Dia 8 celebra-se o 40.º aniversário da estreia da série de ficção científica Star Trek. As aventuras do capitão Kirk e Mr Spock merecem referência, não tanto pelo êxito televisivo, mas pela criação de um novo tipo de fãs, um curioso fenómeno do nosso tempo..Todos os críticos, até os seus criadores, concordam que as primeiras viagens da nave Enterprise foram medíocres, sobrevivendo penosamente só três épocas (1966-69) na NBC. Apesar disso, geraram mais cinco séries (Startrek Animated 1973-74; The Next Generation 1987-94; Deep Space Nine 1993-99; Voyager 1995-2001 e Enterprise 2001-05) e dez filmes (Startrek: The Motion Picture 1979; The Wrath of Khan 1982; The Search for Spock 1984; The Voyage Home 1986; The Final Frontier 1989; The Undiscovered Country 1991; Generations 1994; First Contact 1996; Insurrection 1998 e Nemesis 2002)..Mais importante foi o fenómeno dos trekkies ou trekkers, fanáticos amantes da série que guiam a sua vida por esse mundo de ficção e se reúnem nas Star Trek conventions. Começando modestamente a 21-23 de Janeiro de 1972 no Hotel Statler Hilton de Nova Iorque, estes encontros tornaram-se um fenómeno mundial. Todos os fins-de-semana há um em algum ponto do planeta onde os fãs, mascarados de extraterrestres ou com uniforme estelar, discutem infindavelmente os detalhes dos episódios. O mercado de artigos da série valia há sete anos o equivalente a 50 mil milhões de dólares, metade do PIB português de então. Esta realidade já mereceu um filme (Trekkies, de Roger Nygard, 1997) e é o tema do livro do principal actor (Get a Life!, de William Shatner, Pocket Books, 1999)..Erigir um mundo de ficção como orientação para a vida, que muitos consideram alienação ou manipulação de massas, está longe de ser exclusivo do Star Trek. Outros filmes, jogos, bandas e sites, por isso chamados "de culto", geram a mesma realidade. Com a Internet a coisa explodiu. Shat-ner/Kirk fez uma excelente análise do fenómeno a 20 de Dezembro de 1986, como convidado do programa cómico Saturday Night Live. Numa paródia às referidas convenções, assediado pelas perguntas tolas da multidão de admiradores, o actor perdeu a paciência e gritou: "ARRANJEM UMA VIDA! Isto é só um programa de TV! Olhem para vocês! (...) Há um mundo inteiro lá fora! Quando tinha a vossa idade eu não via televisão! Eu VIVIA! (...) CRESÇAM, raios! É só um programa de TV!". Este sketch e o grito get a life!, uma espécie de "o rei vai nu", tornaram-se famosos..O que está em causa é mesmo arranjar uma vida. O ser humano tem naturalmente a necessidade de entregar a sua existência a um ideal. A vida é para ser dada. Esta ânsia humana por algo maior que si próprio é tão natural como ter fome ou frio. Somos um ser insatisfeito, imperfeito, que busca sempre a felicidade e a regra do bem e do mal. Para a esmagadora maioria, há milénios que esse desejo se realiza na religião. A procura do sentido último supõe uma resposta. A perplexidade da humanidade supõe a existência da divindade..No Ocidente, porém, os intelectuais recentes pretenderam alterar o problema. O deísmo iluminista considerou supersticiosos todos os cultos e o ateísmo positivista recusou o absoluto e o transcendente. Deste modo, a cultura moderna trata a busca da felicidade fechando-a num mundo exclusivamente humano. O homem continua a entregar a sua vida, mas a deuses terrenos. Liberdade, justiça, humanidade, raça, classe, ciência, progresso, natureza, prazer foram as propostas de filosofias, partidos e movimentos para substituir as religiões..Os trekkers dão apenas mais um passo nesta fuga de Deus. Em vez de entregarem a vida a um princípio abstracto ou um propósito pragmático, dedicam-se ao que sabem ser mentira, um mundo de ficção em que realmente não acreditam. Depois de uma religião sem culto e uma fé sem deus, chega a religião sem fé..A cultura materialista quis transferir a religião do transcendente para o banal; os fãs passam-na do banal para o irreal. Os pensadores recentes levam-nos para um mundo material, onde o espírito humano é supremo; a TV de culto quer que cada um seja deus do universo que inventa, mesmo que não exista. As filosofias modernas afirmam que a vida pode ser feliz sem o Deus da justiça e misericórdia; os trekkies julgam ser felizes numa vida que não existe. Se alguns recusam o Juízo Final, porque não rejeitar a realidade original? Se Deus não é, porque é que alguma coisa há--de ser?