É possível juntar um católico, um judeu e um muçulmano para falar de religião? É. Sem fervor e extremismos? Sim. Apenas com a humildade de tentar conhecer o outro? É verdade. Sem conversão? Também. Pedro Gil, Isaac Assor e Khalid Jamal são exemplo disso..Crentes, cada um à sua maneira, cada um com a sua relação pessoal com Deus - o mesmo que une as religiões que professam, de origem abraâmica e monoteísta -, cada um com a sua identidade clara e não ambígua, falam de religião, gostam de o fazer em nome do diálogo inter-religioso que acreditam ser possível. E até o fazem em público, todas as semanas juntam-se para gravar um programa de rádio, E Deus Criou o Mundo, na Antena 1, moderado por Henrique Mota..A ideia partiu de um argentino, o produtor Carlos Quevedo, e "foi brilhante", reconhecem. De tal forma que o programa até já foi homenageado pelo Papa Francisco, no ano passado. "Penso que é inédito, não sei se haverá outro assim na Europa ou no mundo", refere Isaac. Já lá vão três anos. Carlos acertou nas pessoas, nos nomes, Pedro, o católico, pescador de homens, Isaac, o judeu, filho de Abraão, fundador da Tora, e Khalid, que significa Eterno, em árabe..Pedro e Isaac não se conheciam, Pedro e Khalid já. Mas Khalid "é o plano B dos muçulmanos", explicam entre risos, porque substituiu Abdool Vakill, o líder da comunidade islâmica em Portugal, seu tio, que participou nos primeiros programas..Todos nasceram e cresceram em Lisboa. Pedro e Isaac, de 53 anos, andaram na mesma escola, na Manuel da Maia, a fazer o secundário, mas não se lembram um do outro nesse tempo. Pedro e Khalid, o mais novo, de 32 anos, andaram na mesma universidade, em tempos diferentes, cursaram Direito na Católica. "Alguns amigos muçulmanos dizem que o meu curso é proibido", remata Khalid à gargalhada, mas diz foi a fase que o "ajudou a perceber melhor a cristandade.".Para Khalid, Portugal é "um paraíso para um muçulmano viver", desde que "se sintam como eu, um português que professa a religião islâmica." Pedro concorda com o paraíso mas sublinha: "Um católico vive bem em qualquer lado." Já Isaac, que diz ser diz nacionalista - "gosto muito de viver em Portugal" - tem outro sonho, aquele que é comum a qualquer judeu. "Ir viver para a Terra Prometida, talvez um dia agarre na família e vá.".Hoje conhecem-se melhor, aceitam-se verdadeiramente, sentem-se amigos. Sabem que nenhum deles tem "no bolso" um Deus melhor do que o do outro, apesar da convicção profunda que cada um tem de que "dois de nós estão errados", comentam ao mesmo tempo. "Só se morrêssemos ao mesmo tempo é que saberíamos quem tem razão", diz Pedro, que acredita na vida para além da morte. Khalid riposta: "Não vale dizer que as minorias é que estão erradas." Riem-se..Pedro, Isaac e Khalid acreditam que o diálogo é possível na religião, desde que se aceite que o importante é ser capaz de conhecer melhor o seu próprio Deus e o do outro. Desde que o importante seja caminhar na vida pelas linhas que, afinal, ligam todas as religiões, como a da liberdade religiosa, que, dizem, se não existir não há "fé verdadeira", ou a do discernimento, que incita "à tolerância e à compaixão"..Por tudo isto, o DN desafiou-os a desafiarem-se. A falar sobre o que os distingue, os une e os separa, sobre liberdade religiosa, preconceito, ameaça, discernimento, sobre os acontecimentos que aí vêm e que podem marcar 2019 e o futuro. Aceitaram. Mas também o fazem porque falam em nome próprio, "damos a nossa opinião, que não nos vincula a qualquer comunidade.".O encontro aconteceu na Academia das Ciências, uma casa com 239 anos, onde o saber, o debate, a investigação e a história são prioridade. Um espaço "sem credos e políticas", como o define a secretária-geral da Academia, Maria Salomé Pais. Um espaço com história e memória, onde todos se sentiram confortáveis durante quase duas horas..E entre humor, picardias, cumplicidade que a amizade já