'A Morte de Danton' recriada como um cadáver esquisito da Revolução

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Carla Bolito é uma enfermeira a empurrar uma cadeira de rodas e leva Miguel Damião, soldado fardado e de tricórnio, aos gritos. Representam, para quem espera entrar na sala do Teatro Taborda, em Lisboa, um prólogo ao espectáculo A Morte de Danton na Garagem, que o aí residente Teatro da Garagem estreia hoje (21.30). Carlos J. Pessoa encenou e adaptou, com David Antunes, A Morte de Danton, de Georg Büchner (1813-1837). Apropriou-se do drama histórico do autor de Woyzeck, como ensaio teatral dele.

É tricolor e de estrutura tripartida o espectáculo, no palco e na plateia (só umas cadeiras e almofadas contornam a galeria). O negro substitui o azul da bandeira francesa - no final é que banha a cena uma luz azul (desenho de Miguel Cruz), "da pequena revolução, do sonho de uma recuperação, do azul como atmosfera respirável da liberdade, do fogo dionisíaco, do teatro como lugar de celebração de todos" - escreveu David Antunes no programa. Refere também o ímpeto mimético de Louis David (pintor contemporâneo da Revolução Francesa, o autor de Marat Assassinado). E compara a Revolução a um cadavre exquis (cadáver esquisito): ideia adaptável à criação do espectáculo, a várias mãos, de forte componente pictural.

Negro, vermelho e branco são, então, as cores, da cenografia e dos figurinos de Sérgio Loureiro. Por elas se dividem as personagens: Danton (Ana Palma) e seus partidários, brancos, correspondem ao plano da Revolução; Robespierre (Cláudio da Silva) e os seus, vermelhos, estão no plano do terror; o Encenador, doente hospitalizado (Diogo Bento), e os seus, situados no plano do teatro, são negros (anarquistas?). Os distintos planos interagem.

A Carlos J. Pessoa, a metáfora da doença/do hospital pareceu "a mais eloquente do estado-limite de procura duma esperança", como diz ao DN. Esperança de cura ou de lenitivo, ao menos. "Büchner procurava um teatro de verdade, pesquisa, meio de conhecimento, mas era de um profundo cepticismo e duma descrença na humanidade" que Pessoa não partilha por inteiro; daí a questão da cura. Acrescenta: "Inventei a personagem do encenador, que imagino com as dúvidas e especulações de Büchner, se ele tivesse de encenar a peça, e com as minhas próprias dúvidas."

A distribuição da personagem de Danton a uma actriz, explica, não teve só a ver com elenco disponível (há seis actores convidados em nove), mas também com características de Ana Palma, como a energia. Presença viabilizada pela trama entrelaçada nas cenas d'A Morte de Danton.

A estrutura descontínua do espectáculo, coerente com a escrita fragmentária do autor, tem "afinidade com o percurso da companhia", para Carlos J. Pessoa. "Em especial ... Danton", pela importância que dá à sua peça de estreia como actor, na anterior encenação, por Carlos Avilez, no TEC, 1989. A seguir, nascia o Teatro da Garagem, em Pequeno Areal Junto à Falésia com Cravos. Num "percurso marcado pela tentativa de perceber Portugal e a Revolução como momento fulcral", chega-se à Morte de Danton na Garagem, quando "Liberdade, Igualdade e Fraternidade continuam a fazer sentido, herdeiros que somos desta História e desta gente" .

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