Do insuspeito Jay Z, que usou um sample de Todo o Mundo e Ninguém no tema Marcy Me, incluído no álbum 4:44, de 2017, a artistas nacionais como Salvador Sobral, cuja versão de Pigmentação voltou a resgatar a memória da primeira canção sobre o racismo do pop rock português, obviamente censurada nos idos da ditadura, toda uma nova geração tem descoberto aos poucos a obra do Quarteto 1111. Mas após ter desaparecido tanto das lojas como do éter, fosse causa da censura ou apenas por incompreensão e incompetência das editoras, faltava um documento que não só a recuperasse, mas também para a reinventar. E foi precisamente isso que os seus dois membros mais conhecidos agora fizeram, no projeto Tozé Cid, que como o nome indica volta a juntar José Cid e Tozé Brito num mesmo disco. Ao contrário do que seria expectável, a dupla optou porém por escolher alguns temas menos conhecidos, apostando ao mesmo tempo num produção acústica, de forma a "a dar foco às palavras". O primeiro single escolhido foi precisamente Todo o Mundo e Ninguém, que foi também o primeiro a ser musicado e cantado por Tozé Brito quando chegou à banda. Editada originalmente num single em vinil, só muitos anos mais tarde foi disponibilizada em CD através de uma antologia do Quarteto 1111. O alinhamento inclui ainda João Nada, Domingo em Bidonville e Pigmentação, todas do álbum de estreia do Quarteto, proibido pela censura e retirado do ar das lojas poucos dias depois. Ainda do Quarteto, recuperaram Memo e Os Rios Nasceram Nossos, ambas do single de 1987, que assinalou a reunião do grupo para comemorar vinte anos de carreira. Aos Green Windows, a banda formada a seguir ao fim do Quarteto, resgataram dois lados B: Bola de Cristal (1973) e Uma Nova Maneira de Encarar O Mundo (1974). E mais quatro que provêm de discos de José Cid: Lisboa Ano 3000 (1971), Mitos (1989), Soldados Desconhecidos (1994) e João Gilberto e Astor Piazzolla (2018)..Porquê este disco, agora? TB: E porque não agora (risos)? Qualquer altura é sempre uma boa altura para nos juntarmos e fazermos música..E costumam fazê-lo com regularidade? TB: Muitas vezes. O Zé aliás costuma convidar-me para participar nalguns dos seus espetáculos, para meia horita em palco e nos divertirmos um bocadinho..JC: Ainda no ano passado estivemos juntos no palco do Rock in Rio, por exemplo. Nós somos irmãos e este disco é apenas mais um encontro de irmão, como tantos outros que temos tido ao longo da vida..Mas esta ideia em concreto, de fazer um disco conjunto, com recriações de temas do Quarteto 1111, como é que surgiu? TB: Foi durante a pandemia, estávamos a jantar juntos e falámos desta possibilidade de irmos buscar canções mais antigas e gravá-las de forma acústica, dando-lhes uma volta completamente diferente daquilo que eram. A maior parte destas canções estavam perdidas, no sentido em que não se ouvem na rádio e já não se conseguem comprar em lado nenhum. Algumas foram proibidas pela censura e nunca mais apareceram depois disso, outras andam por aí em lados b, mas pouco mais. Há algumas que estão em álbuns do Zé, mas a verdade é que o Quarteto 1111 nunca foi bem apoiado pela sua editora da altura, a Valentim de Carvalho..JC: Saímos da editora completamente de costas voltadas, por havia por lá alguns demónios em relação a mim..TB: Quando começámos a pensar mais a sério nisto, decidimos que queríamos deixar um documento. E foi por isso que não optámos pelo caminho mais fácil de pegar em canções mais conhecidas e fazer um simples best of. Pelo contrário, escolhemos as canções menos visíveis e depois fizemos algo que julgo ter sido bem pensado, da nossa parte, que foi partir inicialmente da voz e não tanto da melodia ou do instrumental, colocando o foco nas palavras..Foi difícil escolher os temas? TB: Não foi fácil, mas acabou por ser consensual, porque as opções que se punham era ir por uma caminho ou por outro. E nós escolhemos o mais complicado, mas que nos diz muito mais. Isto são canções com mais de 50 anos, oiçam-nas agora e vejam se não estão completamente atuais? Foi esse o nosso objetivo..Acham que a obra do Quarteto é subvalorizada? JC: Sem dúvida, porque na sua geração foi só o grupo mais criativo, ousado e censurado da Europa continental. Se estivéssemos em Inglaterra seríamos uma banda enorme, não tenho qualquer dúvida..TB: Em termos criativos sim, éramos muito bons, mas se calhar nunca houve muita vontade em procurar..JC: Pode ser que agora, com este álbum, as