lhes dá, as reações não se fizeram esperar quando lançamos o primeiro tema. O discurso em direto aqui fica, e numa altura em que o Papa Francisco está em viagem pelos Emirados Árabes Unidos, em nome do Ano da Tolerância..Professam religiões com um só Deus, de origem abraâmica e monoteísta, é mais o que vos une do que o que vos separa?.Isaac Assor - Essa máxima está esbatida. Temos é muita coisa que nos separa, que devemos encurtar para nos conhecermos melhor e para nos entendermos. Esta é a questão fundamental das religiões. É preciso dar a conhecer as religiões. Será que o islamismo é só a bandeira do Daesh e dos atentados terroristas? Obviamente que não. Será que o judaísmo é só a imagem daquelas pessoas que se veem na rua de chapéu preto, com os cabelos aos caracolinhos a cair e de meias brancas? Claro que não, mas também é isso. Mas o islamismo e o judaísmo são muito mais do que isto..Então, o que te distingue de um muçulmano e de um católico?Isaac - Temos visões completamente diferentes, começando por Deus. Para o catolicismo há uma separação clara com a figura de Jesus como o Messias, o povo judeu aguarda a vinda do Messias. Os católicos acreditam na Santíssima Trindade, os judeus não. Para nós, Deus não é isto. No islamismo, Maomé é o profeta da verdade, transcreve o Corão. Para nós, a Tora, os cinco livros de Moisés, a base do judaísmo, é algo feito por inspiração divina. Isto é o que nos separa e que nos irá separar sempre..Pedro Gil (interrompe) - O Isaac tocou num ponto importante que é o ter como objetivo primário a aproximação das pessoas e não necessariamente das ideias. Ter como objetivo criar espaços, que não são fáceis, mas onde as pessoas consigam transmitir tranquilamente aquilo em que acreditam e os outros também consigam ouvir. Este objetivo promove a boa relação entre as pessoas, e isso é a condição para que essa aproximação se dê. Cada um de nós sabe que diz coisas que não são compatíveis com o que os outros dois dizem, mas isso não pode ser um obstáculo ao diálogo entre nós. Já fizemos um acordo: dos três, dois estão errados. Só se morrêssemos ao mesmo tempo poderíamos ficar a saber quem tem razão..Khalid Jamal (interrompe também) - Isto que o Pedro disse, a criação de empatia entre as pessoas, também nos dá mais tolerância para com o próximo e combate a nossa ignorância. O falarmos sobre religião leva-nos a conhecer cada vez mais a religião do próximo, leva-nos a sair da nossa zona de conforto e ir ao encontro do que é a religião do outro. Não se trata de uma aceitaçãozinha, trata-se simplesmente de cada um compreender o outro. Se conseguir compreendê-lo, consigo colocar-me no lugar dele..Khalid, mas o que te separa dos outros? Bem, se calhar, e como sou o mais novo, ainda posso estar com um discurso cor-de-rosa, mas estou plenamente convencido de que temos mais pontos que nos unem do que nos separam, designadamente o facto de todos acreditarmos num só Deus, de sermos de religiões de revelações, de todos acreditarmos em profetas. A grande diferença é a forma como chegamos a Deus. Essa é o que nos distingue. Como muçulmano, faço cinco orações diárias, para os meus colegas isso não faz sentido, se calhar fazem mais ou menos, mas não fazem desta forma. Eles não fazem a ablução, um ritual de purificação simultaneamente simbólico e físico, eu sou obrigado a fazê-lo. Eu jejuo no mês do Ramadão, eles jejuam em circunstâncias diferentes e de formas diferentes. Portanto, a crença é muito semelhante, a maneira de chegar a Deus é que é diferente..E o que pensam os católicos? Pedro - No cristianismo, Deus, além de ser criador, como afirmam as três religiões, é estritamente o pai da humanidade. Jesus Cristo é Deus encarnado, deu-nos a conhecer que além do Pai também existe o Espírito Santo. Em Deus há pluralidade, embora uma só unidade. Esta é uma diferença grande em relação às outras religiões, e das mais difíceis de aceitar, compreendo