'Tovarich' Cunhal desde Estaline a Gorbachev
"Spaciba tovarich Stalin!" O jovem comunista português, em 1935, na abertura do VII Congresso da Internacional Comunista Jovem - que decorreu em paralelo com o da III Internacional (Komintern) -, também entoava em russo "Obrigado, camarada Estaline!" Álvaro Cunhal ainda não tinha feito 22 anos quando, após uma viagem de comboio como clandestino pela Alemanha nazi e pela Polónia do ditador Pilsudski, chegou a Moscovo e viu, pela única vez na sua vida, "o amado guia, chefe e mestre de toda a humanidade progressiva, o grande amigo dos trabalhadores", como o definirá, ao comunicar a sua morte aos camaradas, o Comité Central do PCP.
Na capital da Revolução de Outubro, quando se preparam os Processos de Moscovo - a depuração do então denominado Partido Comunista (bolchevique), em que o líder do "farol do socialismo" irá executar mesmo os mais íntimos colaboradores de Lenine -, Cunhal, além de assistir às conversas entre Bento Gonçalves e "Pavel", como sublinha Pacheco Pereira (P. P.), o seu biógrafo não autorizado, "contactou com um dos dirigentes soviéticos que viria a ser fundamental na sua futura carreira política" Ponomarev. O homem forte das Relações Internacionais do Comité Central do PCUS até Gorbachev irá entregar-lhe a bandeira deste órgão do partido soviético na abertura do VIII Congresso do PCP, em 1976. Juntamente com Suslov, "a segunda mais importante figura das fileiras conservadoras", será um dos amigos de Cunhal.
suslov. Em 1948, quando o PCP quer reatar as relações com o movimento comunista internacional (suspensas desde 1939) e com o PC (b), recorre aos jugoslavos como intermediários. Em Belgrado, à "excepção de Tito, que só veio a conhecer na década de 60" - após a ruptura entre Moscovo e Belgrado, em 1948, Kruschev promoverá a reaproximação, em 1955 -, Cunhal "encontrou-se com o topo da liderança jugoslava" (P. P.), privando sobretudo com Djilas, nessa época no auge da carreira, vindo a cair em desgraça na década seguinte.
Ainda na revolucionária Jugoslávia, conversa com Baranov, o "braço-direito de Jdanov" (P. P.), que permite àquele líder de um pequeno PC - mas com carta de referências que incluía as assinaturas dos seus homólogos espanhol Carrillo (Cunhal viu os Junkers a bombardear Madrid no início da Guerra de Espanha) e brasileiro Prestes - vá a Moscovo. Não se sabe, porém, se terá estado presente na II Conferência do Cominform, em 1948, quando Jdanov acusa Tito de "espião imperialista" e dá origem ao cisma (apesar de o PCP ter hesitado, assumiu o lado russo, acabando por rotular como titistas os próximos dissidentes internos).
No País dos Sovietes avista-se com Suslov e entre os dois "estabelece-se uma relação de respeito mútuo e amizade", sustenta P. P., de tal forma que Cunhal "sempre apareceu aos olhos dos dirigentes dos outros partidos como um 'protegido'" do mais jovem membro do Secretariado de Estaline. Suslov sobreviveu ao que se autodenominou "Homem de Aço" - "participou também activamente nas purgas" (P. P.) - e ao seu crítico do XX Congresso - montou "a conspiração para desalojar Kruschev quando este se encontrava em férias" (R. Hingley, em The Russian Secret Police).
De 1947 a 1982, este apparatchick, potencial rival de Brejnev na sucessão de Kruschev, foi-se tornando um dos membros mais poderosos do Politburo, autêntica "eminência parda" (Moshe Lewin, em O Século Soviético) do regime. Além do controlo do movimento comunista internacional, era o dirigente encarregado da pureza da ideologia, um "teórico" da estirpe de Jdanov (a principal característica de ambos, ironizava Gilles Martinet, em Os Cinco Comunismos, "é a de nunca terem escrito um único livro de teoria").
kruschev. E Cunhal - agraciado com a Ordem da Revolução de Outubro pelo seu 60.º aniversário (1973) e com a Ordem Lenine pelos 75 anos (o decreto a atribuir-lhe a máxima distinção soviética seria assinado por Gorbachev, sendo-lhe entregue, em 1989, pelo vice-presidente da URSS, Lukyanov) - foi um vulto importante no movimento comunista internacional?
Pelo menos ao ponto de o "líder do movimento operário e revolucionário português", como figurava na Grande Enciclopédia Soviética, ter uma biografia escrita pela neta de Kruschev, Júlia Petrova, em 1963. A brochura de 48 páginas, intitulada Hastes sem Bandeiras e com a chancela Pravda, "viria a ter ampla difusão" na URSS, assegura Francisco Ferreira [também conhecido como "Chico da CUF", exilado na URSS desde o fim da Guerra de Espanha, foi locutor da Rádio Moscovo, afastou-se do PCP após o 25 de Abril e fez uma edição crítica em português desta obra].
