"Expor fotos e vídeos que tenho teus" é violência doméstica. Mas sai barato, diz vítima

O Tribunal de Almada condenou, por violência doméstica, um homem que partilhou vídeos íntimos da ex namorada. Não o considerando responsável por terem ido parar a um site porno, negou à vítima a indemnização de 168 mil euros - um por cada visualização no site - que pedia; atribuiu-lhe 7500 euros. "Assim sai barato", comenta ela.
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Em sentença de 23 de fevereiro, o Tribunal Criminal de Almada condenou a dois anos e meio de prisão, suspensos, por violência doméstica, e ao pagamento de uma indemnização de 7500 euros, um homem de 28 anos que em 2018 ameaçou repetidamente a ex namorada de que ia difundir fotos e imagens dela em contexto sexual, acabando mesmo por fazê-lo.

É a primeira decisão judicial conhecida a qualificar como violência doméstica a partilha de imagens íntimas, obtidas no âmbito de uma relação conjugal ou de namoro - fenómeno usualmente crismado de "pornografia de vingança" ou "abuso sexual com base em imagens", e que, por ausência de um tipo criminal específico, com uma moldura penal que os juízes considerem adequada à gravidade, tem sido "encaixado" pelos tribunais em denominações criminais diversas.

Esta condenação não utilizou, porém, a agravação específica do crime de violência doméstica, prevista desde agosto de 2018 no Código Penal (CP), para situações como aquela de que Cleo foi vítima.

Tal agravação corresponde à alteração efetuada em 2018 no CP, por iniciativa do PS, no artigo 152º (Violência Doméstica). Este passou, no seu número 2, alínea b, a agravar o limite mínimo da pena para aquele crime quando este seja cometido através da difusão de "dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento" e essa difusão seja efetuada "através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada". Nesse caso, a pena, fixada em geral de um a cinco anos de prisão, passa a ser de dois a cinco anos.
Na sentença, assinada pelo juiz Diogo Pinto Nogueira de Leão Barbosa, explica-se detalhadamente a opção tomada.

Destaquedestaque"Sua puta de merda (...). Sua sem vergonha rodada do caralho, toda arrebentada! Juro por tudo que seja mais sagrado vou fazer a tua vida num inferno prepara-te!!! Vou expor todas as fotos e vídeos que tenho teus. Vais ser ainda mais conhecida que já és!"

Não há dúvidas para o tribunal de que "as imagens e vídeos respeitam à intimidade da vida privada da vítima (...), tratando-se de vídeos de cariz sexual onde ocorreram a prática de atos sexuais", e que houve ausência de consentimento da vítima"; que "o arguido, movido pelo sentimento de vingança relativamente à ofendida, através das redes sociais Facebook, WhatsApp e Instagram, partilhou por mensagem com terceiros vídeos e fotografias da ofendida a praticar atos de natureza sexual"; que "naqueles vídeos e fotografias, a cara da ofendida é perfeitamente reconhecível"; e que "ao atuar das formas descritas, quis ofendê-la na sua honra, consideração e dignidade, humilhá-la, expor e devassar a sua intimidade, limitá-la na sua liberdade de movimentos e subjugá-la à sua vontade, com o propósito de lhe causar sofrimento emocional e de diminuí-la como pessoa, o que concretizou."

Considera porém que "no que respeita à difusão através da internet ou de outros meios de difusão pública generalizada [os termos da agravação referida] está incutida a ideia, por parte do legislador, de se tratar de plataformas em que o conteúdo é disponibilizado de forma generalizada ao público", o que "não resultou como provado".

Isso porque, conclui, "não há prova cabal de que tenha sido o arguido a publicar o vídeo no site (...) ou em qualquer grupo de Whatsapp ou Facebook (diferente da sua remessa a pessoas determinadas através de tais plataformas) pois que nenhuma prova foi produzida nesse sentido. Assim, após a divulgação por parte do arguido diretamente remetendo para determinadas pessoas, tal como relatado pela ofendida e admitido pelo arguido nos emails (pelo menos para uma pessoa), fica impossível ao Tribunal determinar com a certeza que se impõe quem publicou tais vídeos, pois que após a partilha por parte do arguido com alguém sai da sua esfera de controlo, podendo qualquer pessoa que recebeu o vídeo, provavelmente em evento em cadeia, utilizá-lo e publicar o mesmo em tal site criando um perfil falso."

