"Em saúde não se trabalha com máquinas ou parafusos, mas com pessoas"
De si diz que tem um hábito fantástico, ver sempre o lado positivo das coisas. E foi isso que, mesmo depois de ter deixado a Pastoral da Saúde, o levou a juntar-se a um grupo de 44 personalidades, do qual faz parte o médico Germano de Sousa, o economista Augusto Mateus, o ex-reitor da Universidade Nova de Lisboa António Rendas, entre muitos outros, para tomar uma posição cívica sobre o que deve ser uma Lei de Bases da Saúde, o que está a ser discutido até dia 19 de julho. E fê-lo porque, assume, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) pode ter de ser corrigido, valorizado, mas não se pode perdê-lo
Esteve 31 anos à frente da Pastoral da Saúde. Que modificações registou?
Progressos extraordinários, desde o número de hospitais à qualidade. Algumas unidades perderam-se pelo caminho, mas na generalidade caminhou-se muito e bem. Comecei a trabalhar nesta área no Hospital de Santa Maria, em 1982. Dessa altura até 2013, quando deixei a pastoral, o hospital adquiriu uma qualidade absolutamente extraordinária.
Mas considera que ainda há coisas a mudar no Serviço Nacional de Saúde?
Em primeiro lugar, é preciso que haja um acesso muito fácil. Um SNS não pode ter unidades muito longe das residências dos utentes. É preciso que seja mesmo um serviço universal e que tenha em atenção todas as pessoas com doenças raras ou com situações mais difíceis para que recebam um atendimento eficaz e acessível. Depois tem de ter o número de profissionais adequados para tratar cada doente. É preciso ter a noção de que em saúde não se trabalha com máquinas ou parafusos, trabalha -se com pessoas. Portanto, há que dar prioridade à pessoa e à humanização...
O doente ainda não é a prioridade?
Penso que por vezes dominam muito mais o dinheiro e as carreiras. Uma lei que contemple a pessoa como prioridade absoluta é fulcral. É um princípio ético fundamental. Que os cuidados sejam realizados aqui ou a ali não é tanto.
Não é tanto?
O acesso universal a todos é fundamental. Em 1977, a Organização Mundial da Saúde editou um texto lindíssimo, que tornou em livro mais tarde, e que dizia: "Saúde para todos até ao ano 2000." Chegámos ao ano 2000 e não havia saúde para todos. Por isso, todos temos de fazer tudo para que a saúde seja para todos e sem qualquer tipo de exclusão, sobretudo de migrantes, pobres, pessoas com deficiências, doenças raras, etc. Não pode haver exclusão de ninguém.
Defende o fim das taxas moderadoras?
As taxas justificam-se em muitas situações, até porque há muitas situações de isenção. Mas é preciso acautelar que as pessoas que precisam têm direito a ela.
O acesso está salvaguardado?
Para mim está indiscutivelmente salvaguardado mesmo com taxas. Mas há que garantir isenção para todos os que devem estar isentos.
A humanização é uma falha no SNS?
O artigo 235.º dos Direitos Humanos estabelece a humanização na saúde, definindo que esta tem de estar absolutamente garantida no acolhimento, no tratamento às pessoas, na forma como se fala, no acompanhamento das terapias de paixão, etc. Usa-se muito a palavra humanização, mas ainda se falha muito.
É uma questão cultural?
É uma questão de educação que se esquece muito. É preciso formar todas as classes profissionais, não só médicos ou enfermeiros - porque esses trabalham muito a humanização -, mas tudo o resto, desde o pessoal auxiliar aos porteiros e aos cozinheiros das unidades. Todos têm de ser educados em humanização.
Em que se falha mais no SNS?
Falha-se no equilíbrio, no organizar bem e corretamente a relação entre público e privados. É um ponto muito delicado, mas que merece uma atenção muito especial. Não é eliminar uns ou outros. É criar uma relação estratégica muito bem concebida.
Como é que seria possível?
Isso já é uma decisão política. Mas tem de haver uma relação estratégica para que toda a gente possa escolher onde quer ser tratado. E de forma que, quando faz essa escolha, não se depare com uma situação tão violenta a nível económico que acabe por barrar o seu acesso. O direito a escolher onde se quer ser tratado é um direito fundamental no direito à saúde.
Isso quer dizer que os privados deveriam ter preços acessíveis para o cidadão comum?
Poderiam ser mais acessíveis, sim. Dou-lhe o exemplo de alguns países no estrangeiro em que a Igreja Católica tem unidades de saúde privadas e com a preocupação de prestar cuidados com um sentido social. Por isso, acredito que os privados poderiam ter preços adequados que permitissem ao cidadão escolher onde quer ser tratado.
A lei de bases deveria consignar cuidados paliativos e continuados?
Talvez. É um dos pontos sagrados em saúde. Fui fundador da primeira Unidade de Cuidados Paliativos no Fundão há 25 anos. Hoje, só 10% das unidades de saúde têm cuidados paliativos. Não pode ser. A ideia tem de ser alargada.
E um estatuto para cuidadores?
Estou de acordo. Uma lei tem de ter tudo isso. É uma forma de se valorizar cada vez mais o SNS. Digo que o SNS foi um milagre conseguido pelo Dr. [ANtónio] Arnaut. É um milagre português no meio da Europa e do mundo. Nem todos os países têm um SNS. E não o podemos perder. Pode corrigir-se um aspeto ou outro que não está tão bem, pode valorizar-se, mas não se pode perder.
Considera que o SNS foi descurado pelo poder político?
Não tanto. Tive oportunidade de participar nas cerimónias dos 35 anos do SNS e nessa altura tive a ocasião de dizer que é importante, bom, e que tem sido melhorado constantemente. Tenho um hábito fantástico. Começo por analisar as coisas pelo lado positivo. É normal que haja deficiências em tudo, mas temos de as melhorar.
Foi isto que o levou a integrar o grupo de subscritores do documento Princípios Orientadores para uma Lei de Bases da Saúde?
Foram várias razões. Primeiro, li o texto e concordei. Dá prioridade à pessoa, o que para mim é fundamental em saúde, já que é uma área em que muitas vezes se dá prioridade ao dinheiro, à carreira e a outras situações... e não pode ser. Tem de se dar prioridade absoluta à pessoa. Depois, achei que seria uma forma de contribuir para a lei que o grupo da Dra. Maria de Belém está a trabalhar.
É fundamental a revisão da lei?
Claro. A lei existe desde 1990, acha que ao fim de 28 anos não tem de se mudar? Claro que tem. A realidade era completamente diferente. Uma coisa com 28 anos não serve para hoje, tem de mudar.
O debate é urgente?
É urgente valorizar a lei. Devemos agarrar tudo o que foi feito de bom e deitar fora um ou outro ponto que não tenha sido. É preciso elevar ao expoente máximo uma lei desta importância que deve servir a comunidade no que é o direito fundamental à assistência na saúde.
Isso significa que deveríamos ter uma nova lei ainda nesta legislatura?
Seria o ideal. Não me escandaliza o tempo, penso que deveria ser o mais depressa possível, mas no tempo necessário.