"Quem não estiver de acordo com os valores europeus não deve estar connosco"

Comissário europeu sobre os atropelos ao Estado de direito em alguns países de leste. Entrevista DN
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A conversa correu durante mais de uma hora no gabinete do Comissário Europeu para a Investigação Ciência e Inovação, no sexto piso do edifício Berlaymont e depois de um almoço tranquilo uns andares mais acima. O dia estava gelado meio de dezembro e o bairro europeu de Bruxelas politicamente a anos-luz dos tempos em que o nome "Carlos Moedas" entrou no dicionário da política portuguesa, como o secretário de Estado que teria como missão o contacto com a Troika e a vigilância do programa de ajustamento económico e financeiro. Aliás, Moedas acabaria a entrevista a dizer que é hoje muito mais feliz do que nesses tempos, apesar das saudades de Portugal e de ainda se sentir seduzido pela política partidária nacional.

Do gozo que sente ao ver os seus bolseiros a ter sucesso aos desafios institucionais de uma Europa que é ainda um travão ao total aproveitamento da investigação científica e da inovação, a conversa foi longa. Passámos pelas ameaças à democracia e ao Estado de Direito nalguns países-membros, demorámo-nos na análise aos processos de decisão na União e às peças que ainda faltam no edifício do Euro, e falámos da imagem e da voz de Portugal na Europa.

Acabámos a falar das relações com o governo e da política portuguesa. Um final de conversa de sorrisos e hesitações, limitado pelo cargo na Comissão e no qual Carlos Moedas confessou a saudade pelo país e admitiu que ainda se sente seduzido pela política partidária. Essa parte da entrevista será publicada na edição de domingo, hoje falamos de Europa.

Está aos comandos daquele que é o maior fundo de sempre, o maior programa-quadro de sempre, para investigação e inovação na Europa. Qual é que tem sido a resposta dos países, das instituições desses países, das universidades, empresas, até investigadores individuais que resposta é que têm dado a este programa? Tem estado à altura?

Eu penso que é um dos programas mais interessantes que a UE tem, porque é um programa um bocadinho como o Erasmus, que liga diretamente a Europa às pessoas, é aquele tipo de programas que hoje em dia já não se fazem, que são os programas em que a própria pessoa, neste caso o investigador ou cientista ou empresário, tem contacto não diretamente com o país dele mas diretamente connosco e acho que deveríamos ter mais isso, mais programas que liguem diretamente as pessoas, e por isso a adesão é extraordinária. Enfim, no dia 10 tive o prazer de estar nos prémios Nobel a ver, mais uma vez, pessoas que foram nossos bolseiros a serem galardoados com o prémio Nobel e acho que isso é um trabalho extraordinário da Europa. Quando pergunta a qualquer cientista em qualquer parte da Europa o que é que pensa sobre este programa, a reação é sempre positiva.

Já há bolseiros com a sua influência?

Não, estes aqui já vêm de antes, já vêm do passado. Com a minha influência eu penso que tenho tido um impacto grande no aumento desses bolseiros sobretudo em Portugal, em que, quando eu comecei, no programa anterior, nós tínhamos mais ou menos 50 bolseiros. Portugal, no último programa-quadro, tinha 50 e neste programa vamos a meio e já tem 50, portanto já ultrapassámos aquilo que tínhamos feito nos últimos sete anos. E tenho visto, o que me traz algum orgulho pessoal, as pessoas, os investigadores em Portugal, a olharem para mim como um português que para além de representar toda a Europa também os representa, e que isso também melhora a imagem do país na área científica.

Portugal também está a responder ao estímulo, estamos um pouco na moda nesta área, não é, com a Web Summit O Comissário corre a Europa toda; na comparação com a forma como as universidades e pequenas e médias empresas dos outros países respondem, como é que qualificaria a atitude de Portugal?

Eu acho que Portugal tem tido sempre, e isso vem de trás, mas agora temos alavancado esse interesse das universidades, dos laboratórios e dos investigadores. E temos tido a capacidade, através do programa europeu, de realmente atrair muita gente de fora, muitos portugueses que estariam eventualmente fora de Portugal e que estão em Portugal porque nós temos estas bolsas. Se for desde a fundação Champalimaud ao Instituto Gulbenkian da Ciência, à Universidade do Porto, do Minho e todas essas, há muitos destes bolseiros que, de outra forma, não estariam em Portugal e que estão em Portugal. Aquilo que eu tenho visto de mudança para melhor tem sido na parte das empresas e nessa ligação das empresas às universidades. Isso no meu tempo, quando eu era estudante no Técnico, nós acabávamos no Técnico e queríamos arranjar um emprego, não tínhamos a ideia de fazer a nossa própria empresa, e isso mudou completamente. E penso que isso acelerou com este fenómeno do Web Summit, das start-ups e das empresas, é realmente extraordinário de observar, um país em que um estudante de engenharia queria ir trabalhar para uma grande empresa e em que hoje quer fazer a sua própria empresa.

Em ciência nem todo o investimento tem de ser produtivo, aliás, até arriscaria dizer que há uma boa parte do investimento que é em investigação fundamental, em nome do conhecimento. Tem noção, passados estes três anos, quanto deste dinheiro é que gerou riqueza e produziu valor?

Sim, eu acho que isso é um dos desafios. A Europa tem esta grande vantagem de sermos realmente os melhores na ciência fundamental. Somos 7% da população e produzimos mais de um terço de todos os papers científicos do mundo. E nos últimos cinco anos, e aí eu tenho algum orgulho nisso, a Europa conseguiu pela primeira vez ultrapassar os EUA naquilo que se chamam as citações, ou seja, nos melhores 10% de artigos já estamos à frente dos Estados Unidos e no top 1%, ou seja, aqueles mesmo muito bons também. Aquilo que não temos feito bem é a transformação dessa ciência fundamental em produtos. E isso tem várias razões, uma delas é a própria fragmentação europeia e daí uma razão para acreditar no projeto europeu, é que se a Europa fosse uma só, com leis mais homogéneas, com leis do trabalho, com leis do mercado do produto, com um sistema de Justiça mais homogéneo era mais fácil. Quer dizer, podemos criticar ou não, podemos falar de soberania ou não, podemos falar de todos esses temas, mas isso criaria uma escala que hoje não temos. Eu fico sempre muito triste quando vejo portugueses e de outros países a dizerem "fiz a minha empresa mas agora tenho de ir buscar capital aos Estados Unidos e vou para Silicon Valley". Porquê?

É o percurso normal, não é?

Porque é o percurso normal. E eu acho que é isso que nós realmente temos de mudar, a maneira como ajudamos Nós no fundo ultrapassámos a primeira fase que era ajudar as pessoas a criar a sua empresa e nisso na Europa melhorou muito. Mas não chega. É preciso criar uma empresa e depois é preciso fazê-la crescer.

