«A verdadeira alta-costura é simples»

Poucos conhecem a história por detrás do nome que será seguramente o do costureiro português que mais longe chegou e o único da alta-costura francesa. <strong>Tony Miranda</strong> teve uma loja em Paris, na mesma rua da Chanel. Veste líderes políticos de todo o mundo e tem como principais clientes príncipes do petróleo. Há 25 anos, voltou a Portugal e abriu um <em>atelier</em> em Guimarães, sua cidade natal. Em Lisboa reencontrou o seu mercado, na Avenida da Liberdade.
Publicado a
Atualizado a

Fez toda a sua carreira em Paris, na capital da moda... Por que decidiu voltar, há 25 anos, para vir viver em Guimarães?

_É uma longa história. Vim por uma paixão. A história começa em Londres onde tinha ido provar um fato a um cliente saudita. Ele tinha três aviões, um 747, um 727 e um Falcon. Tinha várias vivendas em Paris e noutros sítios do mundo. Nunca queria que eu fosse ter com ele através de voos comerciais. Dizia que eu era muito importante para ele. E dessa vez alugou um avião privado... e o piloto era uma mulher. Ela era tão gira... E eu disse: «Tenho medo de ser pilotado por uma senhora, agradecia que passasse os comandos ao copiloto e assim podíamos beber um champanhe.» Disse-o na brincadeira, claro. Ela aceitou. Quando eu chegasse a Londres, já tinha tudo preparado e eu e o meu cliente passávamos boa parte da noite a jogar às cartas. Dessa vez, mal saí do avião, o motorista estava à minha espera e pedi-lhe que andasse rápido. Cheguei e disse ao cliente que não podia jogar às cartas nessa noite, que tinha mesmo de voltar. Ele percebeu logo. E disse: «Não vamos provar nada. Tu vais já, e voltas noutro dia, amanhã ou depois mando o avião buscar-te.» E foi assim. Voltei com ela para Paris nessa noite e nunca mais nos deixámos. Durou quatro anos.

E foi por ela que veio para Portugal?

_Eu era novo, vivia naquele meio da moda, conhecia muita gente, muitas manequins, muitas miúdas, a vida era essa. Havia sítios para onde era convidado em que me pediam para ir sozinho, sem mulheres. Ela entrou numa guerra de ciúmes doentios e fez-me uma proposta: «Vamos para Portugal.» A mim custou-me mais do que a ela. Abandonei tudo, clientes... tudo. Fui para Guimarães, onde encontrei um solar antigo que era o meu sonho quando era criança.

Como?

_Eu era de uma família pobre... Nunca nos faltou pão e sopa, como se costuma dizer, era tudo muito honesto. Mas, sempre que ia para a escola, parava naquele portão muito grande desta casa, e sentava-me ali um bocado. Dizia à minha mãe que um dia teria uma casa assim, ao que ela respondia que sim, que eu teria. Já o meu pai achava que a minha cabeça já sonhava com luxos, e que uma coisa daquelas não era para nós. Esse solar era o meu sonho. E, quando cheguei conheci o casal que queria vendê-lo. Comprei-o em duas horas. Mas depois a minha mulher estava habituada a um mundo completamente diferente, acabámos por não nos entender.

E o Tony ficou...

_Fiquei por uma questão de orgulho. Abandonei tudo em França e isso custou-me muito. Vendi a boutique que tinha na Rua Cambon, perto da Chanel, e comecei a dizer à minha clientela que vinha para Portugal. Ninguém acreditava. Aqueles clientes, os maiores, que era eu que ia visitá-los a casa, continuei com eles. Mas perdi muita clientela. Ainda tentei trazer alguns funcionários para cá, para Guimarães, mas ninguém quis. Comecei a formar uma equipa, que é a que ainda tenho hoje, mas perdi muitos clientes por não ter possibilidade de fornecer tudo aquilo que me pediam.

Então não foi bem pela localização geográfica...

_Não, não... Continuava a ter a mesma clientela... Comprei um terreno muito grande, com 45 hectares, onde pensei, se as coisas corressem bem, fazer uma pista de aterragem, tinha o avião particular. As coisas podiam funcionar. Mas Guimarães não dava... A minha ex-mulher saía à rua, quando olhava para trás estava a gente toda atrás dela, seguiam-na. E ela começou a entrar em pânico, dizia que eram um bando de parolos. Depois veio a gota de água. Fomos para a praia, ela estava habituada a fazer topless, e quando demos conta estavam cinquenta homens a olhar para ela, na praia da Póvoa. Ela disse que queria voltar para Paris. E eu não aceitei. Ela tinha muito mais dinheiro do que eu, de família.

