'Dúvida' estreia-se hoje no Maria Matos

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"O que fazer quando não temos a certeza?" O que fazer quando desconfiamos que alguém que conhecemos é pedófilo? Damos o benefício da dúvida e olhamos para o lado? Então e a criança? Intervimos mesmo sem ter provas? Então e a honra daquele homem? É esta Dúvida que paira sobre o espectáculo que hoje se estreia no Teatro Maria Matos, em Lisboa, com Diogo Infante e Eunice Muñoz nos principais papéis.

Escrita em 2004 pelo norte-americano John Patrick Shanley (dramaturgo e argumentista oscarizado de filmes como O Feitiço da Lua e Joe Contra o Vulcão), a peça Dúvida recebeu um Pulitzer e um prémio Tony. No Maria Matos, com encenação da também realizadora Ana Luísa Guimarães, o espectáculo que nos põe a suspeitar de um padre moderno e simpático, óptimo orador e professor acarinhado fica em cena até 6 de Maio.

Eunice, a irmã protectora

"É um texto excelente, de uma carpintaria notável. É uma peça de autor mas também de actores. E apesar de a acção se situar nos anos 60 é de uma extrema actualidade", afirma Diogo Infante, que tinha programado esta Dúvida para abrir a sua programação no Maria Matos, há precisamente um ano. "Na altura a Eunice tinha compromissos e nós decidimos esperar por ela", conta a encenadora. "E se tinha a Eunice então tinha que ter o Diogo. Orgulho-me de ter neste palco os dois maiores actores das suas gerações."

Ao ouvir estas palavras, Eunice Muñoz baixa a cabeça. A actriz que não gosta de estar parada (ainda no ano passado percorreu o país com Miss Daisy) confessa que a idade a obriga a ser mais exigente consigo e com os outros: "Cada vez é mais difícil. Tenho que lutar mais e tenho que acreditar mais nos textos e nas personagens. Preciso sempre de quem me oriente e de quem me ajude." Eunice, pequena e frágil nos seus 79 anos, agiganta-se quando sobe ao palco para interpretar uma freira, a irmã Aloysius, directora de uma escola, fria e distante dos alunos, preocupada com a disciplina e a hierarquia mas que, ao mesmo tempo, se sente responsável pelas crianças e está disposta a tudo para as proteger. "No fundo ela não é má pessoa", garante a actriz.

Diogo, o padre progressista

A acção passa-se no Bronx, Nova Iorque, nos anos 60 mas se não fossem os nomes ingleses e a referência ao assassinato de Kennedy nada impediria que a acção tivesse lugar um destes dias, perto de Lisboa. A pedofilia, nomeadamente a praticada por sacerdotes, é tema actual.

Mas Dúvida não se fica por aqui. Abordam-se temas como a discriminação racial e as dificuldades das classes desfavorecidas - a mãe do rapaz (interpretação de Lucília Raimundo) está disposta a aceitar o abuso "só até Junho" desde que o filho cumpra a escolaridade, como um sacrifício que é preciso fazer para ter acesso a uma vida melhor. A peça é ainda atravessada pelo choque entre duas gerações com modos muito diferentes de encarar a religião e a educação: o padre Flynn, que veste o fato de treino para dar aulas de ginástica aos rapazes, e a irmã James (interpretação de Isabel Abreu) representam a abordagem próxima defendida pelo o Concílio Vaticano Segundo; enquanto a severa irmã Aloysius representa a tradição (não admite canções pagãs na festa de Natal tal como não permite que os alunos utilizem esferográfica).

Finalmente, existe uma reflexão sobre a dúvida e sobre o boato - temas dos dois sermões do padre Flynn à plateia. E a equipa reconhece que, durante os ensaios, pensou muito nos acusados do caso Casa Pia. "E se eles forem inocentes? O que vai acontecer àquelas pessoas?"

"Para além do mistério sobre se ele é culpado ou não, há uma questão maior: é que temos de tomar decisões mesmo quando temos dúvidas", explica Ana Luísa Guimarães. "O mundo não é a preto e branco. Mas temos de ter coragem de agir, assumindo as nossas dúvidas."

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