Não há uma cultura de risco?

Sabe, eu sou muito contra essa ideia da cultura porque eu acho que um europeu aliás os melhores empreendedores no Silicon Valley são europeus, têm a cultura europeia eu acho que o problema aqui é um problema de incentivos. Ou seja, se eu souber que no meu país, se eu tiver uma dificuldade, se a minha empresa for à falência, vai demorar dez anos para liquidar e vou ficar com uma marca no sistema fiscal, com uma nódoa na minha vida, eu não vou criar nenhuma empresa. Portanto eu acho que a cultura europeia é excelente porque é uma cultura de diversidade, de vários países, de maneiras de pensar diferentes. Os incentivos é que não têm sido os melhores numa Europa que deveria estar mais unida, que deveria ser menos fragmentada.

E em que é que nós podemos, nós a Europa, em que é que pode diferenciar-se de Silicon Valley, de Shenzhen, de Bangalore, dos grandes centros de criação de ideias e de valor à volta de novas ideias? Nós temos um património específico nesta área? Temos de copiar modelos

Não. A Europa em si, ou a ideia de UE, é o projeto mais interessante e que eu diria que tem a maior vantagem para a inovação, porque uma Europa com 28 países, 27 sem o Reino Unido, com 23 línguas diferentes, com a diversidade que temos, essa é a melhor receita para a inovação, porque a inovação só acontece com diversidade. Ou seja, se nós formos os dois muito amigos e somos os dois de Beja e fomos para o mesmo liceu e pensamos da mesma ideia, uma coisa é certa, dificilmente vamos inovar, não é? E a Europa tem esse DNA, ou seja, o nosso DNA é essa diversidade que nos levou a guerras atrás de guerras atrás de guerras até encontrarmos o projeto da União Europeia. E então a Europa tem tudo para que isso aconteça ainda mais do que noutros pontos do mundo. E portanto eu não acredito

Então faltam os tais incentivos de que falava há pouco?

Faltam os incentivos e falta também a ideia de não querermos copiar os outros, ou seja, eu não vejo na Europa um Silicon Valley, eu acho que a Europa vai ter muito mais uma rede como hoje vemos entre Lisboa, Amesterdão, Berlim, Paris, uma rede de pequenos Silicon Valleys, com diferentes especialidades, com diferentes pessoas e com uma ideia muito própria da Europa. Portanto eu acho que não vamos ter o nosso próprio Silicon Valley mas digo sempre que podemos ter vários Silicon Valleys se fizermos as coisas bem, se conseguirmos realmente acabar de uma vez por todas com as pequenas peças que faltam no projeto europeu.

Essa questão do estímulo e do incentivo, vê isto com uma forte componente da UE ou dos Estados em si? Não vê que isso aconteça apenas com iniciativa privada?

Eu acho que no mundo da inovação e da ciência é essencial o privado e o público, os dois são essenciais, por uma razão simples: é que em determinadas áreas da ciência e da inovação, o privado nunca vai atuar. Quando o risco é demasiadamente grande, quando estamos a falar de ciência fundamental, é muito difícil que um privado se interesse em pôr dinheiro em algo que poderá nunca ter retorno ou que poderá ter retorno daqui a 50 ou 100 anos mas não sabemos. Aí tem de haver dinheiro público e portanto é uma área em que tem de haver um misto bem equilibrado entre dinheiro público e dinheiro privado, não podemos pensar que é só dinheiro privado. Aliás, nos EUA também há muito dinheiro público na ciência e na inovação, um homem como o Elon Musk, de que nós falamos com grande orgulho da Tesla, teve mais de 5 mil milhões em apoios públicos nos EUA. Aquilo que tem aí à sua frente, o smartphone, tem desde o ecrã de cristais líquidos até tudo o que está à volta foi dinheiro público. E por isso eu acho que o dinheiro público é essencial nesta área e que traz um valor acrescentado essencial ao nível da EU.

Já tem conhecimento de algum negócio concreto que tenha saído da Web Summit em Lisboa?

Da Web Summit não em particular, não tenho conhecimento de nenhum em particular, mas há muitos negócios que vi na Web Summit que eu acho que têm um grande futuro e espero daqui a um ano poder acompanhar alguns desses da Web Summit que vi, que observei, com quem falei. Nós próprios estivemos nós, União Europeia, a apresentar alguns dos nossos grandes empreendedores, por exemplo uma senhora, uma investigadora inovadora que criou o primeiro tablet para pessoas cegas, pessoas sem visão, que é algo que é extraordinário e que eu acho que vai ter um impacto enorme na vida das pessoas. Ou empresas que estão agora a tentar produzir em impressão 3D casas por 30 euros, em África, e portanto todos esses projetos passaram pela Web Summit e terão sem dúvida impacto no futuro. Mas deixa-me a curiosidade de depois procurar se esses que eu conheci depois.

Estávamos a falar dos estímulos, desse incentivo, no fundo a que quem tem as boas ideias fique na Europa. Eu estive em São Francisco este ano e estive com muitos portugueses lá, jovens, empreendedores, com ideias em vários estados de desenvolvimento, o facto é que eles estavam lá, não estavam na Europa, lá está, nem em Amesterdão, nem em Berlim nem em Londres, estavam do outro lado do Atlântico e estão a criar valor noutra economia. O que é que a Europa, que tipo de mecanismos é que se podem criar para segurar esta gente cá, no fundo para segurar este potencial de ideias deste lado do Atlântico?

Há vários pontos na sua pergunta. Acho que por um lado vamos ter, nos próximos dez anos, uma oportunidade de atrair os melhores para a Europa, exatamente porque o mundo e os nossos aliados americanos começaram a ter uma visão diferente sobre o mundo aberto e o mundo fechado e a Europa continua a ser o centro do mundo aberto, e ser o centro do mundo aberto faz com que eu, nos últimos seis meses, tenha recebido mais telefonemas de cientistas tanto no Reino Unido como nos EUA a perguntarem e a saberem informações sobre quais as bolsas que temos na Europa e como é que podem vir para a Europa. Isso é