essa dificuldade. Mas por Deus se ter feito homem significa que ganhámos um título de proximidade maior para com Deus pleno. Por isso, na vida religiosa cristã, a ideia de se sentir filho de Deus está muito presente. Esta confiança faz os católicos pensar que, de alguma forma, participamos da natureza divina. Sei que estou a dizer frases muito arriscadas, mas teologicamente estão certas. Sei que é difícil para o islão aceitar que existe uma afirmação da enorme transcendência de Deus, respeito isso. Os católicos afirmam ainda uma outra realidade que é a união com Deus numa vida futura, o paraíso. A ideia da ressurreição da carne também é difícil de aceitar pelo islão e pelo judaísmo....Khalid - No caso do islão, Deus está num plano distinto do ser humano. Não existe uma proximidade física. É completamente irreconciliável a ideia de ver Deus como um ser humano. Para nós, Deus não se manifesta sob essa forma, não acreditamos que Deus precise de se tornar um ser humano para se sentir próximo de nós e para nos sentirmos próximos Dele. Deus está num plano transcendental, sublime, e é isso que faz que oremos a Ele e nos sintamos próximos Dele..Isaac (interrompe) - Poderíamos estar aqui o resto do tempo a falar do que nos une e separa. Para mim, o fundamental para o entendimento entre o judaísmo, o cristianismo e o islamismo tem que ver com as interpretações de textos. Por exemplo, o Pedro lê o Génesis de uma forma e eu de outra, e deveria ser precisamente igual. As interpretações dadas aos textos sagrados são diferentes, e isto não é um problema de hoje, é um problema que já vem das traduções dos gregos. O islamismo faz uma interpretação do sacrifício de Abraão diferente da do judaísmo. Para o islamismo, o sacrifício de Abraão é com Ismael para os judeus e católicos é com Isaac. Alguém está errado..Khalid [de novo] - Não vale dizer que as minorias é que estão erradas. Ou seja, se há dois que estão em comum, não significa que o islão é que esteja errado..Isaac - O que digo é que as três grandes religiões, que têm tanto em comum e tanto a separá-las, também têm andado de costas voltadas há milhares de anos. Penso que só nos últimos anos do século XX começámos a conversar uns com os outros. Quando digo começar, não somos nós, são as instituições. Os católicos começaram a conversar com os judeus com Paulo VI, com o Concílio Vaticano II, com João XXIII e com o Papa João Paulo II. Com o Bento XVI não deixou de haver aproximação, mas foi um período mais calmo. Agora, com o Papa Francisco, estamos claramente a conversar e de uma forma tão aberta que há documentos do Vaticano passados a escrito que dizem que não se pode converter os judeus. Não convertam os judeus, há um texto sobre isto em 2018. É impressionante..Pedro [ri-se] - Bem, diz isso aproximadamente....Isaac - Pedro, trago-te o texto, é impressionante. Porquê? Porque para os católicos o povo judeu faz parte da salvação e isto é uma coisa que há mil anos ninguém na Igreja Católica ousava dizer ou falar sobre isto..Khalid - Mas se pegas no diálogo deixa-me clarificar algo. A religião assenta em dois aspetos, emocional e racional, e o que fazemos - através do diálogo - é substituir o fervor religioso emocional por um fervor de amizade que dá lugar à discussão racional, que nos permite expor os nossos pontos de vista. Isto é possível e não diminui a relação que cada um de nós tem com Deus..Pedro - O nosso diálogo parte de uma base, que é a nossa identidade, e de uma forma totalmente clara e não ambígua, porque de outro modo poderia criar um diálogo fictício. Só que essa afirmação de identidade não deve ser vista como uma agressão, é simplesmente uma afirmação da nossa fé. Por exemplo, o programa na rádio está a ser para mim uma circunstância que me obriga a conhecer bastante melhor a minha própria fé..Isaac e Khalid concordam com Pedro..Pedro - Ouvir com tranquilidade o que os outros têm a dizer sobre