Guterres conhece os perigos que o mundo enfrenta
Há uma frase de Albert Einstein que poderia ter funcionado como epígrafe para o discurso de António Guterres, secretário--geral das Nações Unidas, ao receber o doutoramento honoris causa na Aula Magna da Universidade de Lisboa, na presença do Presidente da República e do primeiro-ministro. Disse o Prémio Nobel da Física e seguramente o cientista mais famoso do século XX que "tornou-se aparentemente óbvio que a nossa tecnologia excedeu a nossa humanidade". Sabia bem do que falava aquele que deixou a porta aberta para a construção da bomba atómica.
Sabe bem do que fala António Guterres quando afirma:
"Estou absolutamente convencido de que a próxima guerra entre dois Estados vai ser antecedida por um maciço superataque com o objectivo de destruir as capacidades militares - e sobretudo o comando e o controlo de comunicação do inimigo - e de paralisar as infra-estruturas básicas, nomeadamente redes eléctricas." E foi mais longe o secretário-geral da ONU ao declarar, após reconhecer que "há uma total divisão e incapacidade global" para se alcançar o desejável nível de regulação:
"Só juntando governos, empresas que promovem as novas tecnologias, comunidade científica e sociedade civil, será possível encontrar regras mínimas para que as novas tecnologias sirvam o futuro da humanidade de forma positiva."
Guterres já viu e viveu o suficiente como dirigente político nacional e internacional para condensar nestas afirmações o núcleo central e profundo das suas preocupações como dirigente e como cidadão. Os anos passados à frente da ACNUR em Genebra e agora a experiência como dirigente máximo da ONU permitem-lhe saber como vai e para onde vai o mundo, já que dele se espera a excepcional capacidade de intervenção diplomática que permite encontrar as pontes de diálogo e convergência fundamentais que conseguem afastar a humanidade de um confronto global sem retorno e sem trégua.
António Guterres, que também é um homem de ciência, recordou que "hoje existem, de forma mais ou menos escondida, episódios de ciberguerra entre Estados e, pior do que isso, não há nenhum esquema regulatório em relação a esse tipo de guerra". Dirigindo o ACNUR em Genebra, António Guterres testemunhou a tragédia dos refugiados que as guerras tornaram irreversível e que a crescente falta de solidariedade transformou num flagelo de dimensões indescritíveis.
O pintor Pablo Picasso tinha uma visão objectiva e dura que lhe permitia afirmar pouco tempo antes de morrer que "os computadores são inúteis; eles apenas conseguem dar-nos respostas". Enquanto nós formos capazes de formular as perguntas certas e justas nos momentos próprios, temos o dever cívico, ético e filosófico de perguntar o que irá ser de nós e da humanidade se permitirmos que a gestão do património tecnológico se encaminhe para a destruição da própria humanidade, seja por razões ideológicas, religiosas, económicas ou sociais. A verdade é que nunca estivemos num contexto tão alarmante e à beira das grandes perguntas sem resposta.
A responsabilidade maior, a mais visível e incontrolável, é sempre a do homem, acredite-se ou não em Deus, crença que Guterres tem e sempre assumiu, também como motivação interior e profunda para o exercício das suas funções e deveres políticos.
Este doutoramento honoris causa foi outorgado em Lisboa a um português que desempenha hoje um cargo essencial para a história do mundo, para a criação de condições de entendimento e diálogo entre povos e culturas e também e sempre para defesa da paz, desígnio estratégico que ele não se tem cansado de eleger desde o início das suas funções em Nova Iorque.
Ouvimo-lo e percebemos que, sobre o tema, Einstein e outros já disseram o que é essencial e inadiável. Resta-nos desejar que António Guterres, com as qualidades que são indissociáveis do seu carácter e da sua experiência humana e política, seja capaz de manter o mundo com a ameaça tecnológica suficientemente controlada para conseguirmos evitar o colapso global e final.
Escritor, jornalista e presidente da SPA