Conjuntural

É conjuntural mas a História foi sempre feita dessas conjunturas que se tornaram estruturais. Durante os anos antes da II Guerra Mundial, nos EUA em Princeton criou-se um centro que era o Centro para os Estudos Avançados e foi nessa altura que o Einstein, o Lawrence, basicamente todos os grandes intelectuais judeus da física foram para os EUA e há um livro muito interessante sobre essa época em que o homem que era o Flexner que era o diretor do centro disse que isto vai ser a grande mudança para os EUA prepararem os próximos prémios Nobel para os próximos 100 anos e foi mesmo. Portanto eu acho que podemos aproveitar, de certa forma, uma situação que preferíamos não ter, seja o Brexit seja a situação que vivemos em diferentes partes do mundo, como uma maneira de atrair mais pessoas para a Europa. Depois, eu acho que enquanto não conseguirmos, politicamente, dizer assim - e eu acho que temos uma oportunidade agora extraordinária, que é a oportunidade de dizer "os britânicos decidiram sair, temos muita pena, respeitamos a decisão, vão", então o que é que a 27 nós queremos ser? O que é que queremos fazer a 27? Como é que podemos, de uma vez por todas, ter um mercado único digital, como é que podemos ter, de uma vez por todas, um mercado único que funcione nas vertentes todas do que é um mercado único? Porque a verdade é que alguém que queira montar hoje uma empresa na Europa tem de montar em Portugal e depois tudo é diferente e eu acho que podemos acelerar essa criação de uma união mais perfeita, que é um bocadinho agora aqui roubando à Constituição americana é o que eles dizem, uma união cada vez mais perfeita e nós, no tratado, dizemos uma união cada vez mais estreita. E eu acho que nós precisamos de uma união cada vez mais perfeita, uma união em que tenhamos, em que conseguimos acabar com parte destas barreiras que é o que nos mata. Porque um jovem português ou espanhol ou italiano que vai para Silicon Valley tem sempre um sonho, que é voltar para a Europa, não tenha absolutamente dúvida nenhuma. Agora também não podemos ser fatalistas E também temos de olhar e pensar assim "espere aí, nós temos hoje em Portugal exemplos extraordinários de empresas que vão buscar dinheiro a Silicon Valley e que estão em Portugal" a Feedzai, de que já falámos várias vezes, a Veniam no Porto, são empresas que a Feedzai, por exemplo, acho que nem tem clientes portugueses e está ali entre Coimbra e Aveiro, na zona centro. E portanto eu acho que temos também hoje, no mundo digital, as fronteiras e a geografia já não contam tanto. Portanto a pessoa pode ir a Silicon Valley buscar dinheiro, porque é aí que está a maior parte dos capitais de risco, mas depois podemos voltar para a Europa.

Já vamos voltar à conversa sobre a questão institucional e vamos manter-nos nesta área mais da investigação científica, mas quero fazer aqui um parêntesis foi notícia em Portugal há semanas que Portugal é o país que melhor tem aproveitado, na relação com o PIB, o programa de investimentos, o Plano Juncker. Há uma mudança ou sente que aqui, visto a partir de Bruxelas, sente uma mudança decisiva na forma como Portugal está a aproveitar os fundos comunitários? Sempre foi um handicap que Portugal teve

Portugal aproveitou muito bem durante muitos anos os fundos estruturais e o grande desafio que eu acho que Portugal tem de ganhar e que no fundo está a conseguir ganhar é passar do clube daqueles que estão nos fundos estruturais para o clube daqueles que também são muito bons naquilo que são chamados os fundos competitivos, ou seja, que não são alocados por geografia, e isso é o caso do programa Horizonte 2020, é o caso do Plano Juncker e portanto eu fico muito contente por ver que Portugal está no top 5, aquilo vai variando em relação ao nosso PIB, Portugal está no top 5 daqueles que melhor utilizaram os fundos Juncker, neste momento já são quase 2 mil milhões de euros que potenciarão até 5 mil milhões de investimento. E eu acho que Portugal tem conseguido realmente Portugal primeiro provou que foi capaz de sair sozinho de uma crise, ou seja, recebeu ajuda da Europa e conseguiu sair, e isso deu uma marca de credibilidade extraordinária ao país. Depois há mudança de governo e o país continua num bom caminho dessa recuperação e portanto isso trouxe As pessoas às vezes em Portugal não têm noção, como eu tenho aqui, de que os países, as pessoas não olham para os países em notícias concretas do dia a dia, notam uma tendência e Portugal entrou numa tendência positiva e isso tem criado uma credibilidade que se ganha mas que também se perde depressa, temos de ter sempre cuidado para não a perder, a credibilidade é das coisas que mais depressa se perde mas entrámos nessa, vá lá, nessa subida da credibilidade e agora podemos aproveitar mais, cada vez mais, estes tipos de fundos e de fundos que são mais competitivos e que eram um bocadinho no fundo os fundos dos países ricos. Eu lembro-me que quando vim aqui para este portfólio em Portugal havia pessoas que diziam "ah, mas o programa do Moedas é um programa dos países ricos" e isso no fundo hoje não é verdade, não é verdade porque Portugal neste momento já conseguiu fazer mais do que tinha feito no programa anterior, portanto Portugal continua a fazer bem e isso são boas notícias. Eu acho que, como portugueses, temos sempre a ideia de que não somos tão bons como somos, ou seja, temos sempre uma ideia mais negativa sobre a nossa própria pessoa, sobre o nosso próprio país, que temos de ultrapassar, temos de ultrapassar.

É um problema de autoconfiança?

Não sei se é um problema de autoconfiança, mas é um problema intrínseco, muito português, de estarmos sempre a olhar para os outros e a pensar que os outros são melhores. Eu costumo sempre dizer que, ao viver muitos anos fora, fiquei muito mais patriota no sentido de ver tantas coisas que eu acho que são melhores em Portugal do que noutros países e mesmo vivendo aqui no dia-a-dia em Bruxelas sinto que há coisas muito melhores em Portugal e portanto às vezes essa perspetiva tem que se construir.

Deixe-me só mudar aqui um pouco de assunto. Como é que um comissário europeu com esta pasta da investigação, da ciência e da inovação, olha para a indústria 4.0? Sobretudo para o potencial de mudança social que todo este movimento tem, com automação, inteligência artificial, big data Isto encerra um potencial de mudança brutal. Está preocupado? Crê que estamos a avançar com pés seguros, com passos seguros?