a forma como acreditam em Deus tem sido para mim uma escola enorme, em que se eliminaram muitos preconceitos que havia dentro de mim..Mas se há diálogo entre instituições, o que ainda impede as três religiões de deixarem o conflito, as perseguições?Isaac - Hoje, o diálogo entre judaísmo e cristianismo pode ser entendido não de uma forma real mas brutal. Não só por parte dos católicos, mas também do cristianismo evangélico. Não é a primeira, a segunda ou a terceira vez que há encontros entre rabinos, que vêm de Israel e de outras comunidades, para encontros com o Papa. Da mesma forma como o Papa vai a Israel..E o diálogo com o islamismo? Aí temos algum problema. Eu sou o mais sionista possível, amante de Israel, judeu, mas não tenho dúvida de que o diálogo com o islamismo se tem tornado cada vez menor e até quase nulo desde a criação do Estado de Israel. Até à criação do Estado de Israel existiam comunidades judaicas em países muçulmanos, onde praticavam o judaísmo com a maior das liberdades. Hoje não existem comunidades judaicas a não ser eventualmente em Marrocos, onde ainda há uma pequena comunidade judaica. Na Síria não existe, no Iémen também não, na Líbia e no Líbano igualmente. Ou seja, deixou de haver comunidades judaicas no mundo muçulmano. Por isso, quando se fala do êxodo palestiniano de Israel, e que estes têm o direito ao retorno, pergunto: porque é que ninguém fala do retorno de milhares e milhares, se não de milhões, de judeus aos países muçulmanos de onde foram obrigados a sair, deixando tudo para trás? Este diálogo entre judeus e muçulmanos deixou de existir por uma razão política. Quando sou da opinião, e o Pedro vai perdoar-me, que se calhar até sou um pouco mais próximo do islão do que do catolicismo. Deixem-me só dar um exemplo. O Abdool Vakil, tio do meu amigo Khalid, presidente da comunidade muçulmana, escolheu o meu falecido pai, que foi rabino da comunidade israelita de Lisboa durante mais de 50 anos, para abater os animais para o seu casamento. Veja bem, mais semelhanças não poderiam existir. Outra, durante muito tempo, o maior cliente do talho judaico que havia em Lisboa era a comunidade muçulmana. Esta semelhança existia aqui como no Irão ou noutro sítio. Hoje não há..Khalid - É verdade. Estamos próximo dos judeus na forma de ver Deus e de praticar a nossa fé, mas depois todos estes fatores se esbatam em conflitos geopolíticos..É a geopolítica que vos afasta na religião. Isso resolve-se? Isaac - É um empecilho. Se calhar o discurso demasiado inflamado e até violento que por vezes muitos imãs têm nas mesquitas, algo que os próprios muçulmanos não conseguem controlar, já falámos sobre isto no programa, também contribui para este afastamento. Passam o discurso de morte aos infiéis. Mas quem são os infiéis? São só os judeus? É que isto está escrito no Alcorão...Khalid - Sim está, mas uma coisa é o que está escrito outra coisa é a interpretação que se dá.Isaac - Ora aí está, a interpretação que é dada e que depende muito do palco e do público que se tem..É difícil à luz da religião islâmica atenuar tais interpretações... Khalid - Há duas questões importantes para nós. Primeiro, o Alcorão. Acreditamos que a nossa revelação divina, o Alcorão, é uma revelação direta de Deus a Maomé por intermédio do anjo Gabriel. Portanto, enquanto qualquer católico ou judeu se sente relativamente livre e com alguma flexibilidade para interpretar os textos sagrados, no caso do islão é uma tarefa mais sensível, por ser um texto divino e ser a palavra de Deus.Pedro - Isso porque o autor do Alcorão é o próprio Deus, não é nenhum homem. É uma diferença grande..Khalid - E isso faz que tudo aquilo que se possa dizer em relação ao Alcorão, numa interpretação um bocadinho mais expansiva, possa ser considerado uma blasfémia e ir contra o que é o espírito da religião islâmica. O segundo aspeto, embora não seja uma tentativa de justificação, o islão