'Pirata' Henrique Galvão confessou-se a jornalista
Quando no semanário francês Paris Match se soube que Henrique Galvão desviara o paquete Santa Maria, o chefe de redacção enviou um telegrama a Dominique Lapierre, que estava nos EUA, com uma ordem a cumprir "imediatamente": apanhar um avião para o Recife e obter a confissão do homem que capturou um navio com 539 passageiros. O jornalista assim fez e, de posse de dez mil dólares - uma enorme quantia para a época -, tentou entrar pelo navio e entrevistar o moderno "pirata" dos mares. Existia ainda uma segunda ordem, a de ser um "exclusivo mundial".
Estávamos em 1961 quando o jornalista francês chegou ao porto e viu cerca de mil profissionais a tentar o mesmo: "Pela primeira vez vi um jornalista chinês!" Antes, alugara uma avioneta, de onde o fotógrafo da revista se atirou de pára-quedas para o Santa Maria. No Recife, a pergunta que se punha a Lapierre, perante tanta concorrência, era como ser o único a entrar no navio para receber a confiança de Galvão, o "português desconhecido" que a Paris Match queria nas suas páginas.
Tarefa difícil que acabou por se realizar, ao subir a bordo disfarçado de bombeiro: "O único problema eram os sapatos que levava calçados." Chega à voz com Galvão e foi directo: "Estão aqui dez mil dólares para a causa." O encontro dá-se no quarto do francês nessa noite, durante horas e sob vigilância de agentes da PIDE, que se colocaram à porta. "Víamos os sapatos pretos pelas fresta da porta", conta, até que às 05.00 foram comer porque os cinco pides já se tinham ido embora. Galvão brinca com a situação porque Lapierre estava assustado com o perigo que poderiam correr ao abrir a porta e diz-lhe: "A polícia secreta de Salazar tem horários de funcionário público."
"Foi um exclusivo mundial, fez-me o relato total de como surgiu a ideia, dos preparativos e da execução. Falou um francês sublime durante toda a noite, via-se que era um fidalgo", confessa o jornalista encarregado de obter a confissão de Galvão sobre o primeiro protesto político de grandes dimensões.
Depois de contar a história, Lapierre tem duas curiosidades: "Não sei que imagem deixou perante os portugueses" e "Ainda recordam o seu nome?". Antes de terminar o relato, Dominique Lapierre ainda recorda um pormenor que o impressionou: "Os passageiros estavam a tomar o pequeno-almoço quando ele falou aos microfones e disse: "Tenho a honra de vos informar que não estão mais no Santa Maria mas no Santa Liberdade."
Nessa noite, um comando português entrou no navio e recuperou-o. Milhares foram receber o navio ao cais de Alcântara e Salazar fez questão de visitar a ponte para mostrar que estava de novo ao comando. Para trás ficava uma operação-relâmpago que surpreendeu o mundo, inovou as acções armadas de protesto político e alertou para a luta em Portugal.
Na reportagem de 12 páginas publicada no Paris Match de 4 de Fevereiro, Lapierre transmitiu o testamento de Galvão, o "adversário severo do presidente que governa Portugal há mais de 30 anos". É assim: "Capitão, autor dramático, deputado e que se evadiu da prisão. É um desesperado de 65 anos que fez a entrada mais espectacular no palco do mundo." Entre outras caracterizações do acto de rebeldia, Lapierre escreveu ainda: "O palácio flutuante era o 'primeiro pedaço da pátria libertada'"; "O Santa Maria era um Pontemkine da era nuclear" ou "Em pleno século XX, o mundo soube estupefacto que ainda existiam piratas".
A brigada de Henrique Galvão entrara a bordo na escala de La Guaira (Venezuela) e destoava dos turistas ricos que ocupavam a 1.ª classe do navio. Na 4.ª classe, ouviam a orquestra enquanto adequavam o plano e preparavam as armas que tinham entrado nas pesadas malas com que entraram a bordo. "Eram passageiros diferentes", diz Dominique Lapierre baseado nos testemunhos que recolheu a bordo do Santa Liberdade. Henrique Galvão morre no exílio, em São Paulo, a 25 de Junho de 1970, com a doença de Alzheimer.
