"Às vezes há obras..." Mas é raro. "Daquelas que nos sentimos filhos", diz o mais novo, sentado numa cadeira a dar para a janela onde o escritor lhe surge recortado no contraluz de fim de tarde. "É, e com esta capa o livro ficou lindo... Dá a ideia de que as coisas continuam a acontecer", atira o escritor sem olhar o mais novo, mas fixando a capa, entrando nela com os olhos pequenos mas sem a tocar com as mãos que se cruzam, entretanto, debaixo do queixo. Repete: "Lindo." E no papel, há um vulto que sobe, corre, vai cidade acima. Cidade de tinta, ilusão desenhada. Será Molero quem corre? Dinis Machado, o escritor, não quer saber, até porque essas coisas não se dizem e muito menos se sabem. Conversa-se, "conversa boa", classifica-a António Jorge Gonçalves, o mais novo, ilustrador da edição comemorativa dos 30 anos de O Que diz Molero, agarrado aos olhos do autor da obra que, desde um dia de 1994, na primeira vez que a leu, sonhou ser sua..A matéria é a palavra. E foi pela palavra que António Jorge Gonçalves conduziu uma viagem estética para transformar esta edição do texto de Dinis Machado num objecto guardável. "Não havia um livro objecto, uma edição de jeito, desta obra tão emblemática." E o lamento levou-o à tentação. A de ser ele a tentar, apesar de achar "que Molero não precisava das suas ilustrações, nem das de mais ninguém". Agarrou-se então à palavra e quis que o seu trabalho funcionasse como uma moldura, "como aquelas molduras douradas que se põem à volta dos quadros impressionistas para que quando as pessoas cheguem se curvem e olhem o nome que está em baixo"..Que funcionasse como uma porta de entrada. Traços para acondicionar o primeiro parágrafo de um livro considerado revolucionário para a literatura, no ano em que saiu. 1977. Livro difícil de arrumar nas prateleiras dos géneros. Qual género? Fernando Assis Pacheco, o escritor jornalista, chamou-lhe, já lá vão 30 anos, o reduto do "universo machadiano". ."Estou cheio de cinema".Mas que universo é esse? António Jorge Gonçalves vê aí um filme. Cinema. Ilustrou-o a pensar nisso. Enaltecer a obra sem interferir nela. Usando folhas de papel diferente , vegetal, transparente, pintado a vermelho e branco onde estão frases a preto escritas com a sua própria grafia. São o primeiro e último parágrafos, entrada e fecho do livro. Uma espécie de separador. Quis que fosse "homenagem ao espírito cinematográfico" ali presente, "um zoom-in e um zoom-out e a ideia de continuidade. Este livro remete-me muito para o 8 1/5, do Fellini. Concorda?" O rosto de António Jorge vira-se para o de Dinis. "Também acho que sim... "Estou cheio de cinema na minha vida." Dinis diz e volta ao papel de ouvinte: "Há uma deambulação permanente da câmara que vai atravessando tudo..." E o cinema passa para a literatura, contagia Molero porque "não há compartimentos estanques", volta a falar Dinis. .E António Jorge, que já fizera a cenografia da adaptação teatral do livro, assinada por Nuno Artur Silva e representada por António Feio e José Pedro Gomes (1994) garante que nunca falou destas ideias ao autor de Molero. "Ainda pensei nisso, mas depois desisti." ."Já tem confusão suficiente", sorri Dinis Machado, sem descruzar as mãos pousadas sobre as pernas. E quando as viu, às ilustrações? "Lindo, lindo..." O adjectivo repete-se mas agora com justificação. "Acho que era uma ideia que estava a pedir para ser feita. Criou um corpo de ilustrações que justificou o livro.".E isto veio a propósito do tal "universo machadiano", de que falara Assis Pacheco, mas a conversa derivou. Não para o lado errado. É cinema, afinal, esse mundo. "De deambulação", precisa o ilustrador, "um comboio de pensamentos de uma força incrível". E mais. "Reconheço aqui a mesma genialidade de Fellini, uma capacidade permanente de associação de ideias e de registos diferentes de uma inventividade impressionante." Um plano e a seguir outro e outro... e nem sequer um corte. "Estamos num raciocínio quase analítico e sociológico sobre qualquer coisa mas que uma palavrinha faz descambar no