tem 1440 anos de história. Neste sentido, o islão ainda está a passar por um processo de amadurecimento, que historicamente o cristianismo e o judaísmo já passaram e lhes trouxe uma nova visão e um conjunto de pensadores que olham com o distanciamento necessário para a religião e que a sabem interpretar à luz da razão. Os muçulmanos vão ter de fazer esse exercício nos próximos anos. É um desafio do ponto de vista interpretativo que terá de ocorrer. Ou seja, o islão pode ser o mesmo, o espírito do islão pode ser o mesmo, mas ele tem de ser permeável ao contexto atual, à realidade moderna. E é nisto que tenho insistido..Pedro - Para os católicos, a necessidade de a religião passar no crivo da razão é uma preocupação de há muito. O Papa Bento XVI falava disso. Ele dizia que o cristianismo quando nasceu entrou logo em contacto com a tradição helenista, dos pensadores clássicos gregos, o que ajudou a colocá-lo não do lado das religiões esotéricas, mas do lado de um sistema intelectual, pensado. Este foi o primeiro grande teste de racionalidade, depois houve um segundo, o do iluminismo, que é aquele em que ainda estamos e que nos tem levado a um crivo muito maior de exigência e de racionalidade na religião. Em relação a Portugal, quando cá veio, Bento XVI disse duas coisas: que o choque com o Marquês de Pombal foi o grande rosto da exigência humanista e que o facto de a República ter separado a Igreja do Estado fez que a Igreja conseguisse libertar-se de uma tutela que a tinha atrofiado como sistema de pensamento. Acho que ainda não se recuperou completamente, mas tem o prestígio e a dignidade intelectual que uma religião merece. Este talvez seja o grande desafio pelo qual o islão ainda não passou.Khalid - Mas a acrescer a este argumento cronológico, de o islão ter apenas 14 séculos de história, soma-se outro que é o facto de não termos uma autoridade central, piramidal e hierarquizada, à semelhança do que acontece com o Vaticano.Isaac - O judaísmo também não tem.Khalid - O problema é que não temos um tribunal, uma autoridade legitimamente reconhecida como autoridade central que nos possa dizer quem tem razão num conflito de interpretação dos textos sagrados. Se me perguntar se os muçulmanos têm algum receio de fazer interpretações? Evidentemente que têm. Como a palavra do Alcorão é a palavra de Deus, é difícil interpretá-la. É preciso ter coragem, capacidade, conhecimento, discernimento para interpretar a palavra de Deus. E issoleva a que muitas vezes haja interpretações inflamadas, descontextualizadas, e que levadas à letra estão, muitas vezes, na origem dos ataques bárbaros a que assistimos em nome do islão. Alguns textos da Bíblia também falam sobre conflitos, também têm um registo de escrita que não é comummente aceite como pacifista, no entanto, a pouco a pouco, o esforço da interpretação foi sendo feito pelas religiões irmãs..O Khalid diz que o Islão tem um grande desafio, e o judaísmo e o catolicismo?Isaac [ri-se] - Bem, o judaísmo vive num desafio diário. Sobretudo, quando falamos de comunidades judaicas pequenas. Porquê? Porque uma das bases fundamentais do judaísmo é a educação, tanto na vertente religiosa, histórica e laica. Uma das bases é a educação de valores éticos e morais. Não existe um judeu que possa dizer sou judeu religioso, mas não tenho moral, não tenho ética. Isto no judaísmo não existe. Nas comunidades judaicas mundiais, como por exemplo a que existe em Portugal, uma das grandes lutas é a transmissão da religião, da nossa tradição e costumes. O que é difícil quando não há uma escola judaica, quando não há um lugar onde se possa ter uma alimentação kosher, quando não há uma comunidade com capacidade suficiente para atrair os mais jovens, que estão a sair e a tornar cada vez mais difícil que os nossos filhos e filhas possam casar dentro da própria religião - eu falo por mim, tenho três filhas e peço a Deus para que as ilumine a