourdes (França) e do de Fátima (Portugal) e a segunda maior basílica do mundo, depois da de São Pedro, no Vaticano..A dez cidades do Brasil foi atribuído o nome de Aparecida, em homenagem à original, há 149 igrejas e 570 paróquias aludindo à santa e 304 302 brasileiras chamam-se Aparecida, o que coloca o nome em 41.º lugar de um ranking liderado, com quase 12 milhões de brasileiras, por Maria - entre estas há ainda largos milhares de Marias Aparecidas..Para Christina Vital, "foi a partir desse episódio de 1995 que se revelou melhor a dimensão da violência religiosa no Brasil: até então havia a ideia de que havia uma pluralidade democrática, um respeito harmonioso entre todas as religiões". "O episódio serviu ainda para trazer à tona episódios de vilipêndio e preconceito contra religiões de matriz afro-brasileira que, já desde os anos 1970, vinham sendo denunciados", acrescenta.."Nomeadamente em relação aos evangélicos", a pesquisadora lembra que "eles representavam 6% da população brasileira na década de 1980, 9% na de 1990, 15% na de 2000, 22% na de 2010, segundo números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, e 31% em 2020, de acordo com o Instituto Datafolha-" "Ou seja, eles foram crescendo em número e também em espaço cultural, social e político no Brasil.".Segundo Christina, "o episódio revela ainda, além da intolerância, também a competição explícita entre a IURD e a Igreja Católica". "A IURD não compete com as outras igrejas evangélicas, ela pretende rivalizar com a Igreja Católica para disputar a hegemonia no Brasil.".Flávio Sofiati acredita que a intervenção no espaço mediático é, por isso, importante para a igreja de Edir Macedo. "Se nenhuma polémica da IURD foi tão complicada quanto aquela, por atacar uma das santas mais cultuadas do Brasil e por ter mobilizado na sequência a comunidade católica, convém registar que, de tempos a tempos, a Universal se envolve em polémicas, a última foi a questão dos Gladiadores do Altar, grupo de jovens da igreja que misturavam educação religiosa com educação militar.".É uma "disputa de mercado", destaca o sociólogo. "No fundo, o catolicismo popular está tão instituído no Brasil que católicos carismáticos e neopentecostais têm muitas similaridades e por isso os evangélicos têm de se esforçar muito para se distinguirem dos católicos e disputarem o mercado cristão, nesse esforço de diferenciação, entra a questão da adoração aos santos, por isso o caso do 'chute na santa' que foi sobretudo um caso mediático, para tentar dizer 'nós IURD somos muito diferentes dos católicos' ao mercado religioso.".Há dois anos, quando se passavam 23 sobre a data do "chute na santa", o bispo Sérgio von Helder voltou a criar comoção num estúdio - não televisivo mas da rede social Facebook, onde mantém uma concorrida página a partir da cidade de Jefferson, Georgia, nos EUA. O religioso prega num seminário chamado "Um Chute na Idolatria"..Em plena campanha para a segunda volta das eleições presidenciais pediu, exaltado, o voto em Jair Bolsonaro, então no Partido Social Liberal (PSL), contra Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores (PT). "Porque nós estamos numa situação em que o diabo quer imperar no Brasil através do PT. As pessoas estão crendo no diabo através do PT. O Bolsonaro sozinho está revolucionando o mundo", afirmou o bispo..Sobre Haddad disse que "esse safado, canalha, desgraçado está se fazendo de cristão"..Segundo as sondagens, a maioria do segmento evangélico apoiou a eleição de Bolsonaro. Edir Macedo rezou pelo presidente em culto com a sua presença, ajoelhado..O DN tentou entrar em contacto com Helder através da sua página de Facebook mas não obteve resposta.