«Esse comboio de corda»: do coração ao coração

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PEDRO MEXIA

Fernando Pinto do Amaral abre Pena Suspensa com uma famosa afirmação de Eliot na qual se preconiza um afastamento da emoção e da personalidade. Mas o poeta anglo-americano, no mesmo passo citado, também afirma como condição necessária que o poeta possua alguma personalidade e alguma emoção. É esta segunda parte que explica a epígrafe. Mesmo porque esse entendimento da poesia não é novo em Fernando Pinto do Amaral. Na verdade, Amaral sempre esteve apostado num regresso ao sentido, contra um poesia hermética ou textual. A Poesia Reunida (2000) serve como marco dessa noção agora dominante na poesia portuguesa. Pena Suspensa é igualmente um volume que aposta tudo na legibilidade. Num poema, escrito sob a forma de conselho irónico a jovens críticos, o poeta diz mesmo «e acima de tudo / não caias nunca na vulgaridade / de ser compreendido pelos que te lerem» (pág. 104). Julgo que existe nesta ironia um equívoco: a «legibilidade» ou falta de «legibilidade» de determinado poema não é um critério poético decisivo, mesmo porque se trata de uma categoria difusa e mutável. Poetas ditos «transparentes» convivem no cânone com outros muito «obscuros». E isso é um bem. Assim, a arremetida contra uma poesia que supostamente «não se compreende» parece pouco interessante.

Dentro desse tal registo de legibilidade, a poesia de Fernando Pinto do Amaral é das que demonstram mais destreza e desenvoltura. Professor e crítico, Amaral domina efeitos, intertextualidades, tem uma sintaxe fluida que especialmente se nota nos poemas mais longos. Apostado na narratividade, na descrição, na anotação de episódios, o autor constrói em Pena Suspensa uma poesia acessível, referencial, levemente melancólica, algumas vezes satírica. As ocasiões do poema são variadas: um quarto de hotel, o processo da escrita, o réveillon, uma festa, o Lux, o filme Moonlight Mile, Jerusalém, o 11 de Setembro. O que salva estes textos da banalidade denotativa é o tom e a capacidade técnica. No segundo caso, temos nomeadamente uma enumeração ornitológica (a partir de um poema de Ruy Belo sobre os corvos) que descreve parodicamente várias figuras sociais. No primeiro caso, destaque para um poema sobre as rodas de um carro, que rodam parecendo que não se mexem, metáfora muito produtiva para a passagem do tempo e os enganos da mudança.

Mas a coluna vertebral do volume é constituída por poemas sobre o passado irrecuperável e espectral. Pinto do Amaral recorda repetidamente episódios de adolescência e juventude, perdidos lá atrás, desfocados, tingidos de uma irredimível estranheza, como se tivessem acontecido a outra pessoa. O pathos, em Pena Suspensa, está transferido para esse passado, revivido numa certa distância da emoção (embora não da personalidade). O único elemento que se mantém é a valorização do «coração» como uma fonte de certeza emocional, mesmo que certeza precária.

Amaral satiriza o mundo da literatura e sua feira de vaidades, a bílis e o fel que efectivamente regressaram em força. Mas também faz homenagens e envios. Pessanha, Sena, O'Neill, Sophia, Assis Pacheco ou Agustina são evocados em verso e em pessoa, nalguns casos ao nível do virtuosismo (por exemplo, na reescrita de uma sequência de Camões/Aragon/Carlos de Oliveira). Encontramos nestes poemas uma notória capacidade em jogar com a forma, nomeadamente com a rima, característica que sempre foi timbre deste poeta. Apesar disso, é notória uma ausência de espessura nesta colectânea, um facto recorrente desde Às Cegas (1997). A excepção mais notória é uma secção de sonetos, que abrem com uma citação de Le Rayon Vert de Eric Rohmer. Nesses poemas, o passado é o fantasma lírico de um mundo que se desfez, liricamente e fantasmaticamente transmitido com alguma densidade: «Tenta ler outra vez. Não te apetece / voltar à febre alheia, à superfície / frontal da madrugada? Cada página / destapava outra vida, destilando / o veneno da esperança, a invenção / de um jogo mais que jogo, para lá / do lume que gritava enquanto ardia / na bola de cristal. Ainda conheces / o assombro ou a doença a que chamavas / pensamento? Regressa, por favor, / não te escondas na montra dos sentidos, / no vão sabor do corpo. Não te agrada / o abraço das estrelas quando nascem?, / a rota universal do labirinto?» (pág. 80). É a melhor sequência do livro, que redime algumas fragilidades. Essas residem sobretudo nas peças mais circunstanciais e nos poemas de amor, nomeadamente numa secção chamada «Comboio de corda» («o coração» no poema de Pessoa).

O amor é essa «palavra sonâmbula» que empurra o poema para uma dimensão evanescente e por vezes letal. Quando escreve sobre amores passados, rostos perdidos, noites do Bairro Alto que parecem de outro mundo, Pinto do Amaral consegue algum fulgor lírico. Mas no elogio amoroso, o poeta não alcança a mesma força, mesmo porque se encontra no domínio da plenitude, que em poesia é um obscuro domínio. Um possível modelo, explicitamente citado (David Mourão-Ferreira), sugere uma envolvência erótica que raramente encontramos nesta sequência, na qual se prefere quase sempre o tal universo vago e algo tautológico do «coração», o que confere às palavras uma perigosa condição vocabular. Uma conclusão estranhamente irónica, como no poema «Cardiologia»: «Talvez na sua vida o maior estímulo / fosse a curiosidade. // Era o motor de tudo: aproximava-se / de todas as mulheres que conhecia, / mas só lhe interessavam os seus corações. // Cultivava com método essa obsessão / e tal como as crianças costumam fazer / aos brinquedos preferidos, / também ele queria vê-los por dentro, / saber ao certo como funcionavam (...) // Após cada experiência, observava / aqueles corações já desmontados / e, por não conseguir juntar as peças, / guardava-as uma a uma no seu peito. / Era um lugar seguro /e com tantos pedaços de outras vidas / na sua pulsação descompassada / podia enfim acreditar / que tinha também ele um coração» (págs. 131-132).

A distância eliotiana faz sentido como corrector de um pathos excessivo (ou difuso) da emoção ou da personalidade. Fernando Pinto do Amaral atingiu em A Escada de Jacob (1993) o ponto mais alto dessa poética, que entretanto se tornou algo gentil.

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