E o que fez?

_Inseri-me em Guimarães, mas pouco contava com o trabalho de cá, todo o trabalho era o que tinha de fora. Tenho passaportes que tive de trocar antes do prazo, porque as páginas já não tinham espaço para mais carimbos. Depois comecei a ter uma boa clientela em Guimarães, mas tive dificuldade em alimentar a clientela toda.

Porquê?

_Não havia pessoal. A maior parte das pessoas que estão nesta profissão não sabem o que é a alta-costura.

E o que é?

_Não é só dizer que é uma peça única. Tem outros pormenores. A primeira das prioridades é o corte. Não é folhinhos para aqui e para acolá, porque isso só serve para cobrir misérias. A verdadeira alta-costura é simples, é o fazer uma peça mais simples e dar-lhe um estilo. Depois é o corte, e depois o trabalho, formas que não se dão nem à máquina nem à mão, tem de ser com o ferro. Uma peça dura horas e horas e horas. A alta-costura para homem ainda é muito mais complicada do que para senhora. No caso de uma senhora ainda se pode fazer um corte, caso haja algum problema, que ele acaba por integrar a peça. No homem são quatro costuras e acabou-se, e aquilo tem de cair em condições. Todo o funcionário que sabe fazer um fato de homem trabalha qualquer modelo de senhora.

Tinha mais clientes mulheres ou homens?

_Era dos dois géneros. Fazia famílias inteiras.

Coisas para o dia a dia?

_Claro... A alta-costura não é apenas composta por peças para festas. Adoro o Givenchy, que me dizia quando eu era novo: «A simplicidade é a coisa mais bonita que pode haver, e uma mulher deve entrar numa festa sem dar nas vistas. Mas quando ela desaparece da festa deve sentir-se que ela já lá não está.» Uma mulher, com uma saia de flanela de cinza média e um lindo camiseiro de seda natural está sempre elegante. Esses são os valores da alta-costura. É como ir a um cabeleireiro. Ele corta em função da cabeça, porque nem sempre as cabeças são bem feitas. Isso é que se chama alta-costura.

E não havia em Portugal quem trabalhasse essa alta-costura?

_Não. Eu formei todo o pessoal que tenho na minha casa. Mas tinha uma clientela que não queria apenas cinquenta fatos por ano, era cem ou duzentos. Cheguei a ter três funcionários a trabalharem para um só cliente durante todo o ano...

Quem é o seu melhor cliente?

_As coisas mudaram... E não foi só para mim, foi em Paris também. Antes existiam 25 costureiros, e agora só há dez ou doze. Ainda tenho alguns bons clientes, mas no ano passado perdi um, o presidente do Gabão [Omar Bongo], que vesti durante 33 anos. A esposa dele tinha falecido há meses, fui ao funeral, e ele disse-me: «A minha vida já não faz sentido.» Passados dois meses ele telefonou-me a dizer que queria duas capas. Quando lhe disse que já tinha as capas prontas, disse-me que não se sentia muito bem, para eu esperar mais um bocado. Uma semana soube que estava em Espanha e que estava muito doente. Deixou de comer, abandonou-se. Ligaram-me a dizer que estava morto, mas que tinha deixado uma nota a pedir que fosse eu a fazer-lhe o último fato. Fui levar o fato a Barcelona. Perdi um amigo, e ele era um dos meus melhores clientes. Nunca me encomendava um fato, era eu que fazia a encomenda. E a mulher, a mesma coisa. Só me diziam quando havia visitas oficiais, informavam-me do país, a minha preocupação era saber a temperatura que fazia nesse país, ligava ao protocolo para saber quantos encontros havia, e preparava toda a vestimenta.

Foi o cliente que mais o marcou?

_As pessoas que mais me marcaram foram o Reza Pahlevi e o Jacques Brell. Em frente ao espelho ele dizia: «Ainda bem que existes... Sou tão feio, mas tu dás-me elegância. Saio daqui feliz.»

E o Reza Pahlevi, conheceu-o no exílio?

_Não, ainda antes. Eu ainda trabalhava no Ted Lapidus. Depois comecei a ir ao Irão provar, e ele era a pessoa mais simples, mais fantástica. Esta profissão deu-me tudo. Deu-me trabalho mas também estes amigos todos. Hoje ainda tenho alguns bons amigos, que nos fazem manter a casa, aqui, em Portugal.

