Crónica de uma Resignação Anunciada
A administração Trump acabou de reconhecer estar preparada para a transição de poder. Em termos narrativos, surpreendeu. Houve uma diferença no espectro retórico, mas não comunicacional, de Donald Trump. E isto confunde-nos. Porém, em termos políticos, soou a inevitabilidade. Há várias razões que, nos últimos dias, nos facilitam esta conclusão.
1) A oficialização da vitória de Biden no Michigan foi um golpe na expectativa republicana. Os democratas ganharam por uma margem de 2,8%, mais que a vitória em outros Estados contestados, como a Pensilvânia e a Geórgia. Foi uma pedrada ao narcisismo eleitoral de Trump.
2) Por outro lado, temos de lembrar que continua a recontagem na Geórgia, após a anterior ter confirmado a vitória de Biden. E no Wisconsin também há recontagem de votos a pedido de campanha de Trump, mas parece que tem sido obstruída pelos apoiantes do ainda Presidente. Ou seja, há receio dos resultados finais.
3) A questão do tempo foi também decisiva para aceleraresta decisão. Faltam apenas 20 dias para que os delegados do Colégio Eleitoral se reúnam em cada capital para formalizar o seu voto. O Colégio é formado por 538 eleitores, distribuídos por cada Estado, em representação proporcional da sua população. Inevitavelmente, vão confirmar a vitória de Biden. Será uma humilhação política para Trump.
4) Agora, olhando para as recentes medidas de política externa, temos uma lógica de terra queimada para o sucessor. Tome-se como exemplo o périplo de Mike Pompeo pelo Médio Oriente, com a simbólica visita à Cisjordânia e os produtos "Made in Israel", mas feitos lá. A retirada de 2500 militares (em 4500) do Afeganistão, em plena ascensão taliban e jihadista, e de 2500 militares (em 3000) do Iraque, até 15 de Janeiro. Ou a prestação da cimeira do G20. Trump está a tentar criar obstáculos para impedir que o novo governo reverta as políticas do seu antecessor. Esta perigosa precipitação transparece desespero, com um implícito reconhecimento de derrota.
No princípio do século XX Max Weber distinguia, na política, a ética da convicção (gesinnungsethisch) e a ética da responsabilidade (verantwortungsethisch). A primeira atende à observância de princípios privados, independente dos efeitos que daí resultam. É a ética política que resulta da moralidade do governante. A segunda, por oposição, considera riscos e consequências imputáveis à acção do governante. Porém, na res publica, a conciliação entre as "éticas" não existe. O bom governante deverá viver no conflito entre as duas. A 3 de Novembro 2020 o governante da primeira república constitucional optou por derrotar, definitivamente, a ética da responsabilidade. Não conseguiu.
Felipe Pathé Duarte
Professor Universitário/Investigador