burlesco outra vez para ir parar de repente a um registo poético e acabar às cambalhotas num comentário qualquer burocrata do burocrático DeLuxe..." .A regra da impossibilidade.As palavras saem em catadupa da boca de António Jorge e Dinis ouve e assente em silêncio, olhos no chão, sorriso indisfarçado. "É um óptimo leitor, ele." E é quando a expressão muda, se abre, e continua a ouvir. "Para mim, a liberdade é isso, o mito da liberdade artística que parece comprometido com esta época em que a conceptualidade impera... O Dinis neste livro não podia ser mais livre. Ninguém podia ser mais livre..." e não há fronteiras nem de registo nem de nada. O tempo é tratado de forma livre. Cortado, entrecortado, "ao mesmo tempo um solilóquio e uma enunciação de qualquer coisa". São considerações de leitura. "Quando alguém pega num livro, altera-o", sentencia, por sua vez, o autor. "E consegue dar-lhe uma sequência própria que até aí não tinha." Outra vez o autor. ."Ó Dinis, eu senti nesta leitura que não há uma busca desesperada de algo, de um sentido, a que sucedesse depois uma frustração ou decepção. E uma procura que aceita desde o início a regra da impossibilidade..." E à teoria Dinis responde: "Percebo, percebo. Acho que é isso, está a dizer bem. As pessoas metem-se nestes textos porque lhe dizem muitas coisas e com essa ideia de aproximação estão sempre a reformulá-lo. A questão da obra de arte é entrar na vida das pessoas..." E no fim o que fica podem ser só vozes, vozes que escolheram Dinis para seu canal. Labirinto narrativo, tocata e fuga, "e andamos sempre numa espiral". Espiral de vozes. E todas as personagens são Dinis. E Dinis concorda. .Mas Dinis lerá ainda este livro? "Às vezes ainda releio, porque me está sempre a ser sugerido." E ainda se perde nessa leitura. "Continuo a perder-me e a encontrar-me." Na obra que o marcou para sempre como um peso, um fardo. Bênção e maldição por apagar as que se lhe seguiram. A partir do dia em que deixou os policiais que assinava Dennis McShade e decidiu criar um texto seu, pessoal, no qual estivesse a marca não do pseudónimo mas do homem com grafia que quis original, a romper cânones. Lembra-se desse momento que António Jorge Gonçalves associa ao da inspiração que encontra o criador a trabalhar? Dinis Machado pára o olhar como se tentasse reter o tempo, o de se sentar a inventar Molero e todas as vozes que o rodeiam. "Agarrei-me àquilo. Foi uma espécie de exigência que me fiz." E as vozes, como chegou a elas? António Jorge pergunta e ouve, mas sabe que não há respostas para todas as perguntas que queria fazer. Por isso, algumas, nem as faz. Esta tem retorno. "Foi duro porque nada é tão efectivo quanto parece. Depois a nossa experiência é que trabalha isso." Dinis era esse canal por onde passou a inspiração quando tinha uma vontade enorme de liberdade, de alterar a ideia das coisas. "Achava que se deviam fazer coisas novas, diferentes. E talvez me tenha metido nesse caminho para responder a isso.".O gozo.Não se lembra quanto tempo demorou entre o princípio e o fim mas recorda-se que partiu para o texto "e aquilo nunca mais acabava". Ri. Riem os dois e não se olham quando riem. "Acabou por acaso", remata Dinis entre o "entulho e a limpeza, ou o entulho a que era preciso dar corpo. Talvez tenha conseguido", diz. Talvez? "Sim, tudo na vida é relativo." . E a intenção era esbater fronteiras. Esbateu. O livro revolucionou, já se disse. António Jorge insiste e traz uma palavra nova. Gozo. A escrita como exercício de gozo. "Se não fosse tanto o gozo..." E não termina a frase porque há palavras que se dispensam entre tantas. "Este livro tem todas as palavras lá dentro, em última análise tem a vida toda lá dentro. É um livro com L grande. É das palavras." Estas, são do ilustrador que fala ainda da possibilidade de através da "associação das palavras construir coisas dentro da cabeça". Pausa na sala. "Isso da associação das palavras é bem observado." Agora é o escritor. E tudo para justificar a obrigatoriedade de "trazer" a palavra para a ilustração.