pessoas percebam que houve uma banda, há cinquenta e tal anos, a fazer coisas muito à frente do seu tempo..Porque é que isso acontece? TB: A nossa editora da altura nunca nos levou muito a sério. Não estou a dizer mal da Valentim de Carvalho, que tem um legado enorme e importantíssimo na história da música portuguesa, mas nós sempre fomos um espécie de corpo estranho para eles. O quarteto não tinha nada a ver com o resto dos artistas daquela casa e a editora nunca soube muito bem o que fazer connosco..JC: Eles eram politicamente corretos e nós não éramos..TB: Isso também, mas acima de tudo creio que teve mais a ver com a música que fazíamos, um pop-rock de intervenção que mais ninguém fazia na altura. Ao contrário de outras bandas da altura, nós sempre olhámos muito para o país e até mesmo quando cantávamos em inglês, como nos singles Back to the Country ou Everybody Needs Peace and Food, era sempre sob essa lente da crítica social. Basicamente traduzíamos para inglês o que dizíamos em português e censura já não nos chateava. Ou não percebiam inglês ou achavam que o público não percebia, porque podíamos dizer as maiores barbaridades e passava tudo..Apesar desse desconhecimento, em 2017, o rapper e produtor americano Jay Z veio buscar um sample do tema Todo o Mundo e Ninguém, gravado em 1970 a partir de um poema de Gil Vicente, escrito no século XV, que vocês agora também recuperaram... TB: Sim, esse foi um tema que deu muito que falar (risos). Foi um verdadeiro momento uau, um tipo americano, com aquele estatuto, ter chegado até nós. Devia andar à procura de algo muito específico, não deve ter sido por causa do Gil Vicente de certeza, mas também tem esse lado simbólico..JC: Mas há mais, o Salvador Sobral também gravou uma versão fantástica do Pigmentação, uma das primeiras músicas a abordar o tema do racismo em Portugal e também fazia parte desse álbum, que esteve apenas sete dias nas lojas, pois foi logo confiscado pela censura. Mas isso significa que ele fez a sua investigação, para chegar a essa música, tal como o Jay Z fez..Mas já deviam estar à espera de ser censurados, tendo em conta a temática das canções. Ou não? TB: Claro, aliás nem o submetemos à censura prévia para ver se ainda vendíamos alguns, porque sabíamos que não tinha qualquer possibilidade de passar. O lado A era sobre a emigração portuguesa e falta de condições desses trabalhadores, que eram obrigados a deixar tudo para trás em busca de melhor vida, enquanto o lado B, além de uma crítica assumida à guerra colonial, abordava também questão do racismo..Dois temas ainda bastantes atuais, as migrações e o racismo... JC: Como se provou mais recentemente, quando o Passos Coelho sugeriu à juventude portuguesa para emigrar..TB: Infelizmente perece que a realidade não mudou assim tanto, ainda que a nossa relação com África seja hoje bastante diferente para melhor..JC: O Tozé tinha acabado de chegar ao Quarteto e já não gravou o álbum, mas começou logo a cantá-lo. Nessa altura tinha saído um decreto do governo a dizer às editoras que se continuassem a lançar músicas contra o regime seriam encerradas. Mas tanto o Adriano Correia de Oliveira como eu, que era autor de quase todas as letras do Quarteto, assumimos, perante as editoras, a nossa total responsabilidade pelos temas. O Adriano ainda foi chateado, porque estava ligado ao Partido Comunista, mas a mim ninguém me disse nada..Mas quando atuaram na primeira edição do festival de Vilar de Mouros tinham a polícia política a vigiá-los de perto, certo? JC: Não nos deixaram quase cantar nada..TB: Fomos logo avisados que se tocássemos alguma dessas canções entravam pelo palco adentro para nos calar..JC: A única coisa em modificámos foi a primeira frase da letra da Lenda de El-Rei D. Sebastião, porque nós tínhamos escrito originalmente "fugiu de Alcácer-Quibir" e isso não podia ser (risos). Passou a "depois de Alcácer-Quibir". Digamos que a censura até nos inspirava (risos)..TZ: Em Vilar de Mouros, a maneira que encontrámos para contornar isso foi cantar em inglês. Fizemos o espetáculo todo em inglês e abrimos com Gloria, Gloria Aleluia e com o Move On, da Janis Joplin, só não percebeu quem não quis..Como foi essa chegada do Tozé à banda? TB: Quando cheguei tinha 18 anos, menos dez que o resto da tropa toda e fui muito bem recebido. Costumo dizer que fui raptado por eles, ao vir do Porto para Lisboa. Já tocava nos Pop Five Music Incorporated e um dia, em Penafiel, num