O arguido - chamemos-lhe Manuel - foi assim condenado por violência doméstica "simples".

Aparentemente, não houve, em sede de investigação, exame dos aparelhos a ele pertencentes, pelo que fundamentais para a condenação foram os emails ameaçadores, repletos de insultos, enviados para a vítima, nos quais Manuel assumia o objetivo de fazer a vida da vítima "num inferno": "Sua puta de merda (...). Sua sem vergonha rodada do caralho, toda arrebentada! Juro por tudo que seja mais sagrado vou fazer a tua vida num inferno prepara-te!!! Vou expor todas as fotos e vídeos que tenho teus. Vais ser ainda mais conhecida que já és! (...) Vou mandar fotos tuas e vídeos ate na tua mãe pra ver a filha que tem! (...) Até as tuas colegas de trabalho vão saber das tuas coisas! Prepara-te!!!"

As imagens em causa, captadas durante o relacionamento dos dois, e de cuja difusão a vítima foi informada por várias pessoas semanas depois do fim da relação (que tivera lugar entre junho e setembro de 2018), acabariam por ser colocadas ainda nesse ano, com referência ao seu nome e imagem, num site de pornografia, do qual só foram retiradas em 2022. Nessa altura já tinham sido alvo de mais de 168 mil visualizações, número que constituiu a referência utilizada para o pedido de indemnização apresentado - 168 524 mil euros, um por cada visualização.

O tribunal, porém, considerando que a vítima não tinha dado entrada do pedido de indemnização dentro dos prazos (inicialmente, quando se constituiu assistente, não fez esse pedido, só viria a fazê-lo depois de mudar de representação legal) ordenou o pagamento de menos de um vigésimo do valor.

Decisão que ela, Cleo - não é seu nome, escolheu-o para falar publicamente -, hoje com 26 anos, considera "inadmissível". "Acho muito pouco, fiquei chocada. Nunca lhe doerá tanto como me doeu a mim, mas que lhe doesse alguma coisa. Assim sai-lhe barato. 7500 euros é o que se ganha num ano num trabalho humilde, como era aquele que perdi por causa disto - trabalhava numa loja, e depois do que ele fez havia quem fosse lá para rir de mim e apontar-me. Aliás qualquer pessoa que ali entrasse e me olhasse eu achava que era porque tinha visto os vídeos. Não conseguia encarar ninguém. E até hoje: se reparo que alguém está a olhar para mim há algum tempo, imediatamente, acho que é por causa do conteúdo espalhado. Dizem que não conseguem provar que foi ele que publicou os vídeos no site, mas se ele não os tivesse partilhado jamais teriam lá chegado, certo?"

Isso mesmo argumenta o seu recurso da sentença, assinado pela advogada Rita Rosário Duarte, e ao qual o DN teve acesso: "Não padece de dúvidas que terá sido o Recorrido a partilhar os mencionados vídeos. Ao fazê-lo, passa a ser o "paciente zero", ou seja, o ponto de partida para todas as divulgações e publicações realizadas - e que ainda se realizam e realizar-se-ão enquanto houver internet e pessoas interessadas em imagens pornográficas. Se o Recorrido é, por confissão e prova, o ponto de partida para a divulgação e partilha dos vídeos, é o responsável pelas visualizações dos vídeos de cariz sexual; se não fosse a sua atuação, ninguém teria tido acesso ao conteúdo dos mesmos. (...) A questão não é quem publica - a questão é como é que pode publicar e o impacto que teve, tem, e terá."

Por outro lado, discorre a causídica, o tribunal apreçou em "7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) violar direitos fundamentais, expor o corpo de outra pessoa online e para sempre, humilhar, injuriar, ameaçar".

Mencionando o facto de o arguido, de acordo com o relatado em tribunal, receber cerca de mil euros por mês para estudar Direito, questiona: "Portanto, disse o Tribunal recorrido, a um futuro jurista/advogado/magistrado que, com o seu valor da bolsa, basta poupar seis meses e uns trocos para poder humilhar uma mulher. Que exemplo é este? Como pode o Tribunal, calmamente, dizer isto à Vítima e à sociedade?"