Eu não gosto muito da palavra "indústria 4.0", porque acho que essa palavra implica algo muito europeu que é pensarmos que a indústria 4.0 é indústria, ou seja, é termos uma visão de um mundo físico, de um mundo em que os engenheiros eram os reis, para um mundo digital e físico, que ele vai ser sempre uma mistura dos dois, em que aquilo que está a acontecer vai muito para além da indústria. E a própria indústria já não é indústria, há uma parte da indústria que é serviços e há uma parte dos serviços que são indústria, ou seja, uma parte das empresas automóveis

Chamemos-lhe a "revolução 4.0"

Revolução 4.0. Essa revolução para mim tem três características fundamentais e aí temos de ter também algum orgulho em ser europeus, porque no fundo nós fomos os reis da primeira fase dessa revolução, que foi a criação da internet, o Tim Berners-Lee, a Nokia, a Siemens, eram europeus, e isso muitas vezes esquecemo-nos e esquecemo-nos quando estamos nos EUA a falar com o nosso telemóvel que o chamado backbone, aquilo que nós não vamos, as antenas que estão espalhadas por todos os EUA não são americanas, são europeias, são de empresas europeias. Portanto nós aí fomos muito bons. Depois os EUA foram muito melhores só na parte digital, nas aplicações dos telefones, tudo aquilo que é os Ubers, os Facebooks, etc. Mas esta terceira fase, esta revolução a que podemos chamar "indústria 4.0", vai ser de voltar à ciência fundamental onde nós somos muito bons, inteligência artificial, Blockchain, deep learning, ela vai ser muito mais, vai precisar de capital muito mais paciente, ou seja, não vai ser aquela coisa de investir e tirar o dinheiro e ir para a frente porque quando se está a falar de ciência fundamental isso não acontece. E portanto vai ser necessário ter uma visão muito mais europeia, eu costumo dizer que os anglo-saxónicos têm mais uma visão de entrar e sair e ganhar dinheiro e a visão europeia é mais de longo prazo, mais estratégica, e isso para mim vai ser fundamental nesta fase, e tenho orgulho nisso, e de ver que a Europa vai estar a avançar nesse sentido. E depois eu acho que vai ser uma fase em que ganharão aqueles que vão estar nas intersecções das disciplinas, naquelas áreas em que não estamos no centro da disciplina, se vir os prémios Nobel deste ano, nenhum deles era um especialista na sua própria disciplina, ou seja, o prémio Nobel da Física não era um físico, o prémio Nobel da química portanto tudo isso vai depender de nós conseguirmos na Europa também reformular os nossos sistemas de ensino para lá chegarmos.

E não vamos ter de repensar o mercado de trabalho, a forma como equilibramos trabalho e lazer, a forma como é redistribuída a riqueza? Não vai ter consequências nesse nível?

Eu acho que, o Keynes dizia sempre que quando chegássemos à altura de 2030, o problema da economia não seria a produção mas a distribuição. E eu acho que no fundo já chegámos a 2030. O mundo produz tudo aquilo que é necessário, portanto nós não temos um problema hoje no mundo de produzir, nós temos é um problema de distribuição e isso eu acho que vai ser o grande ponto político de toda a política nacional e neste caso supranacional que é, como é que vamos conseguir distribuir melhor essa riqueza? E isso toca o mercado de trabalho, porque primeiro qual é o tipo de trabalho que vamos ter no futuro? Como é que ele vai ser desenhado? Vamos trabalhar todos de casa ou não? Por exemplo, há dez anos, umas estatísticas que estava a ver esta manhã, há dez anos havia metade das pessoas que trabalhavam desde casa com teleworking do que há hoje na Europa, portanto o número multiplicou-se por dois. As pessoas trabalham mais de casa, há dez anos o número de pessoas que estavam no mesmo trabalho há mais de dez anos era o dobro daquelas que há hoje, portanto as pessoas mudam mais de profissão, mudam de trabalho. E portanto como é que eu vejo isso? Eu vejo que isso tudo tem a ver com o sistema de ensino, como é que nós preparamos as pessoas não para profissões mas para aprender rapidamente e aquela ideia, que em Portugal porque no fundo nós fomos educando cada vez mais pessoas e havia muito a ideia da geração dos meus pais que era "o que é que o meu filho vai ser? vai ser advogado, vai ser isto" e depois as pessoas às vezes perguntavam "então mas o seu filho é engenheiro e não está a construir nada, está a fazer uma coisa muito diferente" e eu acho que vai ser cada vez mais isso, porque todas essas profissões vão, muitas delas desaparecer, vão-se transformar. E portanto nós temos de criar sistemas de ensino que sejam resilientes e que ensinem as pessoas a aprender e não como noutro tempo se ensinavam factos. Ou seja, os factos hoje nós vamos ao telemóvel, aquilo que nós temos de saber é onde é que vamos buscá-los, como é que os vamos encontrar.

Vê como inevitável que se mude todo o sistema de financiamento do Estado Social na Europa? Que se passe aquela ideia de "taxar robôs", que se passe a taxar as empresas de capital intensivo de forma diferente daquelas que taxamos as de mão-de-obra intensiva?

Eu acho que ainda estamos muito longe disso e penso duas coisas. Primeiro, a melhor maneira na Europa que temos de manter o Estado social, que é o ponto que atrai mais pessoas para a Europa, ou seja, eu costumo dizer que quando saio da UE encontro as pessoas que mais adoram a Europa porque vêem na Europa essa capacidade da Europa social.

A Europa social só se pode manter se nós continuarmos a ter crescimento e se continuarmos a preparar as nossas economias para crescer. Quando uma pessoa vê uma economia como a economia alemã, que tem dos melhores Estados sociais que podemos ter na Europa não é uma economia barata, é uma economia de produtos de alta qualidade, muito caros, que constroem e que permitem criar emprego em que se pode pagar mais às pessoas. Essa é a primeira parte, manter o Estado social que temos. Depois acho que não podemos deixar de ver o impacto do digital nesse Estado social e o impacto digital é a criação de um novo tipo de setor, chamado "inovação social", em que Portugal por acaso é um dos países mais avançados na criação dessas empresas de inovação social.

A questão é que os desafios são muito grandes. Eu estive há semanas numa conferência com o principal lobista que trabalha aqui em Bruxelas, que é a Associação dos Construtores Automóveis da Europa, há 3,3 milhões de trabalhadores naquela indústria e a estimativa que eles têm com o aprofundamento da automação na produção de automóveis é que um terço venha a perder o seu posto de trabalho. É pesado para o sistema.

Por acaso vou-lhe mostrar uma fotografia que acho que dá um bocadinho uma resposta a isso. Isto é uma fotografia de Nova Iorque em 1905. O que é que vemos? Aqui em cima, quando olhamos, vemos cavalos, trotinetes com cavalos, a malta aqui toda a andar, as pessoas na rua; 20 anos depois, esta é a mesma fotografia. Em 1905 toda esta indústria que eram as pessoas que tratavam dos cavalos, isto em 20 anos desapareceu tudo. Mas criaram-se novas profissões que o tipo que estava aqui em 1905 não imaginava. Portanto quando um construtor de automóveis diz isso, ele esquece-se que, nesse futuro, vão-se formar novas profissões, que terão a ver mais com big data, pessoas que saibam trabalhar em data, mas não só. Se eu tiver um mundo em que os carros não têm condutor, eu vou ter de ter controladores aéreos que vão ser diferentes. E portanto eu sou um tecno-optimista, como se costuma dizer, acredito que é muito difícil para a mente humana imaginar o número de empregos e o número de profissões que vão ser criadas num cenário que nós ainda não conhecemos.

