Do Afeganistão a Lisboa: 70 refugiados vão aprender português

Centro Hindu acolheu ontem a sessão de boas-vindas às sete dezenas de refugiados afegãos que chegaram ao país nos últimos meses e que iniciam agora a aprendizagem da língua, somando-se aos 90 migrantes que já frequentam estas aulas. Há 400 pessoas em lista de espera.
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Amina lembra-se bem do dia em que os talibãs chegaram a Cabul. Ainda não eram oito da manhã quando as pessoas começaram a bater freneticamente à porta umas das outras, a gritar para fugirem que os talibãs estavam a chegar à cidade. Sem saber o que esperar, a família desta jovem afegã de 22 anos refugiou-se na casa de amigos. Um dia depois regressaram a casa, de onde Amina não voltou a sair senão para deixar o Afeganistão - "Tinha medo. Na nossa rua houve cinco raparigas a quem bateram com um chicote nas pernas, na rua, por não estarem tapadas, vestidas de burca".

Amina nasceu na província de Bamiyan (a dos budas que os talibãs destruíram há duas décadas, e que a jovem ainda viu uma vez), mas cresceu em Cabul. Tinha entrado há um mês para a universidade quando os talibãs chegaram e fecharam a escola - e tudo o resto. O facto de pertencer a um grupo de música ainda a atemorizava mais.

A história de Amina é contada em Lisboa, no Centro da Comunidade Hindu de Portugal, no Lumiar, onde decorreu ontem a sessão de boas vindas aos 70 refugiados afegãos que começaram, ontem mesmo, a ter aulas de língua portuguesa. Quatro turmas a somar às cinco que já estão a funcionar desde outubro, com 90 alunos, no Centro Hindu e noutros locais da capital, com refugiados e migrantes de várias origens, do Bangladesh ao Paquistão, da Índia ao Nepal, mas também da Ucrânia ou do Peru.

Numa cerimónia que contou com representantes das comunidades hindu e ismaelita, é Maria João Tomás, professora no ISCTE e investigadora em assuntos do Magrebe e do Médio Oriente - e um dos principais rostos por detrás deste projeto - que conta a história coletiva deste grupo que agora inicia a aprendizagem do português. De diferentes origens, têm em comum o facto de serem xiitas ismaelitas, apóstatas aos olhos dos talibãs: "Estas pessoas podiam ser condenadas por apostasia no Afeganistão, fugiram da morte". Foram resgatados ou do Afeganistão ou de campos de refugiados, alguns já na Turquia ou na Grécia, para onde tinham fugido, e trazidos para Portugal pela comunidade ismaelita, que assumiu a tarefa de acolhimento e integração destes refugiados. E a "competência mais crítica e essencial" para atingir o objetivo da autonomia é precisamente a aprendizagem da língua, sublinhou o representante da comunidade ismaelita.

Antes das aulas, houve a biblioteca. "Este projeto nasceu com um livro", conta Maria João Tomás, antes de precisar: "Não foi um, foram 500". O número de exemplares com que se iniciou a Biblioteca Pública do Médio Oriente e Norte de África - que entretanto já passou os mil exemplares - na freguesia lisboeta de Arroios. Da biblioteca ao ensino de português a migrantes e refugiados foi apenas a distância de uma ideia, posta em prática com o Centro da Comunidade Hindu, com aulas que decorrem também no Centro Ismaelita de Lisboa, em São Domingos de Benfica e na embaixada do Bangladesh, em Belém.

Mas é preciso fazer mais, sustenta Maria João Tomás, que defende que é preciso uma maior dinâmica no ensino da língua portuguesa a estrangeiros, de forma a não desmotivar quem aprende. "Há um desfasamento grande entre aquilo que é a realidade e aquilo que é a oferta", alerta a docente, sublinhando que tem uma lista de espera de 400 pessoas. As aulas aos refugiados afegãos vão consistir em módulos de 25 horas, sendo que a cada um cabe um diploma, que irá aumentando de grau com a acumulação de módulos.

Ao DN Maria João Tomás antecipa que a tarefa que ontem se iniciou não será fácil. Entre os refugiados afegãos há quem não saiba ler e escrever na própria língua, o dari. É um caminho que tem que se ir fazendo: antes da cerimónia que ontem marcou o início das aulas a investigadora esteve na embaixada do Irão para pedir a doação de livros bilingues em português e em farsi - língua próxima do dari. Por estas dificuldades e muitas outras este é um "trabalho que precisa de ajuda para continuar", defende esta especialista em temas do Médio Oriente.

No auditório do Centro da Comunidade Hindu - um enorme espaço que chegou a receber a vacinação contra a covid-19 - sentam-se famílias com crianças pequenas, bebés de colo. Muitos só falam dari. Uma das exceções, além de Amina, é Abdul Wahid, de 28 anos, que é , aliás, licenciado em inglês. Conta que as suas primeiras memórias dos talibãs remontam há já duas décadas, quando "a noite se transformou em dia" com os combates na rua. A família de Abdul emigrou então para o Paquistão e só voltou ao Afeganistão sete anos depois. "Tínhamos uma vida boa", lamenta, embora também acrescente que os talibãs nunca deixaram de estar lá - "fizeram explodir escolas, hospitais, maternidades". Não têm uma réstia de humanidade, acusa o jovem afegão, afirmando que "cada talibã tem a sua própria lei. Decide se mata, decide se bate, decide se leva as raparigas das suas casas e da sua família".

Como seria de esperar, Amina e Abdul querem poder voltar, um dia, ao Afeganistão. A casa. Mas é um desejo com um grande "se" - só se os talibãs não estiverem no poder. Até lá, dizem, o percurso será feito em Portugal e o primeiro passo do caminho é aprender português.

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