Exército força a queda de Evo Morales, após 13 anos no poder

O comandante em chefe das Forças Armadas da Bolívia, Williams Kaliman, fez uma conferência de imprensa este domingo "exigindo" ao presidente Morales a sua renúncia. E Morales, que de manhã tinha anunciado novas eleições devido a indício de fraude, acabou por se demitir. O seu vice-presidente fala de "golpe". Deverá a presidente do Senado, com 30 anos, a assegurar a transição.
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"Custa muito que nos tenham levado a este confronto. Enviei a minha renúncia à Assembleia Legislativa Plurinacional". Evo Morales anunciaou a sua renúncia após a conferência de imprensa dada por Williams Kaliman, comandante em chefe das Forças Armadas da Bolívia, e na qual este pediu a Morales que se demitisse.

O vice-presidente Álvaro García Linera também anunciou a demissão, dizendo que o gesto tem o objetivo de parar com o derramamento de sangue nas ruas e não significa uma admissão de culpa. "O golpe foi consumado", resumiu.

E Morales garantiu aos que designou como "irmãos e irmãs" que "a luta não acaba aqui. Os pobres, os movimentos sociais, continuarão esta luta pela igualdade e pela paz."

Mas Carlos Mesa, o seu adversário na primeira volta e também ele ex-presidente do país (apenas durante cerca de ano e meio e como interino, após a renúncia do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, de quem era vice, também na sequência de protestos massivos, tendo ele próprio renunciado depois), considerou que a renúncia "põe fim à tirania."

Nas últimas horas a polícia tinha feito buscas no Supremo Tribunal Eleitoral e detido um responsável de um tribunal eleitoral, após a auditoria feita às eleições de 20 de outubro ter concluído haver indícios de fraude e de Morales, o vencedor, ter anunciado novas eleições.

Os confrontos entre apoiantes e opositores do Presidente da Bolívia desde o dia seguinte às eleições causaram pelo menos três mortos e 384 feridos, segundo dados da Provedoria da Bolívia. O princípio do fim terá sido, segundo o New York Times, o anúncio, na noite de sexta-feira, por uma série de unidades policiais, que iam juntar-se aos protestos contra a fraude eleitoral.

Seguiram-se demissões de vários responsáveis do partido de Morales, o Movimiento al Socialismo (MAS) e, este domingo, o pronunciamento da Organização dos Estados Americanos dando razão aos que protestavam, anunciando ter encontrado indícios de fraude e apelando à anulação da primeira volta das presidenciaise à repetição do processo eleitoral: "Deve repetir-se a primeira ronda assim que houver condições que deem novas garantias para a sua realização, entre elas, uma nova composição do corpo eleitoral".

De acordo com a Constituição boliviana, deverá ser Adriana Salvatierra Arriaza, de 30 anos, presidente do Senado e do mesmo partido de Morales, a assegurar a chefia de Estado. Mas ainda não é certo que aceite ou que a oposição concorde com a sua nomeação. Segue-se na linha de poder o presidente da Câmara de Deputados, mas este, Victor Borda, também do MAS, apresentou a demissão este domingo.

"Não sei que fazer se deixar de ser presidente"

Morales, 60 anos, o primeiro presidente do país de origem indígena, estava no poder desde 2006, há mais tempo do que qualquer outro líder da América Latina. Apesar de no seu primeiro mandato ter feito aprovar uma alteração à Constituição que limita a dois o número de mandatos consecutivos a que alguém podia fazer-se eleger, em 2016 (quando estava já no seu terceiro mandato, sendo que o primeiro não entra na contabilização, por ser anterior à mudança da Constituição), propôs um referendo para acabar com esse limite. A votação foi favorável ao não por uma pequena margem, o que deveria ter arrumado o assunto, mas o Tribunal Constitucional deliberou que o limite de mandatos atenta aos direitos humanos, invocando A Convenção Americana dos Direitos Humanis, e que Morales podia voltar a candidatar-se pela terceira vez -- na verdade, quarta. O que ele fez.

Durante a campanha para a primeira volta das presidenciais de 20 de outubro, declarou à jornalista brasileira Sylvia Colombo, correspondente para a América Latina da Folha de São Paulo, que acreditava que o país precisava tanto dele ao leme como ele de lá estar: "Não sei que fazer se deixar de ser presidente. A Bolívia é a minha vida e a minha família."

Num texto publicado no New York Times a 29 de outubro, Colombo comentou: "É um erro que pode custar-lhe caro. Morales já tem o seu nome inscrito na história da Bolívia. Pode reformar-se com uma longa lista de sucessos. Quando ganhou pela primeira vez as eleições, em 2005, obteve 53,7% dos votos e tinha apoio internacional. Em 2009, promulgou uma Constituição mais inclusiva que garantiu direitos a populações minoritárias e marginalizadas. Durante a sua presidência a economia boliviana melhorou, mantendo um crescimento médio anual de 4% e registou-se uma diminuição da pobreza. É um legado indiscutível." Mas, prosseguia, "também há sombras: ao mesmo tempo Morales erodiu sistematicamente as instituições democráticas. A justiça está subordinada aos seus desígnios, as obras são contratadas sem transparência e a imprensa independente foi asfixiada."

