"12 anos depois, o Luís Miguel já se veste sozinho, demora duas horas, mas veste-se"
"Ninguém está preparado para ver o filho, que era cheio de vida e tinha mil e um projetos em diversas áreas, numa cama de hospital, em coma e sem prognóstico. Ninguém prepara um pai, uma mãe, um filho ou um amigo para um cenário fúnebre em vida. No meu caso, ver o meu filho em coma, numa sala de hospital onde estão mais sete ou oito traumatizados em fila, sem o poder ver a não ser através de um vidro foi um choque terrível. Um dia fui visitá-lo e reparei que o doente da cama ao lado já lá não estava, perguntei porquê e disseram-me que tinha apanhado uma infeção e morrido. Eu fiquei sem chão e pensei, e se o mesmo acontecer ao Luís Miguel?" Esta foi a experiência de Godinho Lopes, ex-presidente do Sporting, que em 2006 viu um dos filhos, Luís Miguel, então com 29 anos - agora com 41- cair do cavalo durante um jogo de horseball , na Beloura (Cascais), e sofrer um traumatismo crânio-encefálico.
Primeiro ficou "feliz por ele estar vivo", depois foi "atropelado pelo desespero e a frustração de não saber o que fazer, a quem recorrer ou como aguentar tudo e ter força para não o deixar ficar inválido para a vida". Durante o processo de aceitação da nova condição de vida do filho, as perguntas eram mais dos que as respostas e levaram-me a embarcar numa luta que levaria três anos, até colocar em prática a Novamente, uma associação sem fins lucrativos, com o objetivo de ajudar os acidentados a regressar de novo à vida - daí surge o nome Novamente.
Criada em fevereiro de 2010, por pais como Godinho Lopes, médicos e amigos de pessoas com traumatismos crânio encefálicos (TCE), a associação tem como objetivo apoiar as vítimas e os cuidadores.
Aceitar a fatalidade e ser pró-ativo
Todos os traumatizados graves ficam com sequelas para a vida, umas são invisíveis outras não e fazem-nos ser dependentes de terceiros para sempre. Começa tudo de novo na vida do acidentado e da família, às quais tem de se adaptar (ver entrevista)."Claro que houve momentos de revolta", mas o ex-líder do Sporting, que se diz "uma pessoa positiva e de fé", preferiu "acreditar que o acidente não era o fim, mas o princípio de uma nova vida".
Godinho Lopes teve de "aceitar que a recuperação não ia levar meses, mas sim anos"! No caso do Luís Miguel, foram precisos 12 anos e a ajuda de dezenas de profissionais: "Começou a ter explicações de matemática, por exemplo, para desenvolver raciocínios mais lógicos, para ele cinco euros ainda são mil escudos, o raciocínio dele não concretizou a mudança. Mas continua a fazer hipoterapia, hidroterapia ou psicoterapia, para recuperar aspetos quer de origem motora quer cognitiva e psicológica."
Hoje, é com "uma imensa alegria" que vê o filho recuperar alguma mobilidade e começar a ter alguma autonomia. "Coisas simples como cortar as unhas ou comer ainda são um desafio, mas já anda de comboio e veste-se sozinho, demora duas horas, mas veste-se ", contou o antigo presidente do Sporting, que é também pai de Mónica e Nuno, fruto igualmente do seu primeiro casamento, com Maria Lucília Ribeiro, e de Vasco e Pedro, do atual casamento, com Maria João Godinho Lopes.
Aliás, segundo ele, uma das coisas essenciais no processo "é a família não se anular nem deixar de viver". E também eles, a quem dão o nome de cuidadores, precisam de ajuda e apoio: "Por vezes até as famílias que os amam aguentam a indiferença, as alterações de humor, a rispidez, as mudanças de atitude e opinião repentinas ficam saturadas. Coisas simples como perder o olfato, a visão, a sensibilidade, tudo depende do lado e pedaço do cérebro que é afetado."
O drama de 6000 mil famílias/ano
Luís Godinho Lopes viveu assim diariamente, nos últimos 12 anos o drama que afeta cerca de seis mil famílias por ano em Portugal, sendo que, desses, 600 morrem em fase de coma. Ou seja, 10% não sobrevive às primeiras horas. Ele e o filho tiveram de lutar contra as probabilidades. "Sem informação que respondesse às dúvidas que tinha o primeiro recurso foi procurar informação na Internet e as notícias não eram boas. Um estudo americano dizia que a média de vida de um traumatizado cranioencefálico era de 29 anos e o Luís tinha 29 anos... Outro estudo da Organização Mundial de Saúde referia que o traumatismo crânio-encefálico é a maior causa de morte e incapacidade em jovens adultos de todo o mundo, sendo considerado como a epidemia silenciosa. O panorama não era animador", desabafou o engenheiro, que presidente à Novamente.
Mas Godinho agarrou-se às poucas probabilidades que tinha e foi-se mentalizando que o Luís Miguel nunca mais seria o mesmo jovem inteligente e cheio de vida, que adorava cavalos, teatro e o Benfica."Nestes casos todos os dias há uma evolução e é preciso encontrar soluções que nos permitam acreditar no futuro", disse o ex-presidente do Sporting, que lutou contra a reforma por invalidez do filho aos 29 anos. Mas a verdade é que hoje o Luís é reformado por invalidez e recebe cerca de 280 euros.
Só 19% regressa à sua atividade
A ideia é que Luís Miguel regresse ao mundo do trabalho. Já fez uma tentativa, mas não foi bem sucedido, o que não significa que não vá voltar a tentar, segundo o pai. Certo é que segundo um estudo realizado pela Associação Novamente, seis em cada dez vítimas de traumatismo crânio-encefálico graves estavam desempregadas ou reformadas um ano após o acidente. A maioria acaba por ter uma ocupação (trabalhadores ou estudantes), no entanto, apenas 19% volta à sua atividade. O que não significa que seja sem limitações ou que voltem a desempenhar as mesmas funções e trabalhem as mesmas horas. Dados reveladores da grande dificuldade de reinserção e socialização da generalidade de pessoas que sofreram dano cerebral.
Números que não espantam Godinho Lopes, "consciente" de que a "sociedade ainda não está preparada" para lidar com estes casos, além de que ainda "existe resposta deficiente na reintegração social e profissional destas pessoas". Até pela dificuldade de elaboração de um projeto de vida adequado às sequelas pós-trauma.
Por isso a associação reúne todos os anos uma mesa redonda na Fundação Calouste Gulbenkian, com a presença da Direção Geral de Saúde, da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade e do Instituto da Segurança Social, na tentativa de sensibilizar as várias entidades da mais valia de uma resposta integrada.
"Descobrimos ao longo do processo que as decisões de qualquer entidade devem ser tomadas em conjunto, caso contrário corre-se o risco da decisão não ser correta", defendeu, lembrando que a associação já tem protocolos assinados com os principais hospitais de Lisboa, Porto e Braga, onde as assistentes sociais já informam e encaminham os familiares para a Novamente.
(artigo originalmente publicado a 23 de fevereiro)