'Pílula abortiva' entra na lista de medicamentos essenciais da OMS
A RU486, também conhecida como "pílula abortiva", foi incluída pela Organização Mundial de Saúde (OMS) na sua lista de medicamentos essenciais, isto é, fármacos considerados "seguros" e "eficazes" na melhoria das condições de saúde. As implicações políticas desta decisão, tomada pelo Comité de Peritos na Selecção e Uso de Medicamentos Essenciais, são tais que a publicação da lista, aprovada pelos especialistas em Março, foi adiada durante meses. Segundo a IPAS, uma organização internacional dedicada à questão do aborto inseguro, um dos motivos terá sido a pressão do governo norte-americano, que não estaria feliz com a hipótese.
Segundo o relatório do comité, agora disponível na Internet (ver caixa), o pedido de inclusão dos fármacos abortivos na lista de medicamentos essenciais da OMS vinha de organizações como o Banco Mundial, o Fundo das Nações Unidas para a População e para o Desenvolvimento e mesmo de alguns sectores da própria OMS.
A lista final - cuja 14.ª edição foi discutida em Março e conhecida no final da semana passada - inclui o misoprostol (Citotec e Arthrotec, nas denominações comerciais) e a mifepristona (RU486, ou Mifegyne), a qual, mesmo nos países onde está licenciada, não é disponibilizada nas farmácias, mas apenas nos hospitais, por indicação médica.
A inclusão destes fármacos significa que o comité os considera recomendáveis pela segurança, eficácia e adequados para desenvolver os objectivos que subjazem à criação da lista "Salvar vidas e melhorar cuidados de saúde."
A lista em causa é composta por dois sub-grupos "principal" e "complementar". O misoprostole o mifepristona foram integrados na segunda, o que significa que são considerados, de acordo com a explicação da própria OMS, "medicamentos essenciais para patologias prioritárias para as quais são necessários diagnósticos e / ou cuidados médicos especializados e/ou treino específico". Outro motivo desta classificação, segundo a OMS, pode ser o custo elevado ou uma relação eficácia/preço menos atractiva. A lista principal, por sua vez, inclui os medicamentos considerados mais eficazes, seguros e acessíveis para um sistema de saúde básico.
A sensibilidade política desta decisão, que poderá ter contribuído para que os dois medicamentos não fossem incluídos na lista nuclear, determinou também que fossem objecto de recomendações especiais a de "vigilância médica atenta" - a que nem certas substâncias psicotrópicas da lista, como a morfina, têm direito -, e a "quando permitido pelas leis nacionais e onde culturalmente aceitável".
Esta última advertência - acrescentada ao documento por iniciativa do director-geral - refere-se ao facto de o aborto ser proibido ou muito restringido em vários países do mundo. Apesar de a ONU e a OMS chamarem sistematicamente a atenção dos países para as mortes de mulheres devido a abortos inseguros (68 mil por ano) e incluírem a saúde sexual e reprodutiva nos direitos humanos, a ilegalidade da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) em várias nações tem tornado os acordos internacionais evasivos nesta questão, ressalvando sempre a preponderância das legislações nacionais e das "culturas específicas".
Em Portugal, apesar de o aborto ser permitido em várias circunstâncias, a RU486 nunca foi licenciada. Segundo o Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (Infarmed), nunca houve sequer um pedido de licenciamento desta substância. Em alternativa, os hospitais usam o misoprostol, embora vários médicos considerem que a mifepristona é mais segura e eficaz na indução da IVG.
É o caso de Luísa Martins, obstetra da Maternidade Alfredo da Costa "A nível hospitalar facilitaria a vida ter acesso à RU486. Permitiria fazer abortos em ambulatório e, mesmo em casos de gravidez mais avançada - quando há interrupção por malformação, que pode suceder até às 24 semanas - poder-se-ia combinar a RU com o misoprostol, programando o momento da expulsão." Para a especialista, a disponibilização do medicamento "é um dos anseios dos médicos desta área". Haverá até intenção, por parte de alguns obstetras, de solicitar o licenciamento da RU486.
Também para Maria José Alves, presidente da Associação de Planeamento Familiar (APF), "a mifepristona permite fazer um aborto médico seguro". Ressalvando que "a questão não deve ser pensada em termos de 'pílula abortiva', mas como uma hipótese de realização de um aborto em segurança", a obstetra considera que o fármaco constitui "mais uma opção para as mulheres que têm contra-indicação para um aborto cirúrgico".
Quanto à decisão da OMS, Maria José Alves considera que "as implicações não serão directas", já que dependerão sempre da lei de cada país e "da vontade da classe política e da classe médica". Para a especialista em obstetrícia, o licenciamento da pílula RU486 em Portugal "seria uma hipótese de fazer um aborto médico seguro muito mais eficaz".
Segundo a OMS, a combinação de mifepristona/misoprostol no aborto médico até às nove semanas de gravidez está registada em 27 países, 14 deles na Europa, incluindo a Espanha.