'Sansão e dalila' com a tia milinha

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Por uma Páscoa cinzenta desse Portugal remoto em que só havia dois canais de televisão e nenhum shopping, ninguém sonhava com telemóveis, Internet, jogos de vídeo ou multiplexes, e os cinemas programavam reposições de acordo com a solenidade da quadra, convidei a minha namoradinha Isabel para ir ao cinema.

Ir ao cinema com a Isabel, até para um rapaz bem-comportado, aluno diligente e socialmente acima de qualquer suspeita como eu, era uma operação logística de meter no bolso a invasão da Normandia. A moça, além de filha única, era de família muito tradicional, que lhe fazia uma marcação cerradíssima. Por isso, o preço da sessão pascal de cinema com a doce Isabel teve a forma de um pau-de-cabeleira, a compacta e devota tia Milinha, que até participou na escolha do filme: Sansão e Dalila, reposto no finado Berna.

Nessa altura, os cinemas, na Páscoa, enchiam-se de cinéfilos solitários, velhotes em peregrinação às fitas bíblicas e pintas desocupados que iam troçar alto destas. Um desses engraçadinhos tinha escolhido precisamente a nossa sessão do Sansão e Dalila, e a cada chiste seu ("Olha a Sansila e o Dalão!"), a tia Milinha estremecia de indignação e falava por entredentes contra o "hereje". (Eu e a Isabel, muito chegadinhos um ao outro, fingíamos que não era nada connosco).

A páginas tantas, após uma piadola mais blasfema, a tia Milinha não aguentou, voltou-se na cadeira e dirigiu-se ao pintas, alto e bom som: "Ó homem de Deus, mas isto não acaba?" Res-posta devastadora daquele: "Ó minha senhora, esteja descansada, que é só o Sansão ir ao baeta e já pode ir tomar o cházinho!"

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