Em despacho de 31 de março, o juiz recusou o recurso, argumentando que a vítima só poderia recorrer contra uma decisão contra si proferida, não sendo o caso: "A decisão é-lhe favorável porquanto, não obstante a mesma não tenha deduzido qualquer pedido de indemnização civil, viu ser arbitrada oficiosamente, pelo Tribunal [ao abrigo do Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas], uma quantia monetária, pelo que, de forma alguma, a decisão proferida o foi contra a Assistente. A circunstância de a Assistente entender que o quantum indemnizatório deveria ser distinto não torna a decisão desfavorável porquanto nenhum valor foi peticionado nos termos legais por aquela."

Cleo vai reclamar deste despacho para o tribunal superior (o da Relação).

Mas regressemos à opção do tribunal em não considerar o crime agravado. A interpretação efetuada pelo juiz, ao fazer equivaler, na redação do tipo criminal, a difusão "através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada" a uma disponibilização do conteúdo "de forma generalizada ao público" parece afastar da agravação citada até o envio para grupos específicos de Whatsapp ou qualquer outra plataforma ou rede social, já que enviar um conteúdo via internet para, por exemplo, dezenas de pessoas não é o mesmo que disponibilizar "de forma generalizada ao público".

A ser correta, tal interpretação implicaria que se um dos casos mais conhecidos e trágicos de partilha de imagens íntimas, o de Verónica Rubio - a trabalhadora da empresa espanhola Iveco que se suicidou em maio de 2019 depois vários vídeos de conteúdo sexual, gravados aquando de uma relação que tivera anos antes, serem postos a circular em grupos de Whatsapp da empresa - ocorresse em Portugal, e se provasse que tinha sido o homem com quem tivera a relação a difundi-los, haveria dúvidas em aplicar a agravação prevista no artigo 152º do CP.

Ora, como sublinhou à época ao jornal La Vanguardia Ferran Lalueza, professor de Comunicação e Redes Sociais da Universidade Aberta da Catalunha, o WhatsApp "é hoje uma ferramenta potente para viralizar conteúdos, que nada deve a redes sociais ["abertas"] como o Facebook ou o Twitter". A penetração na sociedade desta aplicação em Espanha era já em 2019 de 87%, superior à do Facebook (82%) e muito maior que as do Instagram (54%) e Twitter (49%).

Além disso, ajunta este especialista, "mesmo que neste caso a difusão se tenha visto circunscrita essencialmente ao âmbito familiar e laboral da vítima, era aí justamente que podia causar mais danos, como demonstra o resultado trágico".

A primeira difusão dos vídeos com Verónica ocorreu num grupo de WhatsApp de 20 empregados da Iveco; a partir daí propagou-se como fogo numa pradaria. Será que este tipo de partilha inicial corresponde ao que o legislador quis significar com "difusão pública generalizada"?

Acresce que esta forma de difusão, além de mais insidiosa - sendo o WhatsApp um canal de âmbito privado, não tem controlo de conteúdos como o que existe no Facebook, Twitter e Instagram, onde é possível qualquer pessoa denunciar publicações - permite, nas palavras de Lalueza, "uma maior sensação de impunidade por se tratar de uma plataforma empregada para relacionamento com círculos mais próximos".

Uma sensação de impunidade que poderá, como se constata, ser confirmada pela lei, ou pelas interpretações da lei. Ainda mais justificada caso não exista ou tenha existido entre o perpetrador e a vítima uma "relação análoga à dos cônjuges", implicando que nesse caso não se poderá sequer aplicar o tipo criminal da violência doméstica, mas apenas os de Devassa da Vida Privada ou Gravações e Fotografias Ilícitas (artigos 192º e 199º do CP) - consoante as imagens em causa foram captadas com ou sem consentimento da vítima.

Estes dois crimes têm pena até um ano de prisão, ocorrendo agravação caso se verifique a tal difusão por "meios de difusão pública generalizada"; aí a pena é acrescida de um terço nos limites mínimo e máximo.

A agravação destes dois crimes ocorreu na mesma alteração legislativa que agravou o crime de violência doméstica, resultando assim que o mesmo ato, com o mesmo objetivo e dolo e, sobretudo, o mesmo efeito danoso na vítima, incorre em penalizações muito distintas em função da relação existente entre a vítima e o perpetrador. Sendo o limite mínimo previsto no nº2 do artigo 152º (Violência Doméstica), que prevê a difusão não consentida de imagens, de dois anos de prisão, é superior ao limite máximo (um ano e quatro meses) previsto nos outros dois crimes em caso da mesma difusão não consentida de imagens.