Estamos a falar de que valores numa roupa dessas?

_Variam muito. Não gostaria muito de falar de valores, sabe porquê? Quando me chegou pela primeira vez um cliente em Guimarães, um senhor industrial e que tinha muito dinheiro, ele disse que queria um fato, do melhor que existisse. Para ele noventa contos era muito dinheiro. Quando lhe pedi três mil e tal contos por um fato, o homem ia-lhe dando uma coisa. E toda a Guimarães soube, no mau sentido. Diziam que eu era um louco, isto e aquilo. Mas eu adaptei-me ao sistema. Tive sempre três linhas, o pronto-a-vestir feito em série, mas controlado por mim - vou para a fábrica de manhã e não saio de lá enquanto as minhas peças não estiverem feitas, é tudo cortado por mim, e tem de ser seguido à risca. Depois temos o semimanual que é o que vende melhor em Portugal, já estamos a falar do valor de um fato, cá, para homem a partir dos cinco mil euros. Depois, se o cliente quer a verdadeira alta-costura, é outra história.

É por encomenda?

_Sim, porque nós temos materiais exclusivos. Se a cliente quer um material exclusivo, eu tenho de mandar fabricar esse material para ela.

Onde vai buscar os materiais?

_À Suíça. Toda a gente pensa que os melhores estão em Itália, mas os melhores são os suíços. França tem uma seda fantástica, a melhor do mundo, na produção de Lyon, produzida em quantidades muito reduzidas e logo absorvida pela alta-costura. Os suíços ainda têm aqueles teares manuais. Eu tenho um desenho, eles fazem, mas tenho de comprar pelo menos 26 metros. Cada metro pode custar três ou quatro mil euros. É uma joia. Costumo dizer aos meus funcionários que pontinhos há muito quem dê, mas o ponto certo, que não é esticado, tem de ser dado com precisão. É como passar uma peça a ferro. É muito importante porque pode tirar-lhe a vida, e uma peça tem de viver. Nunca houve no mundo mais de duas mil pessoas a vestir-se em alta-costura. Hoje são quinhentas ou seiscentas...

Hoje é mais importante a marca do que a qualidade da peça?

_Sim, sim. Vesti durante muito tempo o Michel Sardou, o cantor, e ele dizia-me sempre: «Tony, por favor não me coloques nenhuma etiqueta, porque é a primeira coisa que eu tiro à peça assim que chego a casa.» Tinha outro cliente, um armador grego, que me comprava uma média de quatrocentos fatos por ano. Nessa altura eu estava no Ted Lapidus, e ele começou a colocar as iniciais dele nos botões. Meu Deus, quando isso aconteceu o homem quase caiu. «Tire-me isso, por favor, não sou nenhum aparato para fazer publicidade.» O verdadeiro cliente está a marimbar-se para a marca.

Não entendo bem o que as pessoas fazem com essa roupa toda.

_A diferença dessas roupas só se nota quando se tem uma peça normal e outra de alta-costura. Coloca-se frente ao espelho e vê que a sua personalidade mudou completamente. Mesmo um leigo percebe isso. E a coisa torna-se viciante. Ter o toque do algodão numa camisa com fio 200, que é quase uma seda, dá uma satisfação tão grande... Sente-se a diferença. Vestir umas calças com um forro de seda natural, é uma segunda pele. O grande bailarino Jacques Chazot dizia: «Eu tenho uma segunda pele de seda natural.» Ou seja, ter um fato de seda natural no corpo não dá vontade de vestir mais nada. É um gozo pessoal.

E quem pode, pode...

_Eu tenho botões que são feitos de olho-de-tigre, com montagem de ouro, que custam uma fortuna, mais do que o fato. E são tão simples... Tenho um cliente que só usa esses botões. Um fato de seda pode ser todo dobrado, todo amarrotado, mas passados uns minutos está direito, porque foi feito com as mãos, foi feito para ser manobrado.

E o Tony, ainda põe a mão na massa?

_Não há nenhum fato de alta-costura que, em algum processo, não passe pela minha mão. As mangas, a gola e os ombros. Isso tem de passar pela minha mão, porque é um dom pessoal.

Quando se deu conta desse dom?