E como é que um tecno-otimista olha para o mundo em rede? Nós estamos cada vez mais ligados, o comissário usa as redes, ainda há pouco ao almoço falávamos da forma como os nossos miúdos as usam, da forma como vamos vivendo cada vez mais em bolha. Não nos estamos a alienar um pouco? Isto não pode ser perigoso, até mesmo para a democracia tal como a conhecemos agora?

É, eu penso que, da mesma forma que sou tecno-otimista, tenho a noção exatamente por esse otimismo de que estamos um bocadinho no momento em que não sabemos como regular essa abertura e esse mundo digital e mais uma vez faz-me pensar numa história que às vezes conto, que é muito reveladora nós muitas vezes como políticos não sabemos o que é que vamos fazer para um futuro. Em 1860 em Inglaterra criou-se uma lei a dizer que quando houvesse um carro no meio da estrada tinha de haver um homem com uma bandeira à frente do carro para avisar as pessoas e que os carros só podiam ir a dois quilómetros por hora. E eu acho que nós ainda estamos a tentar, estamos numa altura um bocadinho como o homem com a bandeira à frente do carro, quer dizer, o mundo vai ser muito diferente. Nós vamos ter de regular de alguma maneira. Eu acho que aquilo que se passa hoje em termos de e falámos disto à hora de almoço em termos de racismo, de afirmações completamente criminosas nas redes sociais, há uma data altura em que vai ter de ser regulado, aliás já devia ter sido regulado, porque no fundo as pessoas têm o direito de dizer aquilo que querem na sua esfera privada mas não têm o direito de dizer aquilo que querem numa esfera pública e hoje essa divisão ou a linha entre o privado e o público esbateu-se. Ou seja, o que é que é público e o que é que é privado? E as redes sociais vão ter de tomar uma posição. Nós constituímos um grupo de trabalho com uma colega sobre as notícias falsas, sobre as chamadas fake news, para analisar exatamente o que é que podemos fazer, o que é que se pode fazer, porque o efeito que isto pode ter na democracia é terrível e portanto temos de o pensar.

Mas admite nesse esforço colocar alguma limitação à liberdade de expressão?

Não, eu acho que a liberdade de expressão é e deve ser sempre um dos princípios básicos da UE. Aquilo que eu ponho é um traço ou uma linha vermelha ou o que lhe queira chamar sobre aquilo que é crime, ou seja, é crime ser antissemita, é crime ser antimuçulmano, é um crime falar como se vê nas redes sociais sobre o Holocausto como se fala, isso é um crime, não é liberdade de expressão, é um crime.

O ódio deve ser a fronteira que define ou que faz parar a liberdade, é isso?

E temos de ter essas fronteiras e temos que tê-las sem medo de o dizer, porque a minha liberdade realmente acaba onde a liberdade do outro começa e quando eu vejo que as pessoas não respeitam a liberdade dos outros então temos um problema.

Vamos à política europeia. Estamos a falar em dia de Conselho Europeu, onde foi dado um passo para uma segunda fase do Brexit. Aqui chegados, temos uma líder britânica aparentemente frágil internamente. Acredita que isto vai mesmo acontecer, que vai mesmo haver um Brexit?

isso é uma pergunta difícil. Eu penso que sim, que vai haver um Brexit, espero que o consigamos realmente fazer nos tempos dos dois anos que temos pela frente, até 2019, mas acho difícil, acho muito difícil. Penso que tivemos boas notícias na última semana, em que se conseguiu algo que eu pensei que não seria possível naquela semana mas que a Comissão conseguiu com a primeira-ministra May decidir em relação à liberdade de circulação, em relação àquilo que os britânicos nos devem, uma vez que faz parte dos compromissos financeiros deles, e em relação ao ponto tão crucial e tão único que é o ponto da Irlanda do Norte.

Repararam agora porque no sítio onde circulavam todos os dias havia uma fronteira.

Exato, então e agora como é que vamos fazer? E eu acho que é extraordinário e que é também uma grande lição. Agora, ponto número um, estou optimista porque se conseguiu chegar a esta primeira fase e eu já achava muito difícil. O que é que vai acontecer daqui para a frente? Não sabemos, mas uma coisa temos demonstrado na Europa, é que a Europa está preparada e que a liderança aqui do Michel Barnier tem sido extraordinária, aberta, para encontrar uma solução e esperamos ter a resposta dos britânicos e que os britânicos estejam à altura de conseguir fechar isto.

Mas não acha que tudo isto vai acabar substituindo uma relação especial por outro tipo de relação especial? Porque o Reino Unido já tinha uma relação especial com a Europa, já não era bem, bem, bem um membro como os outros

Sim, mas eu acho que o povo britânico é interessante essa pergunta, é realmente a pergunta, porque no fundo o povo britânico quis formalmente dizer que não quer ser parte da Europa

Mas

Mas será sempre parte da Europa, porque no dia em que uma empresa britânica que venda vamos dizer bananas ou aspiradores ou o que for para a Europa tem de respeitar as regras da Europa, porque senão ela não pode vender os aspiradores ou as bananas ou o que seja. Portanto aquilo que eu vejo politicamente é que um dia os britânicos vão-se dar conta de que aquilo que têm não é muito diferente do que tinham. Ou seja, eles eram membros da União, mas depois vamos ter de criar uma relação em que vamos ter de ter regras entre os dois e portanto naturalmente, porque o mundo é global, não é, o mundo é global.

Esse não é um sinal, ou seja, se houver um Brexit que não seja um hard Brexit, em que não haja castigo, que não se sinta que houve uma diferença, isso não é um sinal de encorajamento para outros países virem eventualmente a libertar amarras?

Há sempre uma grande diferença, e é uma diferença fundamental: é que aqueles que são membros da UE têm um lugar à mesa e para países como é o caso de Portugal esse lugar à mesa é essencial, porque esse lugar é influenciar a visão, influenciar as leis, influenciar aquilo que se faz. Qualquer relação, por mais especial que seja, entre a Europa e o Reino Unido, é uma relação em que o Reino Unido não está sentado à mesa.

Não está envolvido nas decisões.

Nunca poderá fazer parte aliás, veja-se a Noruega, a Suíça e outros países, há essa grande diferença, é que eles têm de respeitar as nossas regras sem as construir. E portanto eu acho que a vantagem de ser membro da UE é extraordinária.

Entre a Europa com que convivia diariamente em que era uma espécie de guardião do memorando e esta Europa que temos hoje vai um mundo de diferença. Ainda assim, e essa é uma opinião minha, eu acho que muito do que mudou deve-se a uma questão conjuntural, sobretudo a nível económico e financeiro. O que é que falta fazer neste prédio, ainda falta fazer muita coisa?