Pela primeira vez, a possibilidade de Morales perder a eleição ou pelo menos não conseguir a vantagem de 10 pontos percentuais que lhe permitiria averbar a vitória logo na primeira volta estava sobre a mesa, enquanto nas ruas da capital, La Paz, "ditadura" e "ditador" foram aparecendo grafitados. Quando os resultados iniciais foram conhecidos, pareceu que o incumbente não tinha mesmo conseguido a distância necessária de Carlos Mesa para evitar a segunda volta -- e na segunda volta esperava-se que toda a oposição apoiasse Mesa.

Mas de repente e sem que surgisse qualquer explicação os resultados eleitorais deixaram de ser divulgados durante 24 horas, findas as quais foi anunciado que Morales fora eleito à primeira volta. A oposição clamou que houvera fraude e multidões furiosas começaram a atacar sedes eleitorais. Seguiu-se a quase paralisação do país com greves e manifestações de protesto e confrontos entre lealistas e oposição.

Golpe de Estado?

Os clamores sobre um golpe de Estado apoiado ou inspirados pelos EUA e pela direita surgiram quase imediatamente. Este sábado, o ex-presidente do Brasil Lula da Silva tinha, no seu segundo discurso após ser libertado, referido a situação na Bolívia como correspondendo a uma interferência dos EUA; este domingo, em reação à renúncia daquele que designa como "companheiro", escreveu no Twitter: "Acabo de saber que houve um golpe de estado na Bolívia e que o companheiro @evoespueblo foi obrigado a renunciar. É lamentável que a América Latina tenha uma elite econômica que não saiba conviver com a democracia e com a inclusão social dos mais pobres."

Já o filósofo americano Noam Chomsky denunciou este sábado, em comunicado conjunto com o historiador indiano Vijay Prashad, os EUA como "estando por trás do golpe de estado da oposição que visa derrubar Morales": "O golpe está a ser promovido pela oligarquia boliviana, furiosa por perder a quarta eleição seguida para o MAS. A oligarquia conta com o apoio total do governo americano, que há muito tempo está ansioso por expulsar Evo Morales e o seu partido do poder." E vai mais longe, certificando que o centro de operações da embaixada dos EUA em La Paz "há mais de uma década assume ter dois planos preparados: o plano A, um golpe de Estado, e o plano B, o assassinato de Morales. (...) Estamos com o povo boliviano e opomo-nos ao golpe. Esperamos que sejam capazes de resistir a tudo o que se vai passar nos próximos dias. O mundo com Evo. Nós também."

Também o presidente de Cuba, Miguel-Díaz-Canel Bermúdez exprimiu no Twitter a sua indignação: "Condenamos a estratégia golpista da oposição que desencadeou a violência na Bolívia e custou mortes, centenas de feridos e expressões condenáveis de racismo contra os povos indígenas." E acrescentou, mais tarde: "A direita com o seu golpe de Estado cobarde e violento atenta contra a democracia na Bolívia."

Um especialista da relação entre militares e política na América Latina ouvido pelo New York Times não considera, porém, que tenha havido um golpe de Estado clássico, em que "os militares querem tomar o poder para eles". Mas Christoph Harig, investigador da Universidade das Forças Armadas Federais alemãs, em Hamburgo, também não nega que a sequência de acontecimentos que levou à renúncia de Morales está longe de ser sinal de "uma democracia saudável": "Reforça uma vez mais o papel dos militares como árbitros supremos em crises políticas."

No Twitter do presidente americano, ocupado com o seu processo de impeachment, não tinha surgido qualquer reação à demissão de Morales até ao final deste domingo (hora portuguesa). Mas o Departamento de Estado (homólogo do ministério dos Negócios Estrangeiros) exarou umcomunicado, no qual diz estar a seguir "os acontecimentos na Bolívia", e sublinhando que é urgente que a OEA envie uma missão para o país "para supervisionar o novo processo eleitoral e para assegurar que o novo Tribunal Eleitoral é verdadeiramente independente". E conclui: "O povo boliviano merece eleições livres e legítimas, de acordo com a Constituição do país. Apelamos a todos que não recorram à violência neste momento tenso e continuaremos a trabalhar com os nossos parceiros internacionais para assegurar que a democracia boliviana e a ordem constitucional triunfem."

México oferece asilo a Morales

Na sequência dos acontecimentos na Bolívia, o México ofereceu asilo a Evo Morales.

A oferta mexicana, anunciada pelo ministro das relações Exteriores, Marcelo Ebrard, na sua conta da rede social Twitter, surge após ter recebido na embaixada do México em La Paz funcionários e deputados bolivianos.

"O México, de acordo com a sua tradição de asilo e não intervenção, recebeu 20 personalidades do executivo e do legislativo da Bolívia na residência oficial em La Paz, e se assim o decidir também ofereceremos asilo a Evo Morales", escreveu o chefe da diplomacia mexicana.

Atualizado às 08:20.

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