_Nasci com ele. Dei os primeiros pontos em miúdo, porque via a minha mãe fazê-lo. Ainda era bebé, e a minha mãe costurava à máquina, sentava-me a dar ao pedal. Não conheci outra coisa na minha vida que não fosse a costura. E quando era pequeno já sabia o que queria ser, costureiro. Uma vez, tinha eu 13 anos, vi na televisão do salão paroquial uma coleção do Christian Dior. Cheguei a casa e disse à minha mãe que um dia iria fazer aquilo. Anotei no papel, Christian Dior, Paris... A minha mãe disse que sim, «tu vais mesmo». O meu pai, que era um verdadeiro profissional, sapateiro, um artista, disse: «Se Paris fosse ali no quintal eu também já lá estava...» Desde aí nunca mais estive tranquilo até realizar esse sonho. Arranjei dinheiro emprestado e fiz os meus 14 anos na viagem.

E como é que foi para Paris?

_A salto... Naquela altura era assim. Fui para Paris. Passei a fronteira em Chaves, andei cinquenta e tal horas a pé. Em Paris fiz de tudo, até trabalhei no lixo. Trabalhava na construção, puseram-me numa máquina onde se fazia a massa para o prefabricado. A pessoa que me tinha arranjado o trabalho chegava ao fim do mês e dava-me apenas o suficiente para comer, ficava com o resto. Tinha as minhas mãos cheias de bolhas e sangue. Fui a um supermercado comprar umas luvas fininhas, no outro dia apareci na fábrica com luvas. O chefe, que era um italiano, começou a rir-se e disse que não queria lá meninas. Mandou-me tirar as luvas. Eu ia para casa e chorava. Só a minha mãe é que sabia onde eu estava, o meu pai andava à minha procura.

O seu pai não sabia onde estava?

_Não. Quando soube que eu tinha ido embora agarrou num táxi e andou na fronteira à minha procura, porque não queria que eu fosse. Pensava que eu era um miúdo revoltado, porque não queria trabalhar com ele. Mas não, era o sonho que eu tinha. Quando trabalhei no lixo a minha patroa tinha por lá uma máquina de costura. Um dia fui a um mercado e comprei tecido. Fiz um fato para o patrão e um vestido para a mulher. Ele quando o viu disse-me: «Tu nunca mais trabalhas no lixo.» E foi ele que me arranjou trabalho.

Onde?

_Numa casa chamada Renouvette que transformava peças de alta-costura. Aprendi muito com isso, comecei a ver como é que era feito, os pontos, era tudo muito diferente daquilo que eu tinha aprendido cá. Passado um ano tornei-me responsável dessa casa, com 17 anos. Tinha 32 pessoas à minha conta. Depois vim cá, disseram que me davam passaporte. Quando cá cheguei não deram o passaporte e mandaram-me para a tropa. Estive cá três meses e voltei. Comecei a bater às portas. Fui à casa do mestre Joseph Camps. Ele era muito baixinho, olhou para mim, perguntou-me onde eu trabalhava, e disse-me que essa casa não tinha nada que ver com o que se fazia na dele. Perguntou-me quanto ganhava e quando lhe mostrei o recibo ele disse que na casa dele nem dali a cinco anos ganharia aquilo. «Aqui trabalhas à peça, não estás habituado, vais demorar muito tempo a aprender...» Respondi que tinha um pé-de-meia, e essa frase encantou-o. Disse: «Nunca ninguém me falou assim, e tu estás a marimbar-te para o dinheiro...» Era verdade... Queria era aprender. Deu-me uma mesa e aquilo era complicado. Aprendi na mesma mesa do Francesco Smaltz com o Ungaro. Passado um ano já ganhava o mesmo dinheiro. Trabalhava 15, 16 horas, e só não trabalhava mais porque a casa fechava a porta e eu tinha de sair.

E como é que foi parar ao Ted Lapidus?

_Um dia, estava a almoçar numa pizaria, e li num jornal um anúncio que pedia um «jovem, com ideias criativas, para um posto importante para o Ted Lapidus». Quando lá cheguei a fila de candidatos era enorme. Apareceu um homem à porta que disse: «Tudo o que é italiano fica, tudo o que não é italiano pode ir-se embora.» O diretor era italiano e eles eram muito bem cotados na costura. Mais tarde viriam os espanhóis e os gregos. Os italianos eram reis no betão, na construção civil e na costura. Mas eu fiquei à mesma na fila. Disse que era italiano, que me chamava Miranda. «Ah, sim, conheço os Miranda, em Nápoles. E de onde és?» Claro que disse que era de Nápoles, mas avisei que não era cem por cento italiano, a minha mãe era italiana e o meu pai francês.

Grande mentira...