Falta muita coisa, eu acho que falta muita coisa. Falta primeiro aclarar de uma vez por todas o que é que é o papel da Comissão Europeia, da Europa e dos países. As pessoas não sabem isso. Hoje as pessoas acusam-nos de tudo aquilo que é mau porque não sabem o que é o papel da UE. As pessoas acusam a Europa em relação ao fenómeno do desemprego, quando a Europa não tem utensílios, não tem capacidade, a Europa gere menos de 1% do orçamento total sobre o subsídio de desemprego, portanto não

Acha uma boa ideia um estabilizador automático comum?

Aquilo que foi agora lançado pela Comissão como sabe sobre a nova proposta sobre a união de mercado de capitais e a união de mercado bancário que lançámos agora, o European Monetary Union, foram várias ideias entre elas essa que está a fazer, do estabilizador automático. O que é que isso quer dizer? Isso quer dizer que, nós até agora só tínhamos um instrumento que era um instrumento de dizer que, quando um país tinha um problema, íamos dando uns avisos e depois o país entrava em crise e tínhamos que lhe emprestar dinheiro basicamente o que aconteceu a Portugal. Aquilo que estamos a propor é um sistema em que antes de um país chegar a esse grande problema, podemos atuar com um estabilizador automático, seja ele por exemplo a capacidade de ir buscar dinheiro para dar, emprestar a esse país, isso ainda vai ser estudado, mas que esse país possa imediatamente atacar na parte do investimento. E portanto criámos esta proposta deste mecanismo, de um estabilizador para o investimento. Se isso tivesse acontecido na altura em Portugal poderíamos talvez ter evitado

Mas tem noção que esse discurso está a anos-luz daquele outro discurso que nós ouvimos a partir de 2008 do castigo ao sul, do andaram a gastar acima das vossas possibilidades e por aí fora, mudou muita coisa

Sim, isso mudou, mudou, mudou.

Até um bocado estruturalmente na arquitetura do euro, mas há uma mudança

Primeiro, as coisas mudaram muito politicamente em todos os países, não é, nós hoje olhamos para a Europa e vemos novos partidos políticos como o caso do Macron que é um novo partido político, que está ali, vá lá, entre o nosso PS e o nosso PSD, o Macron está ali naquele meio. Vemos uma Alemanha que, neste momento, tem de estar a negociar à esquerda e que tinha toda uma capacidade política que não vai ter no futuro e portanto houve mudanças muito fortes e também houve o resultado de todos os esforços que se fizeram durante a crise fazem hoje duas coisas muito simples: a Europa está com a taxa de desemprego mais baixa desde há nove anos e a Europa está a crescer a 2% e penso que isso, apesar de ser moderado, era muito bom que fosse mais, já é um sinal de que conseguimos ultrapassar a crise. Mas tem toda a razão, politicamente tudo mudou.

Mas a questão é que não estamos a usar essa mudança para atuar de forma estrutural nas instituições. Ou seja, continuamos à mercê de um choque global

Não aquilo que temos estado a fazer é construir esses building blocks, ou essa construção daquilo que tinha de ser feito, por exemplo na união bancária nós conseguimos dar passos gigantes, ter um mecanismo único de supervisão e isto é essencial para controlar os bancos a nível europeu e conseguir ver aqueles que estão bem ou que estão mal. O mecanismo único de resolução, quando há um problema num banco é resolvido ao nível desse mecanismo único de resolução. Falta-nos ainda o acordo sobre a garantia de depósitos, que é importante e que está no parlamento, entre o parlamento e o conselho e os países. Mas vamos conseguir. No caso aqui desta criação ou desta proposta que fizemos de ter um fundo monetário europeu, que é uma proposta que tem um grande consenso em Portugal, aliás, na altura Pedro Passos Coelho tinha sido um dos homens que lançou essa ideia para a Europa e que tem tido um consenso neste governo e que agora a proposta veio-se materializar nesta proposta da Comissão que tem vários aspetos importantes. Um é como é que nós podemos dar incentivos aos países para fazerem as reformas necessárias e como é que nós podemos ligar mesmo os fundos estruturais a essas reformas. Ou seja, nós não podemos ter incentivos negativos, ou seja, se um país faz mal retiramos-lhe isto, porque isso é aquela Europa punitiva que eu estou totalmente contra. Mas podemos ter incentivos positivos, ou seja, se um país homogeneizar o seu mercado de trabalho com a média europeia, se tiver uma economia mais flexível, se fizer essas reformas então damos-lhe mais dinheiro, damos-lhe mais fundos estruturais. E isso vai ser difícil, vai ser uma luta com o parlamento e com o conselho, mas a Comissão teve a coragem de o propor.

Estamos a cumprir agora dez anos do Tratado de Lisboa, o Augusto Santos Silva usava há semanas aquela frase famosa do Churchill para dizer que este tratado é o pior de todos à exceção de todos aqueles que já tentámos até agora. Parafraseou Churchill em relação à democracia. Tende a concordar com esta visão? Que o Tratado é bastante imperfeito mas que é o melhor que se arranjou até agora?

Como todos os tratados, não é, como todos os tratados, porque eu acho que aquilo que a Europa tem de extraordinário é conseguir pôr tantos países à volta da mesa para chegar a consensos e que aquilo que, eu diria que se não houvesse estes tratados, talvez tivesse uma situação de guerra entre países e que isso hoje já nos esquecemos de há muito tempo. E portanto realmente estou de acordo com a afirmação, aliás porque é preciso pensar que antes do tratado vinha toda a ideia de uma Constituição europeia, que não avançou, e portanto o Tratado foi aquilo que se conseguiu fazer. Acho que o Tratado deu grandes passos e isso é importante e temos de ter muito orgulho de ser chamado o Tratado de Lisboa, mas eu penso que temos de ver dentro da flexibilidade do Tratado o que é que ainda podemos fazer mais. Por exemplo, temos de conseguir fazer mais decisões que não sejam feitas de uma forma ou por uma votação por unanimidade. Eu acho isso essencial para a Europa e portanto temos de ver dentro do próprio Tratado, em que se deu alguma flexibilidade, houve alguma inteligência daqueles que o fizeram, de deixar algumas cláusulas que eles chamam cláusulas de ponte em que se pode construir maneiras de ter mais decisões que sejam feitas apenas por maioria e não por unanimidade. Porque a grande dificuldade na Europa é todas as decisões que temos de tomar por unanimidade, porque a 28 não pode haver unanimidade.

Não merecia a Europa outro tipo, primeiro, de representatividade, outros esquemas de representatividade, e um outro processo de tomada de decisão?