espetáculo em que tocaram as duas bandas, o Zé convidou-me..JC: O nosso viola-baixo da altura estava mobilizado para a Guiné e lembrei-me logo do Tozé para o substituir. Era um miúdo com boa pinta, que tocava e cantava bem, era perfeito para nós. Quando o convidei disse-me para ir falar com o pai dele, para ver se o deixava vir para Lisboa. E de facto deixou, porque era comigo (risos)..TB: Nessa altura a maioridade só se atingia aos 21, não era aos 10, como agora, portanto eu não podia tomar essa decisão sozinho. A questão tinha mais a ver com o medo de deixar de estudar por causa da música, porque havia sempre aquela ideia que os músicos não tinham qualquer futuro. Mas eu sempre soube que queria isto e mesmo que tivesse acabado a tocar num casino ou num bar, seria feliz à mesma. No início houve ali uma guerra com o meu pai, mas pouco tempo depois passou logo a ser o meu maior fã..E os mais velhos, como trataram o puto? TB: Nos primeiros tempos fiquei a morar em casa do Zé, até alugar um apartamento em Cascais, e tornámo-nos logo muito próximos..JC: Ele chegou com algumas ideias anglófilas, mas eu disse-lhe logo que não. Lembro-me que lhe dei um poema do Gil Vicente para ele musicar, que acabaria por se tornar o tema Todo o Mundo e Ninguém, o tal usado pelo Jay Z..Alguma vez vos passou pela cabeça que, mais de 50 anos depois, iam estar a gravar um álbum conjunto com as músicas desses tempos? TB: Nunca pensei tal coisa, confesso..JC: A mim por acaso sim, porque sempre tive a sensação, ao longo de todo este tempo, de que deveríamos fazer qualquer coisa, para redimir essa falta de consideração pela nossa obra por parte da editora. Aliás, depois do fim do Quarteto eu fui para a Orpheu, onde estava o Zeca e o Adriano, onde fui muito bem recebido, e o Tozé também fez a vida dele noutro lado..TB: Eu fui para a Polygram, com os Gemini, com quem tinha um projeto de levar o grupo à Eurovisão e ver o que acontecia. Mas sempre ficámos muito amigos, apesar de cada um ter feita a sua carreira. Eu acabei por ficar mais ligado à indústria, embora sempre compondo e escrevendo, mas sempre mantendo o contacto. Aliás, uma das primeiras pessoas que levei para a Polygram foi o Zé, que depois também foi comigo para a BMG e fizemos coisas incríveis..JC: Tivemos êxitos incríveis, como o Cai Neve em Nova Iorque, mas também fizemos algumas coisas mais fora da caixa, como o meu primeiro álbum de fados, que se tornou dupla ou tripla platina..Enquanto verdadeiros senadores da música portuguesa como é que veem a atual vitalidade da mesma, numa altura em que as quotas na rádio voltaram a estar na ordem do dia? JC: Em relação a esse assunto já me despi de preconceitos há muito, quando tirei uma foto nu, para contestar as playlists nas rádios..TB: Isso foi quando? JC: Em 1994, quando as playlists apareceram. Percebi logo iam apenas ser mais uma ditadura e que quem gosta de fazer rádio ia estar impossibilitado de o fazer, sendo obrigado a seguir o que supostamente o público quer ouvir. E isso é cercear a criatividade dos próprios radialistas. O problema não é a música estrangeira que passa, é a má que não deixa a boa passar..Mas numa altura em que deixou de haver esses preconceitos em relação ao que é nacional por parte do público, como se vê nos concertos e nos festivais, ainda faz sentido essa discussão? TB: Não é verdade afirmar que não há música portuguesa de qualidade, em quantidade suficiente para cumprir as atuais quotas, como se tem ouvido por parte de algumas rádios. É uma mentira e tem de ser dito com todas as letras. Não é preciso recuar muito, só a que foi feita nos últimos dois anos dá perfeitamente para cumprir essa quota dos 25 a 30 por cento. E ainda ficam 50 anos de grande música para trás. Nenhuma rádio cumpre o que está estipulado. Isto não vai lá por decreto, é uma questão cultural e de mentalidades, até porque à exceção da rádio pública não podemos dizer a uma estação privada o que deve ou não tocar. O que não pode ser admitido é que venha alguém dizer que não há produção suficiente de músico portuguesa, como fez o senhor Luís Mendonça, presidente da Associação Portuguesa de Radiodifusão, porque isso é mentira. Senão como é que pessoas como o Miguel Araujo, o António Zambujo, o José Cid, a geração mais nova da Bárbara Tinoco e da Carolina Deslandes, enche concertos atrás de concertos? As gerações mais novas já não ouvem rádio, estão no Spotify, onde ninguém lhes diz o que têm de ouvir.