Sempre pretendeu filmar a tragédia de Eurípides Ifigénia em Áulis numa casa de alterne, ou a ideia só surgiu após começarem a escrever o argumento?.Não, tudo partiu da Ifigénia para chegar à Electra. Depois tentei descobrir onde aquilo encaixava melhor. Tive um clique e descobri a casa de alterne..A tragédia inclui entre as suas regras a unidade de lugar e de tempo. Isso ajudou a fazer essa escolha?.Não sei se ajudou, mas foi propositado. Foi um conceito que apareceu logo na primeira fase de escrita do argumento. Ser num sítio único e com unidade de tempo..Tal como nos filmes anteriores,voltou a passar muito tempo a fazer trabalho de campo para Noite Escura, neste caso a visitar casas de alterne e a pagar muitas garrafas de champanhe....Sim, já o tinha feito com os emigrantes no Ganhar a Vida - foram dois anos. E no próximo filme hei- -de fazê-lo outra vez. Por uma razão muito simples: não se pode encaixar uma história num mundo que não se conhece. E não se pode criar uma história sem ter elementos desse mundo específico, desse real..Que impressão lhe ficou desses dois anos a percorrer, anonimamente, casas de alterne por todo o País?.Uma grande tristeza e uma grande melancolia. E uma estranheza que eu suspeito que tem a ver com este catolicismo português que faz com que o aborto ainda seja proibido em Portugal. Há neste País uma obsessão com o sexo e ao mesmo tempo uma difícil relação com o sexo. O que faz com que Portugal seja o país da Europa com mais casas de alterne por metro quadrado..Desde Sapatos Pretos que o João Canijo anda a mostrar aos portugueses um país que muitos deles não conhecem. E é um país feio, triste e boçal..A profundeza da alma portuguesa vem daí. E não percebo bem como é que os portugueses desconhecem tanto este País, quando nos telejornais da TVI assistimos a excursões para ir ver a porta da casa da menina que desapareceu no Algarve. Isso é muito pior que o retrato que mostro nos meus filmes..Os actores também visitaram casas de alterne, mas passaram lá menos tempo que você, não foi?.Sim, já tinham o ambiente a estudar seleccionado. Para se interpretar uma personagem como deve ser, tem de se conhecer esse mundo desconhecido de onde ela vem. .E foram bem recebidos?.Muito bem. Porque as pessoas do Portugal profundo querem ser mostradas. Mas a Rita Blanco, por exemplo, como é conhecida da TV, não pôde fazer um «estágio» anónimo. Ela esteve na «Face Oculta», de Aveiro, cuja patroa é uma mulher extraordinária, e ao fim da primeira noite ninguém ligava às profissionais da casa, estava tudo à volta da Rita. O negócio das meninas baixou muito....A casa do filme é uma discoteca que nunca chegou a abrir, em Alcochete..É mais uma história do Portugal profundo. A discoteca era uma prenda de um pai aos filhos, onde ele meteu as economias todas. Pouco antes de abrir, o filho, que seria o gerente, foi preso por tráfico de droga. E o senhor enforcou-se na própria discoteca. .O filme tem uma verosimilhança rara no cinema português, que passa muito pelo espaço vivo e realista da casa de alterne, mas também pelo som, pela veracidade das conversas de fundo..Essa sensação vem do facto de toda a conversa, toda a rotina da casa ser totalmente real. Não há nada de inventado. Havia dois argumentos, o da adaptação da tragédia e o das conversas da noite. O argumento de rodagem era a duas colunas, numa estava a tragédia e na outra as conversas na casa, e cruzavam-se, e muito mais em imagem. Só que assim o filme teria duas horas e meia e não pôde ser. Prejudicava a funcionalidade narrativa, dispersava tudo.