Aquilo que eu acho que é o ponto que eu concordo com o que está a dizer é o ponto da tomada de decisão. Acho que a tomada de decisão na Europa é complicadíssima e que os europeus não percebem a Europa exatamente por essa tomada de decisão. Por exemplo, nós tomamos uma decisão na Comissão, lançamos como uma proposta, vem nas notícias e depois, três anos depois, as pessoas perguntam: então mas não foi já anunciado? Ah foi, mas agora está a ser discutido entre o Conselho e o parlamento, etc. Eu acho que demora, demora, demora, e portanto eu penso que temos de ter métodos de conseguir tomar decisões de uma forma mais rápida, mais expedita, e como dizia em que não seja sempre por unanimidade. E depois que não haja esta história, estes mitos de que a Europa decidiu que tinha que ter bananas com este tamanho e os aspiradores só podiam.. que muitas vezes são realmente, que não são decisões que foram tomadas pela Europa, são decisões que foram tomadas pelos países, não é? e isso nós agora durante esta discussão do Brexit encontrámos muitos destes exemplos em que estes países é que tinham provocado essas mudanças de última hora em legislação que era proposta pela Comissão Europeia e que era totalmente limpa.

Como é que viu a proposta de Martin Schulz, de apontar uma meta, daqui a oito anos, em 2025, termos uns Estados Unidos da Europa?

Eu acho que, em política, temos que ter algum cuidado em fazer propostas que nós sabemos que não vão ser possíveis num determinado tempo. Ou seja, eu acho que essa proposta a oito anos não é uma proposta possível dentro daquilo que é hoje a Europa. Eu considero-me um apaixonado pela Europa, penso que a Europa devia ter mais poderes do que tem e que esses poderes deviam ser claros, e acredito que dentro de 50 anos porque repare, os EUA demoraram 100 anos haverá, agora ia aqui fazer uma coisa como dizem os Gato Fedorento que é uma espécie de federalismo, mas que não é o federalismo americano, porque esse nunca será possível. Haverá uma união de Estados-nação que terá ou que dará mais poder a essa união do que ela tem hoje. Daí até quando é que haverá uma Europa federal já não será nas nossas vidas portanto não vale a pena como políticos porque por mais que possamos acreditar nisso ou que possamos achar que essa é a solução

Não é o momento?

Não é o momento e não vai acontecer. Portanto aquilo que eu acho que deveríamos estar aqui a fazer como propostas como políticos é dizer "Vamos aproveitar estes dois anos para definir os próximos dez anos e vamos definir nestes dois anos o que é que é realmente o poder da Comissão". Por exemplo, em relação aos tratados comerciais, em relação aos grandes tratados como tivemos, como é que é possível que um parlamento na Valónia, na Bélgica, tenha conseguido parar um tratado com o Canadá? Não é possível e portanto isso tem que ser um poder exclusivo da Comissão Europeia, ponto.

Isso é ceder poder, não é?

É ceder poder mas isso vai ter que ser feito, vai ter que se ceder mais poder à união em certos casos e noutros casos na volta a União Europeia não tem nada que se meter e deixar aos países. Mas temos que clarificar. E portanto eu acho que clarificando, realmente a UE de certa forma torna-se mais unida e tem mais poder, portanto nesse caminho que Martin Schulz define, mas não é um federalismo, e por outro lado os Estados também têm mais poder noutros aspetos.

Nós estamos a gravar esta entrevista dias antes das eleições na Catalunha. Não lhe peço para falar aqui de dados concretos, prefiro falar consigo do desafio que significa aquele tema para a união. O que é que está a nascer ali?

Primeiro tem que haver algo muito claro, a UE defende os seus Estados-membros e o Estado-membro da UE é Espanha e portanto não pode haver qualquer dúvida sobre a UE dar todo o apoio ao seu Estado-membro que é Espanha. Aquilo que me preocupa não é a Catalunha per se, é que num mundo cada vez mais global, que num mundo em que cada vez as decisões dependem menos dos países e que hoje temos que lutar em conjunto, estejamos a criar estes movimentos de independência, na Catalunha, na Itália E eu tenho a sensação que é um bocadinho andar para trás, não é, e isso preocupa-me, preocupa-me como fenómeno. Mas não posso deixar, e fi-lo também publicamente, de dar todo o apoio a Espanha, até porque aquilo que se passou foi dentro da ilegalidade e ninguém está acima da lei no seu país.

E que papel é que a Comissão pode ter nestes casos, apenas o poder da palavra?

O poder de defender o seu Estado-membro, eu penso que isto é realmente algo que tem de ser resolvido em Espanha e pelos espanhóis e por muito diálogo entre as partes. Penso que vai demorar anos, porque o problema destas situações é abrir feridas. Eu costumo dizer que os políticos têm de evitar a abertura de feridas e portanto têm de dar o corpo ao manifesto e apanhar com as balas se for preciso mas para não abrir feridas. E hoje em dia vemos que há muitos políticos que podem ganhar no curto prazo abrindo feridas, só que se esquecem que depois a ferida não fecha. Abrir feridas na sociedade fica para décadas. Estas pessoas que viveram esta situação de abertura de feridas dos dois lados vai ficar por muito tempo, aliás, vimos agora há poucos dias uma notícia terrível de um rapaz em Saragoça que tinha uns suspensórios com a bandeira de Espanha e que foi atacado e que foi assassinado por um ativista. Isso dá-me uma revolta enorme que essas coisa possam acontecer na Europa, porque se abriram estas feridas, portanto como é que as vamos fechar, não sei.

Era precisamente por aí que eu queria ir, que é, estes movimentos alimentam-se de um, há um campo fértil de insatisfação, de alguma desilusão de largas faixas da população, como é que se pode travar isto ou se este é um caminho que pode ser invertido? Também é otimista aqui? Ou menos do que na parte da tecnologia?

Cautelosamente, sou cauteloso. Eu acho que tem a ver com o ponto que dizíamos há bocado, da distribuição, não é, porque o que é que aconteceu nos últimos dez anos? Não podemos fechar os olhos a isso. A globalização, a tecnologia vieram-nos dar um mundo melhor, um maior acesso a tudo, hoje alguém que esteja numa pequena cidade no meio do Alentejo pode estar a falar com alguém em Nova Iorque, pode estar a produzir para alguém noutro país, mas viemos criar uma desigualdade na classe média e portanto toda esta geração destes ativistas, jovens, o que eles sentem é que foram excluídos, que não têm emprego, que têm uma vida pior do que os pais, e isso tem a ver com o ponto de conseguir reequilibrar as políticas de distribuição.

Também não nos podemos esquecer que essas perdas europeias na classe média corresponderam à criação de uma classe média na China, por exemplo.

Sem dúvida e por isso é que eu acho que é

E milhões e milhões e milhões de pessoas saíram da pobreza.

Exatamente, é o tal gráfico do elefante, do Branko Milanovi, realmente saíram muitos da pobreza, quase mil milhões, os ricos ficaram muito ricos, mas depois estes ficaram mal e estes por acaso os que ficaram mal estão todos, não estão todos mas quase todos, na Europa e nos EUA, estão naqueles que eram os países mais desenvolvidos e essa revolta só se pode combater se nós conseguirmos combater essa desigualdade e termos uma globalização que seja mais justa.

Redistribuição.

Redistribuição, exatamente.

Há dias o regulador polaco para a comunicação social avançou com uma multa bastante pesada para o universo polaco, estamos a falar de 320 mil euros de multa para o único canal público de televisão na Polónia porque transmitiram imagens de uma manifestação anti-governo. A Polónia está a um passo de quebrar a separação de poderes entre o poder executivo e o poder judicial aliás, a comissão acionou há dias, pela primeira vez o artigo 7 do Tratado de Lisboa, precisamente como reação a estas alterações constitucionais na Polónia. Na Hungria o historial já é ainda mais longo em relação a violações básicas do Estado de Direito democrático. Tirando esta decisão do artigo 7, inédita, não teme que esta elasticidade que a união tem demonstrado em relação a estes casos possa ter consequências bastante graves nos próximos anos?

Os exemplos que descreve deixam-me muito preocupado. Custa-me aceitar a atitude de alguns países de Leste, membros da UE. A UE teve um papel indiscutível a ajudar esses países na transição para a democracia após a queda do muro de Berlim. São hoje em dia, os que mais beneficiam dos fundos estruturais. Mesmo assim, defendem uma linha muito crítica em relação à UE e não demonstram qualquer solidariedade para acolher os refugiados. Desse ponto de vista, concordo com o Presidente Juncker quando diz que os países não podem estar na Europa a meio tempo, só para tirar as vantagens e recusar o resto. Essa clivagem Leste/Oeste dentro da UE é das questões mais preocupantes para o futuro da UE.

Os portugueses sofreram imenso com a crise porque não cumprimos, na altura, as regras financeiras do défice e da dívida. Tivemos que passar por algo de muito duro até cumprirmos as regras. Ora, a Europa assenta em valores e liberdades fundamentais que estão aqui em causa como a liberdade de expressão ou a independência do poder judicial. Se a UE age para fazer cumprir regras orçamentais, não iria agir para fazer respeitar valores fundamentais?

A Comissão europeia não pode aceitar estes comportamentos. Durante os últimos dois anos, a Polónia ignorou os alertas da Comissão europeia e aprovou 13 leis que violam o princípio de independência do poder judicial. Dar início ao artigo 7.1 do Tratado não é algo que a Comissão europeia faça de ânimo leve. Mas tivemos que o fazer.

E portanto aqueles que não estiverem de acordo com os nossos valores não deviam estar connosco. Aliás, eu acho que nesse ponto em particular até estou de acordo com Martin Schulz quando ele diz não estou de acordo com o ponto do federalismo porque acho que não faz sentido neste momento da nossa historia, mas estou de acordo que quem não quer ou que quem não acredita nos nossos valores não pode estar na Europa.

Eu lembro-me de o ouvir algures durante a campanha americana dizer que não tinha qualquer problema porque o Trump não iria ser eleito, não acreditava na eleição dele. Aqui chegados, quase um ano depois da posse, como é que tem visto a evolução da política norte-americana?

Primeiro devo constatar que me enganei (risos). Enganámo-nos quase todos. Foi realmente extraordinário porque era impensável na altura, quando eu falei, e se voltasse para trás também pensaria que seria impensável, e passado este tempo todo foi possível e aconteceu. Eu acho que a UE tem que guardar a melhor relação com os EUA porque é um dos nossos aliados mais importantes. Que tem que acreditar que os EUA são mais que o seu governo, que os EUA são um país que é muito maior do que a soma dos seus governantes, aliás, é um país em que o seu Presidente historicamente é uma figura que tem muito mais poder na política externa do que na política interna, por exemplo, para conseguir passar qualquer coisa na política interna tem muito mais checks and balances, barreiras.

Vimos isso agora com Jerusalém, não é?

E vimos isso agora, exatamente. Agora preocupa-me, preocupa-me olhe o caso particular de o Presidente Trump ter posto na agenda Jerusalém. Eu acho que as consequências são dramáticas, aliás, estamos a ver nas notícias pessoas a morrerem, as intifadas, a luta que já não se via há tanto tempo e estamos a falar de vidas humanas e portanto isso parece-me qualquer coisa de impensável, que um Presidente americano possa tomar uma decisão como esta em política externa. Realmente em política externa todas as palavras contam e aí preocupa-me muito aquilo que vejo na linguagem do Presidente Trump, obviamente que me preocupa, porque isso tem uma influência no mundo brutal.

A Europa não deveria estar a olhar para Trump como o canário na mina, como uma espécie de indicador avançado. Ainda há pouco falávamos aqui das fake news, da questão da bolha das redes sociais e dos perigos para a democracia. Temos ali um exemplo vivo, não é, do que se pode passar.

É, eu acho que isso deve-nos fazer pensar e deve-nos ajudar

E como estávamos a falar há pouco da classe média descontente, desse capital de zanga.

No fundo, foi exatamente isso, essa classe média numa América profunda, desempregada, que tem três empregos durante o dia, que não tem tempo no fundo sequer para ler um jornal quanto mais informar-se, porque no fundo muito dessa América mais profunda, as pessoas levantam-se às cinco da manhã, vão para o primeiro emprego, depois vão para outro para poderem ter o mínimo para viver, leva a que esse descontentamento

Mas provavelmente têm um telemóvel onde vão vendo os tweets do Presidente.

Exatamente, e vão concordando com eles, no fundo a realidade é essa e é uma realidade que nos deve fazer pensar para a Europa, no que é que isso pode ter influência

Na sua área não vê ali um perigo de impacto global na atividade deste Presidente? Estou a falar, por exemplo, de ter à frente da EPA alguém que não acredita nas alterações climáticas, de ter sido aprovado um pacote legislativo que acaba com a neutralidade da internet, isso não o preocupa?

Eu acho que terá influência. Talvez não tenha tanta influência como poderíamos pensar, porque as instituições são muito sólidas nos EUA, os orçamentos estão definidos e para lhe dar um exemplo os EUA continuam a investir ao nível federal muito mais do que a UE e isso vai continuar a acontecer. Agora, há sinais, como o caso da neutralidade na net, ou como ter à frente da agência ambiental alguém que não acredita, que vão ter um efeito muito grande, mais até nas relações públicas e na criação de redes com outros países, porque os cientistas nessas instituições continuam a fazer o trabalho deles, e nós temos que continuar a abrir as portas a esses cientistas para trabalharem também em conjunto com a UE. Mas terá seguramente impacto. Ainda não sabemos qual.

Em Bruxelas

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