_Ele respondeu: «Ah, isso não interessa. O que interessa é a mamma! Então e onde trabalhaste?» Nesse momento apareceu o Ted Lapidus. Respondi: Joseph Camps. O Ted olhou para o responsável e disse para eu ficar. «Quando podes começar?» E eu disse «hoje». Começaram a dar-me fatos para fazer, para ele e para a mulher. Passado um tempo eu disse que se fosse para continuar ali a fazer fatos preferia voltar ao Joseph Camps e ganhar metade. Então ele deu-me uma coleção. De senhora, eu tinha muito pouca experiência e trabalhava a noite toda em casa, com tela e manequim. Quando vinha para o atelier já sabia o que tinha de fazer. E comecei a fazer aquilo com paixão. Digo sempre aos meus filhos que, quando se quer, tudo é possível na vida, é preciso ter aquela ambição e acreditar em nós próprios. Eu acreditei em mim. E quando apresentei o que tinha feito foi um sucesso fantástico. Na segunda coleção tive mais de cinquenta por cento do trabalho a meu cargo. À quarta fiz a coleção completa. Tinha 23 anos. Fui eu que transformei o blazer de homem para senhora. Foi em 1969/1970. E fui admitido na alta-costura.

Quem é que admite isso?

_É o sindicato. Tinha de se apresentar 75 modelos por cada coleção, e mais X por ano nos bastidores. Também conta o que a imprensa diz. No meu caso foi a minissaia, o blazer estilo homem e a casquette. Acho que não houve mulher no mundo que não quisesse vestir aquilo. Os blazers eram muito justos. Um exagero. A cliente que fosse mais gorda nem conseguia mexer o braço. Depois ele pediu-me que transmitisse para os homens aquele fato justinho, e toda a gente andava com aquilo. Foi um grande sucesso, que durou muitos anos.

Inventou que era italiano, tinha problema em dizer abertamente que era português nesse mundo da alta-costura?

_Nunca conheci um português que trabalhasse em alta-costura em Paris. Tive um funcionário que era português e que veio depois para o Rosa & Teixeira. O português era muito mal apreciado na altura, eram as criadas, os porteiros, os homens das obras, gente que se vestia mal, que andava no metro e cheirava mal... Quantas e quantas vezes estava eu no atelier e o diretor chegava de manhã e dizia: «Ai, meu Deus, hoje vi um português, muito corado e cheirava muito mal. Que coisa horrível.» Eu não dizia nada...

Porquê?

_Eu continuava a ser o italiano. Um dia tanto me chateou que lhe disse: «Cala-te, ó badalhoco...», foi mesmo assim. «Tu esqueces-te que sou português.» Ele disse que não, que eu não tinha cara de português. Quando tive possibilidade de falar, sempre disse que era português com muito orgulho. É por isso que me custa muito sentir-me marginalizado aqui em Portugal, e não sei porquê. Cá, somos presos por ter cão e por não ter. Uma vez, numa festa, ouvi alguém dizer: «Lá vem o rico do Norte.» É uma estupidez. Eu sou um homem de trabalho. Claro que não sou pobre, mas sou um homem que trabalha de noite, de dia, sábados, domingos, não tenho férias e sou apaixonado pelo que faço.

E quando é que decidiu sair da casa Ted Lapidus e fazer a sua própria casa...

_Saí porque ele estava a afundar-se por uma razão muito simples: o dinheiro sobe à cabeça. Foi em 1978. Ganhava-se muito dinheiro. Havia sábados que tínhamos de fechar a porta porque não cabia mais ninguém. Depois ele começou a ter problemas, já nada lhe dava prazer. Chegou a um certo ponto em que não soube manter-se uma pessoa equilibrada.

E abriu o seu atelier...

_Sim, na Avenue Suffren. E depois é que abri a boutique na Rue Cambon. No início foi difícil, porque as pessoas não sabiam onde estava. Depois encontrei um dos meus antigos clientes que espalhou a palavra. E lá fiquei até vir para Portugal.

Quando voltou a Portugal, que país era esse que encontrou?

_Um país mais moderno, mudado... Mas para mim Portugal não ia representar muito... Ia a Paris uma a duas vezes por semana.

O que mudou no seu design por estar cá em Portugal? Alterou-se alguma coisa?

_Não, porque eu acho que a minha roupa foi sempre diferente. Quando alguém entra na minha loja, sobretudo franceses, oiço-os fazer comentários do género «isto é de alguém que esteve em Paris». Fiz a minha primeira coleção em Guimarães, tive muita gente, mas achei que não era suficiente. Depois comecei a apresentar no Porto. E do Porto vim para Lisboa. Foi em Lisboa que comecei a sentir-me melhor.