"Dentro de instantes entrará um homem sobre o qual, tão-pouco, quase nada sei além de que lhe chamam Álvaro Cunhal, que é secretário-geral do Partido Comunista Português e que o seu nome está aureolado por alguma coisa de lendário. Subitamente, sinto-me perturbada." A jovem tinha razão para estar ansiosa, antes de falar com aquele vulto "marmóreo, de cabelo branco, rosto viril, afectuoso, de olhar tranquilo". Afinal, além da fuga de Peniche, a sua lenda tinha chegado ao ponto de Neruda ter escrito o poema Lâmpada Marinha ("Pero, / portugués de la calle, / entre nosotros, / nadie nos escucha, / sabes / dónde / está Álvaro Cunhal?") e de Jorge Amado, que o conhecera na década de 30, na mesma campanha internacional pela libertação do comunista português, em 1953, enaltecer a sua defesa em tribunal.
Era "íntimo de casa do avozinho da sua biógrafa" e do resto "do clã na altura todo-poderoso", garante 'Chico da CUF'. E, contudo, escreve Rui Perdigão [condutor do carro que evacuou Cunhal na fuga de Peniche, fundador da Rádio Portugal Livre, em Bucareste, e dissidente após a crise checa], o facto de Kruschev não ser um ortodoxo, na palavra e no gesto, "incomodava" Cunhal. "'Sei de muito menino' - disse-me ele quando Kruschev caiu -'que se está apressando a retirar- -lhe o retrato dos gabinetes de trabalho. Eu não preciso de o fazer. Nunca o lá tive...'"
brejnev. A grande era de Cunhal será, pois, a de Brejnev, entre 1964 e 1982, em que franqueará naturalmente a muralha do Kremlin sem se perder no labirinto de corredores. O pró-sovietismo deste "revolucionário profissional da estirpe dos Kominternianos", como o definiu o jornalista Rogério Rodrigues, já ficara claro na sua intervenção no XXII Congresso do partido de Lenine, em 1961, ao dizer que o PCP é fiel "aos ensinamentos do Manifesto Comunista do nosso tempo que é o novo programa do PCUS".
E tornou-se "um verdadeiro embaixador itinerante da pureza ideológica do Kremlin, acorrendo ora ao Vietname, ora a Cuba, ora a Bucareste, para defender a 'linha justa' e os 'princípios correctos'", regista Rui Perdigão (O PCP Visto por Dentro e por Fora). Desde 1963, confirma o historiador João Madeira, no contexto de crise do movimento comunista internacional - "o dissídio chinês e albanês, a moderação de italianos e espanhóis, a instabilidade do alinhamento de romenos e coreanos, a irreverência dos cubanos e, principalmente, a existência de um vasto conjunto de partidos que flutuava no meio de tudo isto em considerável desnorte" -, Cunhal "desempenhou um importante papel, que serviu bem os interesses soviéticos" (revista História, Maio de 1998).
A partir de 1974, quase todos os anos está em Berlim-Leste com Honecker; ou em Sófia com Jivkov; ou, apesar das "relações difíceis" com os heterodoxos romenos, em Bucareste com Ceausescu. E, obviamente, em audiência de abraço em Moscovo ou nas férias da Crimeia, com Brejnev, Suslov, Ponomarev.Toda a gente sabe que é visita frequente de Luanda ou Havana, mas já é difícil recordar que tanto podia ir às fiéis Etiópia ou Iémen do Sul, estar a conversar com Assad na Síria ou Arafat no Líbano, participar nos congressos do PC do Vietname ou do Partido do Trabalho do Congo, ser convidado para o 60.º aniversário da revolução mongol ou para visitar a Nicarágua sandinista. Da Holanda ao Japão, não há PC que o não obrigue a viajar de avião. No XXVI Congresso do PCUS (1981) Cunhal discursava no plenário, enquanto o líder do PCI (então, Pajeta) era relegado para a Casa dos Sindicatos e algumas das 123 delegações só falariam em Minsk, na Ucrânia, noutros pontos da URSS.
Após a morte de Brejnev, a TASS divulga fotos dos encontros de Cunhal com os novos líderes no Kremlin que tão bem conhece, seja com o antigo chefe do KGB, seja com o "homem-chave dos dinossauros". E, também, as do comunista português a apresentar condolências a Chernenko no funeral de Andropov e os pêsames a Gorbachev no enterro de Chernenko. Até o pai da glasnot, que tinha estado no X Congresso do PCP, mantém o hábito de receber este "fiel discípulo de Lenine e Estaline" (como era referido na biografia editada pelo Avante!, em 1954, e que terá sido escrita por Júlio Fogaça, depois considerado um dos culpados pelo "desvio de direita").
Cunhal tentava explicar a perestroika à luz da sua coerência, mas o correr dos tempos ia-o contrariando. Até ao ponto de, após o apoio do PCP ao fracassado Golpe de Moscovo de Agosto de 1991, desabafar "O nosso partido não bate palmas ao Ieltsin e ao fim do PCUS." Definitivamente, acabava uma era da História. Mas, do lado de lá da Cortina de Ferro, devia ouvir-se: "Spaciba tovarich Cunhal!"