Aconteceu em Alindao. O tenente-coronel Musa Paulino recebeu um e-mail do bispo responsável pela missão católica da cidade, no centro-sul da República Centro-Africana (RCA). Estavam a ser atacados por grupos armados e nas aldeias em volta havia civis a serem assassinados. Pedia ajuda urgente. Quando os militares portugueses chegaram, montaram a barreira de proteção ao redor da igreja, conhecida como a catedral, e, no espaço de 24 horas, o edifício que no início dos confrontos albergava apenas algumas dezenas de pessoas já contava com mais 20 mil civis barricados..As tropas portuguesas aguentaram a catedral toda a noite, mas Musa Paulino não esquece o homem de 30 anos que lhes chegou com a garganta aberta. Vira a família morrer às mãos das milícias, tinha sido ferido, mas fingira estar morto e conseguira fugir. Os militares pediram ajuda à Cruz Vermelha, mas o tenente-coronel nunca pensou que o homem durasse mais do que aquela noite. Mais tarde, voltou a vê-lo numa reportagem da cadeia de televisão Al-Jazeera. Com o ferimento sarado, olhava a câmara com olhos fixos. Na legenda, contava que tinha sido salvo pelos portugueses. Musa Paulino abana a cabeça, ainda incrédulo: "Juro que não pensei que sobrevivesse.".Esta foi uma das situações mais perigosas em que a primeira Força Nacional Destacada (FND) esteve envolvida no decorrer da primeira missão na RCA, que teve início em janeiro de 2017. Alindao foi durante muito tempo base da UPC (um dos principais grupos armados da ex-coligação Séléka, dirigido por Ali Darassa), e tem sido palco de confrontos entre grupos armados nos últimos meses. Ainda nesta sexta-feira (16 de novembro), os confrontos provocaram pelo menos 37 mortos: um padre foi assassinado e um outro está desaparecido. A igreja de Alindao e uma parte do campo de deslocados foram incendiados..Desta vez, a nossa força não chegou a tempo, provavelmente estaria deslocada num outro ponto do território a defender a população do mesmo tipo de ataques violentos. Na RCA, os confrontos acontecem inesperadamente e são como centenas de focos de incêndio espalhados por um país com a dimensão de França. Contam com a proteção de 12 mil militares das Nações Unidas. Não são os suficientes..Em vez de chocolates, patê de fígado e bolachas de água e sal.Musa Paulino, comandante da primeira FND, acredita que muitos portugueses pensam que as nossas tropas estão na RCA "para ganhar dinheiro e distribuir chocolates". Os militares até distribuem mantimentos, como patê de fígado e bolachas de água e sal, o excedente das suas próprias rações de combate. Fazem-no quando partem em missão de reconhecimento por estradas de terra batida, sujeitos a temperaturas de quarenta graus, viagens de marcha difícil onde o pó parece entrar nos pulmões e nunca mais sair. Tantas vezes, quando regressam, a aldeia foi dizimada e essas crianças foram violadas e assassinadas. "Nunca sabemos o que vamos encontrar quando saímos do quartel", admite Musa Paulino..A República Centro-Africana é dominada por grupos armados e vive no caos desde 2013, após o golpe de Estado que derrubou o ex-presidente François Bozizé. Portugal participa na Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana (MINUSCA), desde 2017, como força de reação rápida (quick reaction force - QRF). São os primeiros a chegar quando há aldeias sequestradas por milícias e que envolvem situações de chacina. A MINUSCA é comandada pelo tenente-general senegalês Balla Keita, que já classificou as forças portuguesas como os seus "Ronaldos"..Musa Paulino confessa que esta foi a sua "missão mais difícil". Não só porque foi a primeira vez que comandou uma missão do género - esteve na Bósnia e em Angola, ao serviço da NATO -, mas principalmente porque a RCA é um teatro de operações "extremamente imprevisível e altamente volátil". "Era uma coisa nova, significava voltarmos a estar integrados numa operação das Nações Unidas", recorda. Na República Centro-Africana o jogo é outro. "É uma missão de alto risco num país onde a autoridade de Estado não existe." Além de que não existem linhas de caminho-de-ferro e só 400 quilómetros das estradas são alcatroadas..Portugal cede, em cada missão, perto de 160 militares - neste momento está no país o quarto contingente. Antes de partirem, aprenderam a conhecer o inimigo, dois grandes grupos rivais que respondem pelos nomes Séléka (que significa coligação na língua franca local), um grupo de origem muçulmana, e os anti-Balaka (anti bala de AK - sigla utilizada para designar a arma Kalashnikov), de origem cristã.."Militares estavam à espera de tudo, mas não tinham visto nada".As primeiras missões das forças nacionais, na Bósnia e em Timor, "foram duras, mas em África é diferente: só o clima é uma adversidade, a bicharada, as questões de higiene, a salubridade, tudo isto é já é um desafio a qualquer um", reforça o tenente-coronel. A pressão é enorme. "Se formos alvejados no Iraque ou no Afeganistão ou se pisarmos uma mina, e se não morrermos nos primeiros sete minutos, sabemos que vai chegar o helicóptero e seremos salvos", explica. Essa garantia não existe na RCA..Volátil. "Acontecia muitas vezes sairmos numa patrulha de reconhecimento onde só teríamos de ir a um determinado local verificar se estava tudo bem. Passámos por uma aldeia onde não há nenhuma atividade anormal e, quatro horas depois, recebemos a informação de que aquela aldeia está a ser completamente saqueada, que há pessoas mortas por todo o lado", descreve. A patrulha, que se preparou para 400 quilómetros e para uma missão específica, tem de agir rapidamente e com os meios disponíveis no momento. Podem até estar em viaturas sem proteção balística ou não contarem mais de 40 homens para defender uma aldeia tomada por centenas de membros de milícias. Não é exceção, mas a regra na RCA.."