encontrar um marido judeu. Portanto, manter o judaísmo é o grande desafio para as comunidades judaicas que estão fora de Israel.Mas o judaísmo está em risco? O povo de Israel é o povo eleito, mas porquê?, questiona o Pedro tantas vezes. Não basta dizermos que somos o povo eleito, os judeus têm de ter um papel na sociedade e no mundo. É verdade que o povo judeu tem participado bastante na evolução da sociedade, na medicina, na ciência, na literatura, mas em alguns meios continua a ser desconhecido. O judaísmo não é só uma religião, é uma forma de vida e tem de se dar a conhecer. Que eu saiba somos a única religião em que a transmissão é feita pela mãe, pelo sangue. Ninguém escolhe ser judeu a não ser que se converta ao judaísmo. E é este judaísmo que tem de ser dado a conhecer às pessoas. É isso que tento fazer também. Dar a conhecer a visão judaica sobre a sociedade, sobre o mundo, a ética, sobre a relação entre as religiões e com o sistema político. O judaísmo corre riscos e tem hoje o grande desafio de defender os seus próprios valores religiosos..Não há liberdade religiosa?Isaac - Uma coisa que me está a perturbar, e que aconteceu no início deste ano, foi a proibição decretada em alguns países europeus, como na Bélgica, para o abate de animais segundo o ritual judaico-islâmico. Isto é uma clara violação da liberdade religiosa, é um retrocesso enorme nas liberdades que foram garantidas durante séculos. Começou na Bélgica, não sabemos se continuará por aí fora. É uma das grandes preocupações que existem hoje. No caso do judaísmo há uma outra que tem a ver com a circuncisão, já começa a falar-se de que poderá ser proibida nos moldes em que é feita pelos judeus. Espero que tal não aconteça, mas são outros dois grandes desafios que o mundo judaico vai ter de debater e defender neste ano e no futuro. Outro desafio é fazer que não desapareça a transmissão do judaísmo por parte da mãe.E os católicos que desafios têm?Pedro - Vencer o cansaço da fé. As pessoas habituaram-se a viver como se Deus não existisse. Uma sondagem recente feita na Área Metropolitana de Lisboa revela que um terço dos católicos não reza. Nunca. Isso é muito preocupante, onde é que está a confiança em Deus? O primeiro mandamento diz: amar a Deus sobre todas as coisas e com todo o coração. A palavra amar significa para com Deus, o mesmo tem de significar para connosco, pessoas. O que aconteceu para que passássemos a ter medo de Deus? Ou que passássemos a tratar Deus como se fosse uma pessoa que tem uma doença degenerativa, que deixa de comunicar? Está lá em casa, vive lá, pertence ao espaço que habitamos, mas com quem já não falamos. É preciso que os católicos reabilitem Deus, que voltem a ter confiança Nele, porque Ele intervém, corresponde. Não é verdade que tenha morrido. É verdade que vivemos uma mudança cultural no último século em que se questionou muito Deus, em que construímos técnica e cientificamente uma sociedade implacável, sem dúvida, sem Deus. Acho que este é o drama religioso fundamental que estamos a viver.A indiferença religiosa ameaça todas as religiões?Pedro - Para todas acho que é a sepultura completa da fé.Isaac - Sem dúvida. No judaísmo, admito que tem claramente que ver com o facto de não haver muitas pessoas chamadas rabinos, mestres, teólogos do judaísmo, para as suas comunidades e que lhes transmitam uma mensagem que seja apelativa.Khalid - No caso do islão, as pessoas perguntam porque é que esta religião que, ao mesmo tempo é tão polémica e objeto de tanto questionamento, tem as mesquitas cada vez mais cheias? Costumo dizer que o facto de termos só 14 séculos de história também nos coloca num estado diferente em relação às outras religiões, mas acho que uma das questões fundamentais é que o islão é uma religião que nos seus próprios princípios não é tão geral e abstrata. Ou seja, por um lado, tem um conjunto de princípios universais, de matriz humanista, mas