A bomba que estragou a 'festa' do ministro Rui Patrício
Em Junho de 1971, o ministro dos Negócios Estrangeiros Rui Patrício estava a minutos de ver consagrados os seus esforços para ter a reunião semestral da NATO em Lisboa. Era uma missão impossível devido à guerra no Ultramar, condenada por vários países que aí estariam, como é o caso da Noruega, a Dinamarca e o Canadá. Rui Patrício conta: "Passei dois dias a conversar com os ministros, um de cada vez, e a exigir que a reunião fosse em Lisboa. Nós somos um país membro, dizia." Se a resposta generalizada era que "a opinião pública não aceitaria uma reunião em Lisboa", o ministro teimava: "Têm de mudar de opinião", tendo estado nesta situação dois dias, de manhã à noite, nos almoços e jantares. "Como me dava muito bem com o ministro francês, contava com a sua simpatia, enquanto o grego tinha os mesmos problemas devido ao regime dos coronéis. A dado momento, vi que o americano estava dividido e, como a voz de uma grande potência tem sempre influência, acreditei um pouco mais na possibilidade." A decisão do local da reunião da NATO seguinte deveria ser anunciada num comunicado no fim do encontro, mas quando chega o momento, revela Rui Patrício, "está a imprensa toda presente, mas não havia consenso. O presidente do Conselho (Marcelo Caetano) telefonava e dizia-me: 'Não pode ceder ou perdemos a face perante a opinião pública.' Foi aí que o secretário-geral da NATO exigiu a reunião restrita para se ter a decisão". Lunds fora diplomata em Lisboa e conhecia o pai do ministro: "Às vezes estas coisas ajudam. Com o seu vozeirão - e muito prestígio - disse: "Vamos resolver isto. Já estamos todos irritados, com fome, e este português a chatear…"
O discurso do ministro português a apelar à realização do encontro foi dramático e acusatório: "O que está em causa não é ser em Lisboa, é a autonomia dos membros da NATO." Acrescenta: "Então, Lunds toma a palavra e diz que os portugueses têm um problema em África mas 'vocês, franceses, não andam na Argélia a matar? E vocês, ingleses, não estão no Quénia? E vocês, americanos… Deixem de chatear aqui o meu amigo português.'." E a reunião acabou por se realizar em Lisboa.
Rui Patrício termina a história a contar o que se passou meses depois: "Às sete da manhã, telefonam-me para casa e informam-me: 'Lisboa está isolada.' Tinha havido uma bomba no centro de comunicações e as comunicações estavam todas cortadas." Acabara de acontecer o atentado da Acção Revolucionária Armada (ARA), o braço armado do PCP, que isolou Portugal a nível de comunicações do resto do mundo. A ARA ainda voltou a atacar a NATO, ao sabotar o Comando Ibérico da Área Atlântica a 27 de Outubro.
As bombas que o PCP evitava e o PRP-BR decidiu pôr
A fuga de dez comunistas do Forte de Peniche a 3 de Janeiro de 1960 pôs em liberdade dois homens que iriam divergir nos métodos de protesto ao regime. De um lado, Álvaro Cunhal; do outro, Francisco Martins Rodrigues. O primeiro rapidamente toma nas mãos o PCP e insurge-se contra os desvios de direita da década em que esteve preso, que considerava que o poder poderia ser tomado pela via das eleições. É nessa altura que a posição contrária também surge, a da insurreição armada para se chegar lá, teoria que a cúpula do Partido olha com bons olhos mas demora em aplicar à prática. Cunhal era adepto e mentor dessa via mas ao não avançar provoca dissidên- cias internas e críticas como as de Humberto Delgado, que quer acção. É durante este período que Martins Rodrigues cria a Frente de Acção Popular para actuar de forma explosiva, mas sem sucesso. No entretanto, Cunhal manda um grupo treinar para Cuba - sob orientação de Raimundo Narciso -, que virá defender uma nova forma de luta, a da guerrilha rural. E, também, que a facção de Carlos Antunes se prepara para avançar para a acção armada, situação que se verifica em 1967, após o VI Congresso do PCP por divergências de acção política para derrubar o regime de Salazar.
Dois anos depois, Antunes inicia o recrutamento e a preparação de atentados que decorrerão até ao 25 de Abril. A sigla é BR, Brigadas Revolucionárias, a que mais tarde se juntará o PRP, o Partido Revolucionário do Proletariado. Esta organização vai suplantar qualquer outra deste cariz em Portugal, tal é o número e a espectacularidade das suas acções. Mesmo as do braço armado do PCP, a ARA, na qual o secretário-geral nunca reconheceu ter agido.