O facto de ações muito semelhantes poderem encaixar em tipos criminais distintos também implica a impossibilidade de contabilização do número total de queixas, logo a análise da evolução do fenómeno.

É o que reconhece a Procuradoria-Geral da República (PGR), em resposta ao DN: "As factualidades designadas de "pornografia de vingança" referem-se a fenómenos criminais e não a específicos tipos de crime. Ou seja, consoante as circunstâncias do caso concreto, aqueles fenómenos podem traduzir a prática de crimes de pornografia infantil, fotografias ilícitas, devassa da vida privada, ameaça, coação ou até mesmo extorsão, podendo também surgir em contexto de violência doméstica. Acresce que estes tipos criminais compreendem uma multiplicidade de situações bem distintas das referidas."

Assim, prossegue esta entidade representante do Ministério Público (MP), "sendo os inquéritos registados por tipo de crime, não é possível fornecer estatísticas com a especificidade pretendida."

Esta impossibilidade de dispor de números concretos não impede o MP de ter, nomeadamente por via do gabinete do Cibercrime, "uma clara perceção de que este tipo de situações têm vindo a ser reportadas com crescente frequência." Trata-se "muitas vezes de situações decorrentes de ruturas de relações interpessoais. Noutros casos, estão em causa imagens produzidas e originariamente partilhadas pelas próprias vítimas - esta situação é sobretudo frequente quanto a crianças e adolescentes."

Não havendo estatísticas quanto às queixas que "cabem" no citado nº2 do crime de violência doméstica, a PGR reporta os números relativos aos crimes de devassa da vida privada e gravações e fotografias ilícitas, com a ressalva de que não é correto interpretá-los como dizendo todos respeito a situações como aquela de que Cleo foi vítima,

Nos primeiros sete meses de 2022, os dados preliminares da PGR "apontam para a instauração de 386 inquéritos por crime de devassa da vida privada e 390 inquéritos pelo crime de gravações e fotografias ilícitas". Números que parecem não destoar dos contabilizados nos anos anteriores: 791 inquéritos por crime de devassa da vida privada e 634 inquéritos pelo crime de gravações e fotografias ilícitas em 2019, 739 e 699, respetivamente, em 2020, 770 e 795 inquéritos em 2021.

Contudo, a pena mais elevada - e a indemnização mais alta - conhecida em Portugal para a partilha de imagens íntimas diz respeito a um caso em que o tipo criminal preponderante não foi nenhum dos referidos, mas sim o de falsidade informática.

Encontramo-la num acórdão de 2017 do Tribunal da Relação de Évora, e diz respeito a um homem que - provou-se através nomeadamente do exame de aparelhos, telefones e computadores, que tinha ou tivera em seu poder - colocou em vários sites pornográficos vídeos sexuais com a ex cônjuge e criou perfis falsos dela, com os respetivos contactos, associados a essas imagens. Acabou condenado, pelos crimes de devassa da vida privada e falsidade informática, assim como ofensa à integridade física (desferiu duas bofetadas na vítima e abanou-a) e posse de arma proibida (um aerossol), a três anos e nove meses de prisão efetiva e ao pagamento de uma indemnização de 75 mil euros.

Tendo o MP abdicado de acusar o arguido pelo crime de violência doméstica, a dimensão da pena é sobretudo, como já referido, assente na "falsidade informática" - crime previsto numa lei especial, a do Cibercrime, com moldura penal de um a cinco anos de prisão, exatamente a mesma da violência doméstica. No caso, a falsidade informática valeu uma condenação a três anos, quase o dobro da atribuída aos crimes especificamente contra pessoas pelos quais o arguido foi também condenado: ao de devassa da vida privada corresponderam 10 meses e ao de ofensa à integridade física 9 meses. Uma soma de quatro anos e sete meses, reduzidos, em cúmulo jurídico, a três anos e nove meses.

