Esterno Notte: Aldo Moro ainda é uma ferida aberta
Marco Bellocchio abriu uma exceção à sua regra de não voltar às histórias já contadas... por ele próprio. Não o fez com a intenção de se repetir, bem entendido. O regresso do realizador italiano à tragédia do político Aldo Moro, raptado em 1978 pelas Brigadas Vermelhas, prende-se a um sentido de compromisso moral com algo que testemunhou enquanto cidadão. Um fantasma que ainda paira sobre a história de Itália e que a série Esterno Notte, apresentada na Secção Première do último Festival de Cannes, recupera quase 20 anos depois do filme Bom dia, Noite (2003), nos mesmos termos. A saber: mostrando, logo ao início, Aldo Moro vivo numa cama de hospital, recém-libertado, com as três principais figuras do seu partido alinhadas à sua frente em jeito de ponto de interrogação mudo e embaraçoso sobre o que (não) fizeram para o libertar. Uma cena a ecoar o final de Bom dia, Noite, que assinalava a mesma fantasia de um Moro vivo e livre, a caminhar pela rua. O certo é que nada disso aconteceu. A vida foi-lhe tirada no dia 9 de maio de 1978.
Como dizíamos, Esterno Notte não é, de forma alguma, uma repetição de Buongiorno, notte. O próprio título, que se traduz Noite Exterior, dá conta da mudança. Se no filme Bellocchio apontava a câmara à dinâmica dentro do apartamento onde Moro permaneceu sequestrado, na minissérie de seis episódios, agora disponível na Filmin, os pontos de vista são exteriores a esse cubículo e passam essencialmente por cinco personagens: o ministro do Interior, Francesco Cossiga, o Papa Paulo VI, dois dos terroristas envolvidos no sequestro e a esposa de Moro, Eleonora (numa interpretação da notável Margherita Buy, a atriz dos últimos Moretti). Retratos humanos no contracampo do filme que justificam o formato televisivo, isto é, a divisão em episódios, embora Esterno Notte não abdique da linguagem de cinema dos melhores dramas de Bellocchio, entre a crónica coletiva e individual.
No ano deste acontecimento fatídico, Itália encontrava-se a braços com a violência das Brigadas Vermelhas (Brigate Rosse), a organização armada de extrema esquerda responsável pelo terror que se fazia sentir nas ruas.
O momento era particularmente delicado: pela primeira vez num país do então Bloco Ocidental tentava-se a formação de um governo de União Nacional com o apoio do Partido Comunista. Aldo Moro, presidente da Democracia Cristã, era o líder prestes a alcançar esse acordo histórico com os opositores do seu partido conservador. Um passo travado a 16 de março (de 1978, claro), quando um comando das Brigate Rosse, escondido na berma da estrada que levava ao Parlamento, alvejou a escolta de Moro, destinando o eminente político a 55 dias de cativeiro.
Uma porção de dias cuja anatomia e dor ficam expostas na série, entre escutas telefónicas, cartas do sequestrado, comunicados de imprensa das Brigadas Vermelhas e uma estranha estratégia de "Estado forte" que culminou no assassinato de Moro - um corpo abandonado na bagageira de um Renault 4L, no coração da cidade de Roma. A imagem causou choque e comoção popular, a nível nacional e internacional, reforçando o isolamento das Brigadas, cada vez mais distantes da sua referência comunista.
Ainda que o fim da história seja bem conhecido, Esterno Notte não só o aborda com um breve devaneio crítico, como, ao longo do seu labor narrativo, nunca deixa de alcançar a tensão do drama mesclado de thriller político, sobretudo nos três primeiros episódios. É essa voltagem que atravessa os corredores e salas do poder, onde se vê o presidente do Conselho, Giulio Andreotti, com uma crise de vómitos, o ministro e futuro presidente Francesco Cossiga a arrastar e abafar a ansiedade, e até o bom amigo Papa Paulo VI (excelente Toni Servillo), de saúde deteriorada, a mandar que lhe apertem o cilício.
Sintomas de humanidade que permitem a Marco Bellocchio verter fisicamente o trauma geral daqueles dias, sem cair nos artifícios de qualquer teoria da conspiração (e são muitas as que envolvem o Caso Aldo Moro; mais do que Kennedy!). É certo que houve medo e algumas duvidosas boas intenções entre estas personalidades, mas venceu a má estratégia.
Moro, ele próprio, interpretado por Fabrizio Gifuni, é alguém que não fica reduzido à figura do homem mártir. Há nele uma clara consciência dos jogos de poder onde se move, e que realça a sua estatura moral ainda antes de ser fechado na cela improvisada. Inclusivamente, para efeitos dramáticos, os ditos sintomas físicos daqueles que não souberam lidar com o seu sequestro, acabam por ser aqui um prolongamento da obsessão de Moro com a morte: veja-se o seu quadro de insónias, a insistência em verificar os botões do fogão a gás em casa ou a lavagem compulsiva das mãos...
Tudo isto pela mão de um realizador que continua a surpreender pela frescura com que trabalha a verve do suspense e as emoções específicas de um tempo, percorrendo uma psicologia complexa através dos ângulos mais eficazes. Como se, no seu misto de reconstrução, análise e pincelada de imaginação, Esterno Notte refletisse a energia, angústia e desencanto de uma soma de dias que pesaram sobre o sonho coletivo. Não haverá outro realizador italiano, na atualidade, tão vital na observação histórica do seu país, com o íntimo sempre a confundir-se com o vigor desse coletivo.