também dispõe no concreto. O profeta Maomé ensinou-nos uma forma de estar quotidiana. O Alcorão é isso. Um código de conduta, de vida, que dispõe sobre os aspetos centrais do pensamento humano, que desafia à reflexão e à nossa relação com Deus. E acho que isto traz benefícios inegáveis à vida quotidiana e tem contribuído para o facto de as mesquitas estarem cada vez mais cheias..Já falaram de desafios, mas quais são os temas que vão marcar a atualidade em Portugal e no mundo e que podem trazer mudanças à religião?Isaac - Confesso que não pensei nesse prisma, mas há dois temas que são importantes. Um deles, a nível nacional, é a novela que está a acontecer com a construção do museu judaico de Lisboa. Falo em novela porque depois de terem sido assinados todos os protocolos houve, há dias, outra decisão do Tribunal da Relação a embargar as obras, por considerar que desvirtua a imagem urbanística da zona de Alfama. Penso que isso deveria ter sido discutido antes do plano de construção do museu. Portanto, apelo a que este imbróglio seja resolvido o mais rapidamente possível. Outro assunto tem que ver com a data aprovada a 4 de dezembro pelo Parlamento português para o Dia da Memória das Vítimas da Inquisição, que será a 23 de maio, data da introdução da inquisição. Acho muito marcante..A nível internacional, o que irá marcar este ano e no futuro?Isaac - A perseguição que é feita aos cristão em países do Médio Oriente. Há um discurso muito recente do primeiro-ministro israelita Benjamin Netanhyau em que diz que o único país do Médio Oriente onde os cristãos e os católicos vivem em segurança é Israel. Aliás, a comunidade cristã aumentou nos últimos anos de 170 mil para 200 mil, segundo os últimos números do Ministério do Turismo. Esta perseguição que é feita às religiões, particularmente aos cristãos, no Egito, na Nigéria, que estranhamente é pouco ou quase nada mencionada na comunicação social, é um dos perigos do mundo religioso de hoje e terá de ser discutido em 2019 e no futuro. A perseguição não é nova para um judeu, que, aliás, continuam a ser perseguidos com o renascimento forte dos movimentos de extrema-direita ou de extrema-esquerda. Tudo o que seja de extremos é algo que nos deve fazer pensar muito, pode pôr em causa a liberdade religiosa, tanto cristãos e judeus como muçulmanos.Os nacionalismos assustam as religiões?Isaac - Claro. As manifestações em França dos coletes amarelos fizeram surgir paralelamente um aumento de antissemitismo. A sinagoga principal dos Campos Elísios teve de encerrar os seus serviços num sábado, por questões de segurança, pela primeira vez em mais de 30 ou 40 anos. O que se passa em Franca, na Alemanha, na Bélgica e nos EUA com atentados, não antissemitas mas quase racistas, é uma grande preocupação, não só para o povo judeu mas para qualquer um que queira professar a sua religião e a sua fé. Esta liberdade não pode ser limitada.Khalid - Eu pego nisto para dizer que os Emirados Árabes Unidos decretaram 2019 o ano da tolerância. Os Emirados têm sido vistos como um país que está recetivo a outras realidades religiosas, sociais, culturais e étnicas, e acaba por ser um ponto de encontro. Neste ano da tolerância é algo de muito simbólico e profundamente marcante no seio dos países de maioria islâmica. Na agenda dos Emirados está o objetivo de reduzir a associação que se faz, muitas vezes errada, do mundo muçulmano aos fenómenos do terrorismo e à intolerância. Está na agenda o objetivo de criar um clima saudável profícuo e pacífico entre todos os que têm em comum o valor da sua religiosidade e da compaixão. De salientar também que a principal mesquita dos Emirados, construída em homenagem ao fundador do país, mudou de nome, agora é Maria Mãe de Jesus. O que também é extraordinário e demonstra inegavelmente uma grande abertura ao diálogo inter-religioso. Já há sinagogas nos Emirados...Isaac . Não oficialmente...Khalid - Pode não haver comunidades religiosas, o que se calhar é fruto de ainda não existirem muitos judeus a viver nos Emirados.Isaac - O que existe no Dubai é uma espécie de apartamento tolerado pelas autoridades. Sabem que é um local onde se fazem algumas celebrações religiosas, particularmente para homens de negócios que estão lá a viver ou que estão de passagem...Khalid - Tudo começa assim na sociedade, pelas coisas que são toleradas, depois permitidas até que ficam definidas..Mas a nível nacional há algo que irá marcar...Khalid - A comunidade muçulmana comemorou agora os 50 anos em Portugal e para mim tem de significar um período de viragem e de transição. Quem fundou a comunidade foi um grupo de estudantes que já tinham alguma ligação afetiva e emocional à pátria portuguesa, a maior parte tinha nascido nas ex-colónias, o que explica, de certa forma, o sucesso de integração da comunidade islâmica, esse sentimento de pertença e de afetividade em relação a Portugal fez que essas pessoas se caracterizassem, como eu me caracterizo, portugueses que professam a religião islâmica. Não um muçulmano português. Essa ligação é extraordinária e isso marcou profundamente a criação e as raízes da comunidade islâmica. Julgo que estamos num período de maturidade e de consolidação da comunidade. Se no início o desafio era o exercício do seu culto, da sua liberdade religiosa, hoje o vai mais além, como ter instituições de ensino árabe..Para os católicos, o que vai marcar o futuro? Pedro - A nível nacional é a Jornada Mundial da Juventude, que, embora seja um acontecimento internacional, vai servir para mobilizar e focar toda a Igreja portuguesa no futuro, que são os jovens. Vai ser um desafio interessante. Se o consegue ou não, vamos ver. Mas vai ser um desafio à nossa capacidade organizativa. Do ponto de vista internacional, destaco o significado das viagens do Papa neste ano. Começa agora com a viagem aos Emirados Árabes Unidos, depois a Marrocos, à Bulgária, à Macedónia e depois ao Japão. Estas viagens têm que ver com o desejo de o Papa Francisco estar em sítios a promover o diálogo com culturas diferentes. Ele serve como mestre de uma das maiores necessidades do tempo moderno, que é aprender a dialogar com a diferença..Para um católico, judeu e muçulmano. Portugal é um país bom para se viver?Isaac [suspira] - Vou ser muito honesto...Khalid [ri-se] - Não precisas de dizer mais nada...Isaac - Hoje, e da forma como as instituições religiosas funcionam ou não funcionam, se me dessem a escolher viver numa cidade que não tem uma escola judaica, estou a falar de Lisboa, não do Porto ou Belmonte, que não tem uma comunidade com quórum mínimo para fazer orações diárias, onde posso contar pelos dedos da mão os potenciais maridos das minhas filhas, provavelmente não viveria em Lisboa...Pedro - Mas isso são circunstâncias internas à própria comunidade, não tem que ver com o país.Isaac - Certo. É claro que Portugal nos permite ter a nossa vida judaica, mas ainda sou do tempo, e já depois do 25 de Abril, em que me chumbaram por faltas ao sábado, na Escola Manuel da Maia. O meu pai teve de falar com o cardeal António Ribeiro, que era seu amigo, para que se resolvesse a situação em relação aos judeus, sendo o Estado laico. Mas, se quisesse viver num mundo judaico atual, não viria para Portugal. Escolheria Israel. Talvez um dia leve a família toda.Khalid - Para um muçulmano, Portugal é um paraíso. Especialmente para um muçulmano que queira ser um português. Ou seja, este país à beira-mar plantado só se torna um paraíso para aqueles que demonstrem vontade de estar nele, que manifestem um sentimento de concordância com o fenómeno da portucalidade. Portugal é um país extraordinário para aqueles que saibam gerir a sua fé e que não tenham pretensões de a impor ao próximo.Pedro [ri-se] - É um sítio esplêndido para se viver, embora um católico normalmente se dê bem em qualquer lado.