A direita entra a matar e faz um mártir
A seguir à revolução de 1974, a acção armada contra o regime de Salazar/Caetano cessa de um dia para o outro. A gigantesca manifestação do 1.º de Maio que se seguiu mostra à esquerda e à direita que o Poder estava na rua, situação que exigia de ambas as partes uma intervenção bastante diferente. Se a ARA já estava desactivada e as Brigadas Revolucionárias do PRP suspenderam os atentados, a radicalização do processo político fez nascer várias "células" contra o evoluir dos acontecimentos, com um modo de operação que visava a eliminação de pessoas e não tanto do regime. São várias as organizações extremistas de direita que optam pela via dos atentados a "revolucionários" e pela colocação de bombas em sedes de partidos de uma esquerda ainda muito nebulosa. A situação é tão dramática nesses meses a seguir ao 25 de Abril que a maior parte da estrutura dos funcionários do PCP ainda se manterá na clandestinidade até ver como fica a situação.
O 25 de Novembro será uma das datas que extremarão as posições entre tendências dos militares de Abril, dos partidos e, num cenário que fará correr muita tinta, de atentados que farão algumas vítimas mortais. O general Spínola foge para Espanha após uma tentativa de golpe; Alpoim Calvão é o alegado chefe operacional da rede bombista e, entre muitas outras situações de crise, surgem os atentados que marcarão essa parte da história portuguesa. O Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP) faz um dos mais espectaculares atentados e cria um mártir: o padre Max.
A autoria ficou por encontrar. Em 1977, o processo foi arquivado por falta de provas; em 1989, reaberto e responsabilizadas sete pessoas; em 1996, é reaberto e, em 1999, anulado o acórdão. As acções armadas do ELP confundem-se com as do MDLP e há quem afirme que somaram mais de 435: destruição de sedes dos partidos de esquerda (PCP, MDP/CDE e UDP) e de sindicatos e associações populares, bombas na Embaixada de Cuba e na sede do PCP. Um dos alegados responsáveis por estas actividades é Joaquim Ferreira Torres, assassinado em 1979, antes de ser julgado.
O caso mais mal explicado: FP-25
Há quem atribua a Otelo Saraiva de Carvalho a fundação das FP-25 em 1980. O capitão de Abril esteve preso, foi julgado, mas nunca o assumiu, e em 1996 a Assembleia da República indultou-o. As FP-25 são acusadas de 18 vítimas até 1987: atentados à bomba, tiroteios e assaltos a bancos. O recrutamento foi feito nas Brigadas Revolucionárias que, entretanto se separaram do PRP. A ligação das BR ao COPCON de Otelo, à Frente de Unidade Revolucionária e aos Soldados Unidos Vencerão, abasteceu-as de munições e um dos casos mais célebres foi a entrega de três mil G3. Dada a espectacularidade das acções, a Judiciária prendeu 41 suspeitos, revistou a casa de Otelo e deteve-o. Foi o fim das actividades armadas das últimas cinco décadas de protesto político em Portugal.
Vir de fora matar a Portugal
Nem só de actividades promovidas por portugueses se escreve a história da acção armada e do terrorismo em Portugal. A 10/04/83 o país acorda para o assassínio do palestino Issam Sartawi, que participava num Congresso da Internacional Socialista. O assassino foi capturado, julgado, condenado a três anos. Saiu em liberdade a meio da pena. No mesmo ano, a 27 de Julho, a Embaixada da Turquia em Lisboa foi invadida por um comando do Exército Revolucionário Arménio. Os cinco assaltantes morrem na estreia do Grupo de Operações Especiais, bem como um polícia e a mulher do embaixador devido à explosão acidental dos engenhos do comando. A mesma organização assassinara a 7/6/82 o adido turco Erkut Arkbat.
Na nova fase do terrorismo global, Portugal tem servido de porta de entrada para a prossecução de vários atentados. O suicida paquistanês Imram Cheema foi detido em Barcelona, em 2008, após viagem com origem em Portugal. A recente detenção da ETA prova que, após a luta política interna, Portugal passou a plataforma terrorista global.
Por solucionar, em Portugal, resiste um caso: o alegado atentado a Sá Carneiro.