Violante Saramago Matos. Filha do Nobel da Literatura evoca a memória da mãe, Ilda Reis, que foi .uma das melhores gravadoras portuguesas e a primeira mulher de Saramago. E fala da separação dos pais. "Uma situação muito complicada para mim, de tal forma que há momentos que nunca guardei".Os primeiros minutos não são fáceis. Os dedos esguios afagam a chávena quente de chá verde enquanto a água inunda os olhos que se mantêm fixos na figura maternal que se quer perto e que a roda da vida afasta sempre cedo de mais. Custa-lhe engolir. O sorriso manifesta a dor que salta da alma. Há silêncio. E a conversa tarda em chegar. Sentadas numa esplanada no meio do Funchal, há um vento que corta a avenida trazendo salpicos de chuva. O céu e o mar confundem--se num cinza-chumbo, nesta cacimbada madeirense que aperta o juízo e dificulta o arranque das palavras..Onde está aquela mulher de causas que conhecemos, agressiva no discurso, teimosa na sua verdade, sempre pronta a partir para mais uma luta? Violante Saramago Matos, filha única do escritor José Saramago, militante dos velhos tempos do MRPP, presa pela PIDE, ex-deputada do PS e do BE, nasceu do ventre de Ilda Reis, primeira mulher do Nobel da Literatura. Já falecida. Uma senhora da arte. Esquecida? Talvez, mas não na memória tatuada de Violante. .Primeiro chega-nos a idade. Nascida em Lisboa a 1 de Janeiro de 1923, teria hoje 85 anos se não tivesse falecido há uma década. Ainda agora se detecta na filha a mágoa por esta morte. ."É difícil, ainda hoje, falar dela. É uma saudade grande. Uma falta demasiado acentuada em certos dias e momentos da minha vida. A minha mãe era uma mulher de uma sensibilidade e afectividade enormes, mas muito retraída e metida consigo própria, fechada dentro dos seus medos, da sua casa, sem dar direito ao seu espaço.".O olhar continua vago. Longe. Deixo-a falar. Assisto ao solilóquio.."Do ponto de vista artístico, ela poderia ter recebido em vida o reconhecimento que lhe era, de facto, devido. Quem conheceu a sua obra diz que foi uma excelente artista com uma capacidade de transmitir para a gravura, metal ou pedra todas as suas revoltas. Mas ela quase pedia desculpa por ser tão boa gravadora.".Mais uma pausa para o chá verde para logo recordar o pequeno atelier na casa da Parede, onde eram feitos os primeiros estudos, os primeiros esboços, antes da arte final se completar na Gravura - Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses, espaço por onde passaram Júlio Pomar, a recentemente falecida Alice Jorge, Manuela Pinheiro e Sérgio Pombo - um conjunto de personalidades que Violante recorda bem. .Ilda Reis começou a expor em 1966-67, tinha Violante 19 anos, e não mais parou até dois anos antes de morrer. ."Quando já não tinha forças para a gravura, refugiou-se na pintura. Mas onde eu acho que ela era muitíssimo boa era, realmente, na gravura. O seu espólio encontra-se, desde 1999, à guarda da Biblioteca Nacional, que em Setembro deste ano fará uma grande exposição com o trabalho dela.".Ela, ela. Dela..A Ilda Reis que casou com José Saramago, ainda escritor desconhecido..O verbo é o mesmo. Violante desconhece como se deu o primeiro encontro.."Não sei? penso que terão sido colegas nalguma escola? Terá sido na Escola António Arroio? Há pormenores que, de facto, a gente acaba por nunca perguntar. Talvez porque não calhe ou talvez porque, por algum motivo, não nos apeteça mesmo fazer perguntas.".A conversa abriu alas. .Ilda Reis foi dactilógrafa da CP. Em 1965, ou seja, aos 42 anos, toma uma decisão. Abandona o emprego seguro para se dedicar em exclusivo à gravura.."Estamos a falar da década de 60. Não imagino as barreiras que ela teve de ultrapassar. Nem sequer percebi a dimensão do passo, as consequências. A coragem e determinação. Sei que fez vários cursos na Sociedade Nacional de Belas Artes, de gravura, desenho, pintura, e na Sociedade Corporativa de Gravadores. Aos poucos, ficou fascinada pela gravura.".Como é que a jovem "irreverente" Violante convive neste triângulo familiar? ."Era um trio complicado. Eles eram pes- soas muito diferentes um do outro mas constituíram o meu universo e o meu ponto de referência. Educaram-me. Para mim, não há casa sem livros nas estantes e quadros de pintura nas paredes." .Violante viveu com os pais até 1970, ano em que casou com Danilo Matos, um estudante do Técnico, madeirense, e militante activo do MRPP. .O casamento coincide, mais ou menos, com a separação dos pais.."Foi uma situação muito complicada para mim, de tal forma que há momentos que pura e simplesmente guardei e não me lembro. É um dos meus mecanismos de defesa relativamente às coisas que me marcaram e magoaram? Teria de fazer um esforço violento para recordá-las e isso recuso-me a fazer!".Não há perguntas. É Violante que recomeça a frase seguinte em tom baixo.."Já me chega o sentimento de tudo o que magoa, mesmo sem ter presente aquilo que na realidade me magoou.".Mais tarde, Ilda e Saramago conseguem manter "uma boa relação, equilibrada e afectiva. Quando ela morreu, o meu pai veio de Lanzarote"..A agulha salta, de imediato, para a faixa da política. De propósito. Saberemos, então, como é que Ilda Reis conviveu com as posições da filha e do genro em plena ditadura.."O Danilo e a minha mãe sempre se adoraram. Eram muito cúmplices. Mas em termos políticos, em Portugal, tudo se agudiza a partir de 1971. Os meus pais já estavam divorciados. A minha mãe era uma mulher doce, determinada e extraordinária. Vivia sozinha, mas nunca fechou as portas às reuniões políticas. A primeira reunião do MRPP com uma delegação da Fretilin, antes do 25 de Abril, foi realizada na sua casa, na Parede." .Mas a mãe-coragem ainda estava para vir. ."Em 1973, a minha mãe deixou a neta com um ano e meio à porta da cadeia de Caxias e veio embora. Ela tinha recebido uma indicação do partido (MRPP). E cumpriu. Chegou a Caxias, disse aos guardas que não tinha condições para tratar da criança, que eu estava lá dentro, portanto, entregassem-na à mãe. Não consigo imaginar o que aquela mulher sofreu. Mas foi por mim! Eu tinha sido presa pela PIDE e esta era a única forma de reduzir o meu tempo de tortura, porque, assim, passaria a cuidar da minha filha, a Ana. A minha mãe dizia que este foi o pior dia da sua vida.".O chá verde está amarelo de frio. Esquecido. Violante aquece a voz para explicar quem era, no fundo, Ilda Reis.."Uma mulher independente mas com uma carência afectiva imensa. Não lhe chegava saber que as pessoas gostavam dela. Era preciso que as pessoas manifestassem esse carinho", diz enquanto olha para o anel que traz no dedo da mão direita e que foi "dela"? Garante que herdou do pai, José Saramago, as semelhanças físicas e o feitio. A "emoção visível" recebeu-a através dos genes da mãe, Ilda. O crepúsculo, a hora mágica, tomou conta da cidade.|