O QUE LEVARIA duas pessoas vindas ao mundo em anos tão diferentes a ser amigos até ao fim da vida? Falamos de Sophia de Mello Breyner Andresen, nascida em 1919, e Alberto Vaz da Silva, no ano de 1936, uma poetisa e um advogado, que se vêem agora reunidos na Evocação de Sophia que o mais novo publicou recentemente na editora Assírio & Alvim e em cujas páginas se levanta um pouco do véu de uma grande amizade e vivências..Antes que se cumpram dois mil dias da morte de Sophia, Alberto Vaz da Silva pôs de parte os pruridos para se lançar numa «viagem de pura intimidade», em que descreve partes das suas duas vidas ao evocar a poetisa de um modo bastante especial num texto breve – para tudo aquilo que (con)viveram –, mas que presta ao leitor um esclarecimento gigantesco na fixação de uma biografia que ainda se mantém muito longe de estar registada..Quando se utiliza parte da frase de Mozart – «coisas de pura intimidade» – nesta viagem de vida, é porque ela representa aquilo em que Vaz da Silva mais se reconhece na amizade com a poetisa. O advogado até se recorda de em Palermo, perante os palácios barrocos, ambos comentarem essa citação, porque Sophia não apreciava assim tanto o exagerado face à simplicidade da arte grega. Conversas durante uma viagem à Sicília que Alberto Vaz da Silva não deixa esquecida nesta memória devido ao seu peso e que, conforme refere neste volume, «calaram fundo» e «foram até ao fim motivo de evocações intermináveis». Utilizando a poesia de Sophia, recorda «os jardins mágicos do Hotel S. Domenico em Taormina», onde a companheira de viagem até se esqueceu dos restantes passeios programados pelo grupo para permanecer dois dias no terraço do estabelecimento, «numa felicidade e uma alegria que raramente lhe pressentira», para observar em contemplação o mar e a vista para o Etna..Nesta Evocação de Sophia não faltam esses pormenores do dia-a-dia de amigos, tal como está presente a caracterização profunda de uma portuguesa que marcou o século XX como mulher e criadora através das memórias de Alberto Vaz da Silva. É o caso dos «tempos duros da resistência ao salazarismo» de que recorda a sua constante actividade como advogado para libertar Francisco Sousa Tavares de sucessivas detenções que a polícia política efectuava para silenciar os protestos do marido de Sophia..A Evocação contém ainda uma particularidade pouco conhecida no autor, que é a da análise literária no que respeita à obra da poetisa, ao afirmar, entre outras situações, a sua «proximidade de Rilke». Aliás, a reprodução de porções de poemas da poetisa para consubstanciar as suas memórias e afirmações bem demonstram o profundo conhecimento da obra. Quando questionado sobre esta relação, Vaz da Silva revela que a leitura da sua poesia é diária e até confessa que «é como rezar», de tanto os percorrer e conhecer de cor. A razão é simples: «Exprimem de uma maneira inteira e inultrapassável aquilo que me interessa e me inspira. Não é por saudosismo.» .O QUE ALBERTO VAZ DA SILVA conhece de Sophia de Mello Breyner Andresen dava para escrever mais do que o que ficou registado nesta Evocação. Disso não há duvida, mas o autor considera que tudo tem o seu tempo e até promete que um dia destes poderá avançar no registo de algumas memórias da sua vida para alguém lhes dar o caminho que quiser. Apesar de estas confissões resultarem de uma «relação muito próxima» e de muitas conversas ao fim do dia, Alberto Vaz da Silva garante não se lembrar do dia em que conheceu a poetisa. Sabe que foi nos anos 1950, recorda os contornos dos seus debates com José Bénard da Costa e do despique literário que aos 15 anos mantinham para eleger Sophia ou Florbela Espanca como a melhor poetisa..Apesar da diferença de idades entre Sophia e Alberto, garante que a convivência não era difícil e «o que aconteceu foi aquilo a que Goethe chamava afinidade electiva». Ou seja, «não era a poesia, a política ou o idealismo, mas uma consonância de pontos de vista e um gostar de conversar com o outro». Para Alberto Vaz da Silva, a simpatia entre as pessoas nasce, ou não, logo nos primeiros contactos e foi isso que se verificou ao transformar-se um conhecimento «numa confidência que resulta de uma relação sem sombras». Está certo de que Sophia era uma mulher difícil, conforme se diz, e até acrescenta: «Muito difícil.» Refere que a poetisa «não se confiava facilmente e tinha uma espécie de distracção congénita para aqueles com quem não tinha paciência». Como fazia? «Despedia as pessoas com um silêncio ou até com um sorriso, deixando a pessoa gelada e sabedora que tinha chegado ao fim o seu tempo», informa, embora ressalve que «quando gostava, era ela quem procurava a pessoa».A terminar, Alberto Vaz da Silva faz questão de dizer sobre a poetisa: «Tudo o que fazia era maravilhoso.» .Afinidade a nível astrológico.Uma novidade que se encontra neste livro é a análise grafológica e astrológica da poetisa, dois capítulos bastante ilustrados e que explicam certos sentidos da personalidade de Sophia. São estudos inéditos, sendo que o astrológico era de grande dificuldade porque se desconhecia a hora exacta do seu nascimento. Vaz da Silva considera que o resultado dos seus estudos mostram a coincidência com a mulher que conheceu: «Sem dúvida! Tentei fazer o contrário da conferência que está na base do livro e fui muito fundo. O resultado é, de propósito, um pouco hermético e esotérico, mas vai ao mais longe que posso dizer da pessoa. Veladamente, mas é onde vou mais profundo em todo o livro.» Quando se lhe pergunta porquê «veladamente», responde: «Por intenção. É bom ir descobrindo as pessoas e deixar passar o tempo sobre os textos para que se as conheça um dia mais tarde.» Restava questionar se a afinidade entre ambos também existia a nível astrológico. «Sim, para a nossa relação ter a qualidade de alma que teve era necessário haver uma caixa de ressonância comum.» .ENTREVISTA.«Nunca se transformou numa porreiraça».Como nasce esta Evocação de Sophia?De uma conferência por altura dos três anos sobre a sua morte. Peguei nas notas e escrevi um texto a partir daí..Era-lhe difícil separar a poetisa da mulher?Num poeta, as coisas saem sempre do seu âmago, da experiência e da configuração psicológica com que vem ao mundo e o que vive. Há muito de autobiográfico mas até nas traduções que fazia isso acontecia. Era como se tivesse conhecido Byron, Dante ou Rimbaud, por exemplo, e imaginava a sua grande afinidade com esses grandes autores..Porque foi tão implacável com a Revolução de Abril como com o anterior regime?Mesmo que a revolução tivesse seguido outros caminhos teria sido sempre crítica. Teve um manancial de esperança que nunca esperei ver nela e fez coisas – conferências, comícios ou ser deputada – porque achava que tinha a obrigação de as fazer. Mesmo sem abdicar dos seus princípios profundamente monárquicos..Nunca mudou de personalidade?Era uma pessoa difícil e mesmo depois do fim dos constrangimentos políticos, após o 25 de Abril, nunca se transformou numa porreiraça ou adquiriu a bonomia que anteriormente não tinha. Ficou absolutamente igual a si própria e a complexidade de tudo o que se passava na época feria-a. Além de que a constante solicitação para eventos a irritava muito porque detestava fazer discursos e ter um certo tipo de aparições públicas. Precisava de tempo para si. .O que mais detestava?Uma das coisas que mais abominava era a traição. Excedia tudo o que podia conceber.