O acórdão não teve dúvidas em definir o ocorrido como "pornografia de vingança", frisando ser as necessidades de prevenção geral "muito altas" por se tratar de "uma conduta que começa a generalizar-se com consequências devastadoras para a vítima e por, na prática, a imagem da vítima ficar a final mal considerada, aos olhos da comunidade como se do verdadeiro delinquente se tratasse. (...) Importa pois inverter uma prática perigosa, transmitindo à comunidade a mensagem clara de que toda e qualquer conduta semelhante trará consequências penais nefastas para a esfera jurídica do infrator."

Tivesse o arguido partilhado as mesmas imagens sem criar perfis falsos da vítima e, apesar de o dano causado ser muito semelhante, atendendo às molduras penais dos crimes que restariam, nomeadamente o de devassa da vida privada, dificilmente seria condenado a muito mais de um ano de prisão.

Também no caso de Cleo foi criado um perfil falso dela, no site pornográfico, com o seu nome e a foto que tem no Instagram. "Recebi mensagens horríveis, inclusive de mulheres. Em vez de terem sororidade e compaixão, ofendiam-me. Houve uma que me chocou especialmente. Foi para o meu perfil de Instagram dizer "Para a próxima chupasses melhor"."

Respira fundo: "Ninguém quis saber do que está ali à mostra dele. Só a mulher é que é uma porca, o gajo é um ganda gajo por estar a fazer aquilo, ficou grande herói porque estava a vingar-se da rapariga que supostamente o traiu."

Uma ideia de "justiça" ostentada por Manuel ante Cleo quando esta, avisada por amigos de que ele andava a partilhar vídeos e fotos captados durante a relação dos dois, o confrontou. "Fui com as minhas irmãs, mas só aceitou falar comigo a sós. Primeiro entrou em negação mas depois lá admitiu o que tinha feito, porém sem mostrar qualquer arrependimento. Como tem uma filha pequena, perguntei: se fosse com a tua filha, se alguém lhe fizesse isto, como reagias? Ele respondeu: "Se ela tivesse a mesma culpa que tu tens, se fizesse ao namorado o que me fizeste a mim, apoiava o rapaz." Fiquei chocada por ele dizer aquilo sobre a própria filha."

Agora com 28 anos, Manuel, que durante muito tempo não se deixou notificar, faltando a audiências, não quis depor em julgamento. "Andou este tempo todo, desde 2018, sem querer saber disto para nada", comenta Cleo, que entretanto foi mãe e teme que um dia o filho, numa busca na internet ou por maldade de alguém, tenha acesso às imagens que Manuel difundiu. "Uma vez na internet, sempre na internet. Sei lá se não voltam a pôr aquilo em sites. É uma ameaça para sempre, vou ficar com medo disso a vida toda."

São crimes perpétuos, corrobora a advogada de Cleo, Rita Rosário Duarte, que vê por esse motivo "uma manifesta desproporção da moldura penal, face ao dano, no crime de devassa. Há projetos de lei para a criação de um crime autónomo, mas até agora nada aconteceu."

Uma autonomização que se justifica, opina a penalista Inês Ferreira Leite: "Não é suficiente a inserção no crime de violência doméstica; a gravidade do crime é igual quer seja cometido por alguém que teve com a vitima uma relação análoga à dos cônjuges quer não. A razão pela qual foi incluído na violência doméstica foi uma opção de jurisprudência - à falta de outro, os juízes usavam esse crime nos julgamentos - e não legislativa. Teremos de evoluir para a criação de um crime autónomo, tem gravidade que o justifique."

Para além de criar uma moldura penal uniforme, independentemente da relação entre perpetrador e vítima e concentrada na intensidade do dolo e do dano, a vantagem dessa autonomização, é, explica esta professora de Penal da Faculdade de Direito de Lisboa, por um lado o efeito de prevenção geral - nomear um crime tem o efeito simbólico de alertar para a punibilidade daquele ato específico - e por outro "o de permitir a existência de medidas de coação específicas a ele associadas, ajudando o julgador a saber qual é o pacote associado ao crime."

Faltam, prossegue, "medidas de coação e de proteção da vítima imediatas e específicas. Uma medida de coação que impeça o arguido de aceder a certos sites, de ter acesso a computadores, assim como sanções pecuniárias compulsivas e os sites terem de retirar os vídeos imediatamente... In extremis, a prisão preventiva podia ser um susto bem merecido. Era preciso pensar em medidas preventivas associadas a estes crimes - não se pode depender do trânsito em julgado, que leva anos. Mal se sabe que não houve consentimento na partilha, devia haver obrigação de remoção ou bloqueio de sites - mas isso tem de ser feito a nível europeu, porque muitos são internacionais e um país sozinho não consegue."