É preciso dizer que tivemos um acompanhamento muito próximo da cadeia de comando nacional - e tinha de ser assim, porque a missão era extremamente exigente." Traduzindo, era preciso tomar decisões rápidas e com base na informação que tinham a cada momento. "Nestas condições, eu tinha de ter espaço para decidir, e tive", garante..O apoio de Portugal, mesmo que à distância de um continente, foi vital no dia mais difícil da missão. Os militares portugueses sofreram uma emboscada e um dos homens que iam na viatura do comandante - "era o meu apontador", recorda o tenente-coronel - ficou gravemente ferido, a viatura "completamente tracejada" e o grupo estava a 600 quilómetros da capital. Na altura, estavam numa zona perto da fronteira com o Congo, a missão começara há um mês e já sabiam como seria difícil fazer o transporte do militar. "Portugal enviou um C130 para recolher o ferido, sem hesitar", o que levantou o moral das tropas e devolveu o ar a Musa Paulino. "Essa decisão [do comando nacional português] teve um impacto moral significativo", conta..No decorrer das quatro missões na RCA, este foi o ferido mais grave até agora - os disparos atingiram o ombro, os nervos do braço e da mão do militar, que sofreu ainda uma fissura numa das artérias. Não há saldo de vítimas mortais entre os militares portugueses. Sabem que é um cenário arriscado, que têm a vida em perigo, e que o que aconteceu com esse ferido pode acontecer com qualquer um. "Eles estavam à espera de tudo, mas não tinham visto nada", explica Musa Paulino. O stress físico e psicológico é elevado. "Somos comandos, somos militares, estamos preparados para tudo, mas isto não é um filme, não é uma série", diz o tenente-coronel..Apoio psicológico no terreno reativado.As forças nacionais destacadas são formadas, na sua maioria, por praças, jovens entre os 20 e os 25 anos. Para muitos deles é a sua primeira missão. Musa Paulino percebeu que precisavam de apoio psicológico no terreno. Desde 1996, quando partiu a primeira força portuguesa para a Bósnia e Herzegovina, os militares foram sempre apoiados por psicólogos militares, mas entre os anos de 2014 e 2016, devido a restrições orçamentais, o apoio no teatro de operações não existiu..Foi o tenente-coronel Garcia Lopes, psicólogo militar e chefe do Núcleo de Apoio e Intervenção Psicológica, quem acompanhou em permanência os primeiros homens na RCA. Foi ele quem esteve no terreno, com outro psicólogo, no último mês de missão, no final de julho de 2017..Ao DN, explicou, através de um e-mail enviado do Iraque, onde está desde outubro, como encontrou um grupo "com um profundo sentimento de missão cumprida", mas que acusava um elevado "desgaste psicológico e emocional: a missão já ia longa, a base ocupada (Campo M' Poko) na RCA não tinha as condições atuais - foi a primeira força que "montou" o quartel para as missões seguintes -, e os confrontos violentos pelo menos em três grandes projeções fora de Bangui, a capital do país, tinham sido extenuantes para o grupo. Da primeira força, foram diagnosticados 15 militares com perturbação de stress pós-traumático (PSPT), mas, segundo Garcia Lopes, apenas um veio a confirmar os sintomas..Tentativas de suicídio não estarão relacionadas com missões na RCA.Sobre os casos noticiados de um alegado suicídio de um militar que tinha estado em missão na RCA e do internamento de outro numa unidade de saúde mental, os psicólogos do Exército não relacionam os casos com o cenário vivido no teatro de operações..A alferes Célia Carvalho, que acompanhou o último mês da segunda Força Nacional Destacada na RCA, admite que já detetaram "várias tentativas de suicídio, mas relacionadas com a vida pessoal dos militares". Os desabafos que ouviu quando esteve no terreno centraram-se mais nos sentimentos de frustração e impotência: "Sentiam que podiam ter feito mais do que aquilo que as Nações Unidas lhes permitiam", conta a psicóloga. Sentem falta da família, a abstinência sexual é um problema, mas o sentimento de que "poderiam fazer mais pela população" ocupou o topo das queixas..Musa Paulino confessa que também tem refletido sobre a missão. "Se eventualmente podíamos ter feito as coisas de maneira diferente, sobre a melhor forma de potenciar as capacidades de Portugal, com meios aéreos nossos, por exemplo", descreve. Aos psicólogos, os militares confessaram que não esquecem as imagens dos cadáveres de mulheres e crianças empilhados, as aldeias saqueadas, a população entregue a si própria. O resto não contam, são comandos, o seu grito de guerra é Mama Sumé!, que significa: "Aqui estamos, prontos para o sacrifício."