110 ANOS A MORDER PESCOÇOS

Publicado a
Atualizado a

Se o irlandês Bram Stoker não tivesse escrito Drácula, publicado faz agora 110 anos, pertenceria hoje ao clube dos autores esquecidos, porque mais nenhum dos seus livros lhe sobreviveu. Mas o vampiro que não morre garantiu ao seu criador a imortalidade nas letras.

Bram Stoker andou sete anos a pesquisar o livro antes de o escrever, e as suas influências são múltiplas. As histórias do folclore transilvano e húngaro sobre os strigoi, ou mortos-vivos, que saem das tumbas para beber sangue humano, contadas ao escritor por um amigo húngaro residente em Londres, Arminius Vambery; a literatura gótica de vampiros, nomeadamente The Vampyre, de William Polidori, Varney the Vampyre, de Thomas Prest, Carmilla, de Sheridan Le Fanu, amigo de Stoker e seu patrão do jornal Dublin Mail; Le Capitaine Vampire, de Marie Nizet; La Vampire, de Paul Féval; e, last but not least, a figura do príncipe (voivoda) da Valáquia (agora parte da Roménia) Vlad Dracula III (1431-1476), aliás Vlad, o Empalador, patriota e defensor do seu país contra o expansionismo dos otomanos, conhecido pelo seu gosto em empalar quer o inimigo turco, quer os malfeitores e prevaricadores em geral. (A palavra dracul significa "demónio" mas também "dragão", nome que os valáquios davam a todos aqueles que se distinguiam pela sua coragem ou então pela crueldade dos seus actos).

O príncipe cruel

A descoberta de Dracula III foi decisiva para Bram Stoker. O livro, que antes se chamava Count Wampyr, passou a intitular-se Drácula. O nobre valáquio foi transformado num aristocrata romeno com 500 anos, senhor de um sinistro castelo na Transilvânia. Tinha nascido um dos maiores mitos e uma das figuras fantásticas mais populares da literatura sobrenatural.

Logo que saiu, em finais de Maio de 1897, Drácula picou fundo nos leitores. O livro representou o culminar de uma corrente que já vinha tendo o favor dos leitores, a "história gótica de vampiros", e da sensibilidade sofisticadamente mórbida e amante de narrativas de horror que lhe estava associada. Foi a obra certa na altura exacta.

Por outro lado, o conde Drácula veio como que dar forma e corpo a algum medo vago mas palpável, a um terror ancestral, presente no inconsciente colectivo. Como escreveu um estudioso do autor, "quer Stoker tenha evocado um medo universal, ou então, como dizem alguns críticos contemporâneos, tenha personificado uma fantasia universal, ele criou uma imagem poderosa e perene que se tornou parte da cultura popular".

Curiosamente, Drácula foi recebido pelos críticos vitorianos como um livro ousado e "moderno", que integrava na sua narrativa novidades tecnológicas como o fonógrafo ou a máquina de escrever, entre outras. Este entusiasmo foi contrariado pelos que o trataram como se trata hoje um filme muito violento, lamentando "a quantidade desnecessária de incidentes horrendos" , que podiam "chocar e repugnar" e aconselhando os pais a ter o livro longe do alcance dos filhos pequenos.

Vida própria

O conde Drácula emancipou-se rapidamente do seu criador, e foi logo absorvido pelo cinema, onde teve os rostos, entre os mais famosos, do austro-húngaro Bela Lugosi na versão realizada por Tod Browning em 1931 (Lugosi que haveria de morrer roído pela morfina, julgando que era mesmo Drácula); de Christopher Lee nos filmes da produtora Hammer nas décadas de 50, 60 e 70 (Lee detesta falar na personagem, porque não gosta de ver a sua longa carreira reduzida ao papel do conde); ou de Gary Oldman no sangrento Drácula de Bram Stoker assinado por Francis Ford Copolla em 1992.

Em 1922, o alemão Murnau realizou Nosferatu, uma versão muda "ilegal" do livro de Bram Stoker, após a viúva deste e herdeira dos direitos lhe ter negado a adaptação ao cinema. A lei interveio e obrigou à destruição de todas as cópias do filme em que Max Schreck interpreta o vampiro não como um aristocrata carismático, mas como uma criatura repugnante. No entanto, foi impossível destruir todos os Nosferatu e o filme acabou por cair no domínio público.

Singrando sempre na tela, que lhe deu filhos e filhas, Drácula passou também para os palcos, para a televisão e para a banda desenhada. Foi retomado e glosado por novos autores de literatura de terror e fantástica, como Fred Saberhagen, Ann Rice, Chelsea Quinn Yarbro, Suzy McKee Charnas ou Kim Newman, analisado a nível universitário, objecto de teses eruditas, transformado em jogos de vídeo e num doce feito na Dinamarca e na Finlândia. Até já deu nome a uma flor, a duas espécies de insectos e a uma proteína, a draculina, encontrada na saliva dos... morcegos-vampiros.

Já lá vão 110 anos o conde continua a furar pescoços na era da Internet. |

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt