O Hip-Hop na construção de um novo espaço urbano

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O Hip-Hop surgiu na década de 70 em South Bronx, em Nova Ioque. Historicamente uma zona de famílias trabalhadoras que, com a chegada do modernismo arquitetónico, entrou em decadência. Como as formas das cidades têm implicações na vida e nos comportamentos de quem as habita, depois do ápice modernista, vieram os problemas desse espaço urbano: melancolia e isolamento social, delinquência juvenil, crimes, prostituição, mercado negro e uma série de políticas que tardaram em dar-lhes resposta.

Ora, na década de 60, em South Bronx, observou-se um êxodo das classes médias e "brancas" (white flight) para as zonas suburbanas e, assim também, o desertar dos senhorios e das suas responsabilidades. Os despejos ou a falta de conservação dos imóveis tornou-se um problema para os que ficaram. Também a construção da Cross Bronx Expressway, autoestrada que passa pelo centro de South Bronx, acentuou este processo de segregação e declínio económico. Neste ambiente asfixiante e com a crise de 70, estas famílias com vários filhos dependentes viram as suas vidas serem agravadas. South Bronx tornou-se no pior ghetto Nova Iorquino, conotado como local de pobreza, crime, prostituição e droga, mas onde nasceu o Hip-Hop.

O Hip-Hop, desde a música à arte urbana, reflete as realidades e condições socioeconómicas e políticas de um contexto evidentemente marcado no espaço. E o ato de produzir Hip-Hop, reflete também, pela sua natureza, uma linguagem própria entre aqueles que se identificam com essas realidades. Por essa razão, a mensagem do Hip-Hop não pode ser desconsiderada como um movimento que acabará no seu curso, mas antes pelo contrário, uma expressão cultural com origens em problemas que resultaram de idílicas soluções modernistas. Nesta encruzilhada urbana, dentro de uma espiral de problemas, criou-se um ambiente de fermentação musical. Estes temas que dão corpo ao "rhythm and poetry" fazem hoje, parte das discussões sobre racismo, xenofobia, preconceito, gentrificação, insucesso escolar e falta de oportunidades. Com ritmos e rimas, surgiu assim uma crítica social e destino daqueles que procuram mudanças.

Com o passar dos tempos, são raras as definições musicais que não se alterem e o Hip-Hop, não foi exceção. Mark Fisher, indo ao encontro de Simon Reynolds também defendeu que este género musical se alterou, classificando-o como expressão do capitalismo tardio, despojado de ilusões sentimentais, caindo na realidade onde impera o capital e a lei do mais forte. Numa geração insatisfeita que encontra na fantasia hedonista um escape à realidade mundana, repetitiva e triste, o Hip-Hop que fazia dos infortúnios uma arte, tornou-se num produto autoalimentado que promove os problemas na sua génese. São vários os rappers que vemos ostentar sucesso monetário e fama, não pelo trabalho e ajuda aos seus semelhantes, mas por algo superficial e fugaz.

Em Portugal o mesmo aconteceu. Em bairros suburbanos degradados e estigmatizados e um movimento metropolitano centro-periferia, germinou o Hip-Hop português e nenhum outro conseguiu identificar tão bem os problemas que se iam sentindo nesses bairros classistas de índole segregadora. São vários os temas de Sam The Kid, Valete, Mind Gap, Da Weasel entre outros, onde se identificam os problemas e se fazem várias referências aos problemas urbanos acima expostos.

A título pessoal, pouco conheço do mundo do Hip-Hop português, mas tendo nos últimos tempos ouvido vários destes artistas, enquanto geógrafo e urbanista, considero-os bastantes proveitosos para reconhecer e verificar várias disfunções urbanas que remetem para as variadas tipologias de desigualdades: acessos às oportunidades, ao mesmo nível de educação, saúde, transportes, habitação, ambiente e espaço público, por exemplo. A maioria destes artistas e músicos trouxeram novas perspetivas para aquilo que uma cidade significa enquanto espaço cosmopolita e de acolhimento. É aqui que reside a vitória do rap, que é também vitória de tudo o que em tempos se considerou marginal aos bons costumes. É nesta tendência que se vê o melhor exemplo de que por vezes as cidades ganham vida com os que vêm de fora, neste caso, como os que vêm dos seus bairros mais periféricos, tal como aconteceu em Nova Ioque.

Neste instante, esses mesmos problemas persistem, devido às pesadas heranças de políticas sem considerações urbanísticas e do impacte das crises. Fruto disso, abriu-se um debate sobre o futuro das cidades e de um novo espaço urbano. As novas práticas sociais pós-covids irão exigir impreterivelmente a participação de cada cidadão, por isso, precisamos de espaços que reflitam essa ambição de participar. Para isso, como o Hip-Hop surgiu da vivência do espaço urbano, faço um apelo aos slides e referências das histórias criadas na cidade. Nada melhor do que discutir a cidade com aqueles que fizeram arte dos seus mistérios e complicações.

O Hip-Hop é justiça social, respeito e envolvimento, é a construção de uma comunidade em cumplicidade e é isso que precisamos no novo espaço urbano.

Daniel de Almeida, geógrafo e urbanista

danielguerreirodealmeida@gmail.com

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