É, crê esta jurista, que integra o Conselho Superior de Magistratura, "uma das situações em que devia haver danos punitivos. Uma indemnização normal pelos danos causados não é suficiente. Os danos punitivos surgiram no âmbito das indemnizações por difamação e deveriam aplicar-se sempre que se prove ter havido proveito económico do perpetrador ou dos sites."

Quando foi apresentar queixa, Cleo não sabia qual a denominação do crime de que fora vítima. "Só que estava errado e que já tinha acontecido a outras pessoas", conta. "O agente da PSP que me atendeu é que disse que podia ser violência doméstica." Considera porém que se justifica uma categoria distinta: "Cada crime devia ter o seu nome".

A decisão do legislador, porém, não deverá ser de criação de um crime autónomo. A proposta do PS, em projeto de lei aprovado na generalidade em outubro de 2022, e que, com projetos (não votados) do Chega, BE e PAN, passou à discussão na especialidade, é a de agravar as penas dos crimes de devassa da vida privada e de devassa por meio de informática (artigo 193º do CP, que neste momento pune com até dois anos de prisão "quem criar, mantiver ou utilizar ficheiro automatizado de dados individualmente identificáveis e referentes a convicções políticas, religiosas ou filosóficas, a filiação partidária ou sindical, à vida privada, ou a origem étnica").

A moldura penal destes dois crimes passaria para até três anos, chegando aos cinco no de devassa da vida privada para "quem, sem consentimento, disseminar ou contribuir para a disseminação, através de meio de comunicação social, da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, de fotografias ou gravações que devassem a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual."

Assinale-se que esta moldura penal continua a ser menos gravosa que a aplicada aos mesmos atos no crime de violência doméstica, já que aí o limite inferior é de dois anos. Por outro lado, a inserção da frase "ou contribuir para a disseminação" parece abrir caminho para que num caso como o de Cleo possa haver responsabilização pelo resultado de "difusão pública generalizada" - ou seja, o facto de não se provar que Manuel colocou as imagens no site pornográfico não impediria a conclusão de que contribuiu para que elas ali fossem parar.

Ainda assim, comprovando o processo de Cleo que os tribunais podem condenar por violência doméstica "simples" - com pena até cinco anos - no caso de partilha de imagens sem "difusão generalizada", e que nas mesmas circunstâncias a pena do crime de devassa, segundo a proposta, será apenas até três anos, subsistirá uma diferença assinalável nas penalizações do mesmo ato consoante o tipo de relação entre perpetrador e vítima.

Outra distinção relevante é de que, sendo a violência doméstica crime público, a partilha pode ser denunciada por qualquer pessoa, enquanto na devassa da vida privada ou por meio de informática tem de ser a vítima a queixar-se.

Por fim, o projeto do PS, cuja primeira subscritora, a deputada Cláudia Santos, adianta ao DN ter "esperança de que o diploma seja, ainda em abril, votado na especialidade e se passe a seguir para a votação final em plenário", prevê também, à imagem do que já acontece desde 2020 para o crime de Pornografia de Menores, "a imposição de deveres de informação e de bloqueio para os prestadores intermediários de serviços em rede" quando se verifiquem crimes de devassa da vida privada praticados através da internet.

Quanto às medidas de coação - as que podem ser impostas a um arguido em fase de investigação - o projeto não tem, ao contrário do preconizado por Inês Ferreira Leite, qualquer previsão específica. A primeira autora, Cláudia Santos, considera que o que existe é suficiente: "Há já um catálogo de medidas de coação disponíveis, que podem incluir apreensão de material informático e ir até à prisão preventiva."

Na verdade, se o artigo 202º do Código de Processo Penal (CPP), que elenca as situações em que se pode decretar prisão preventiva, permite a aplicação no crime de violência doméstica, é duvidoso que possa suceder estando em causa devassa da vida privada. A não ser que se considere que este crime integra a classificação de criminalidade violenta - definida no CPP como "as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos." Ora o bem protegido pelo crime de devassa da vida privada é a reserva da intimidade.

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