Foi dos primeiros a apostar na Avenida da Liberdade, onde agora tem o seu ateliere onde abriu a loja, junto dos Restauradores.

_Em Guimarães, estávamos num edifício com cinco pisos, otimamente instalados, e não admitia vir para Lisboa para um sítio inferior. Andei anos à procura. Comecei a pensar na Avenida da Liberdade, mas as pessoas diziam-me que era um local de prostituição. Eu dizia que podia ser, mas futuramente não seria, porque todos as cidades do mundo têm uma avenida principal. Aconselharam-me a Avenida da República, a Avenida de Roma, mas... não. A Avenida da Liberdade é a mais bonita que temos, e futuramente vai ser muito importante. Encontrei este prédio em ruínas, mas adorei. A fachada era com azulejos, coisas antigas. Já estava a imaginar tudo. Fui para casa, já não dormi. Às nove da manhã do dia seguinte estava à porta do escritório, e disse que queria negociar.

A sua vida mudou em Lisboa?

_Mudou. Estive cá muito tempo, passava mais tempo aqui do que em Guimarães, e tive bastante gente.

E por que razão decidiu ficar sem a loja?

_A perda do meu filho [há dois anos] fez que eu tivesse de restruturar a minha vida. Tínhamos uma equipa formada para um certo nível de trabalho. Entre a minha loja de Guimarães, que eu não queria fechar, as minhas viagens para fora, organizar coleções para a loja de Lisboa, era difícil... Temos clientes que vão comprando o semimanual, têm uma prova, e bastava uma prova. Esse tipo de clientes comprava uma peça para uma festa, mas sempre o mais barato. Tinha uma cliente que só admitia que fosse eu a fazer-lhe a prova. Lá vinha eu, de Guimarães, fazia quatrocentos quilómetros para fazer uma prova de uma peça de quatrocentos euros... Perdia dinheiro. A situação não podia continuar assim, andava toda a gente em cima de mim. Fizeram-me uma proposta [a Prada, que vai abrir a Miu Miu], mas eu não podia ceder o espaço a qualquer pessoa. Então decidi que fazíamos num sistema privado, com uma escolha de clientes, daqueles que nos satisfazem pessoalmente.

Esses clientes privados são de cá ou vêm de fora?

_Oitenta por cento são de fora.

E vêm cá?

_Muitos vêm cá. Olhe, tive um cliente recentemente, um angolano, que me ligou a dizer que estava a caminho de minha casa. Ele pensava que eu estava em Lisboa. Meti-me no carro, vim por aí abaixo, quando cheguei cá estava tudo coberto de polícias, guarda-costas...

Quando é que será a sua reforma?

_Para mim nunca haverá reforma. Queria levar isto até ao momento em que encontrasse alguém que pudesse continuar, um jovem com atitude, com gosto.

E porque não encontrou ainda?

_Todos os jovens que tenho visto são pessoas que só querem fazer macaquinhos. Aqui vai-se para uma escola, aprende-se a desenhar e parece que já são costureiros. Um estilista e um criador são coisas diferentes. Os maiores são aqueles que começaram lá em baixo, num banquinho, a trabalhar, a saber o que é uma peça, a perceber que resultado aquilo pode dar. Hoje saem da escola e só querem fazer coleções, mas vão buscar uma costureira para fazer as coleções deles.

Em França não é assim?

_Em França não. Começa-se por baixo. Quatro dias no atelier e um dia de teoria na escola. É assim que se aprende. Vê um Dior, um Saint Laurent, um Cardin, um Givenchy, todos eles sabem...

E os novos?

_Os novos, a nível internacional, vivem com os nomes que já existiam.

Mesmo um Tom Ford...

_O Tom Ford esteve nas casas que fizeram nome e tem os funcionários. Se ele saberá? Acho que não... O diretor da produção Chanel, que agora está na reforma, é padrinho da minha filha, dizia que desde que o Karl Lagerfeld foi para a Chanel, dificilmente aparece uma criação de alta-costura. Para mim é um robot que ali está, é uma imagem que vende, porque em alta-costura vende pouco, o que vende são os perfumes, os acessórios.

Nunca foi à Moda Lisboa ou ao Portugal Fashion?

_Há quatro ou cinco anos não tínhamos a parte couture para senhora, que é uma parte mais barata. Até aí eu achava que a Moda Lisboa para mim não fazia sentido. Depois pediram-me o currículo e mandámos um CD, a ver se éramos convidados. Até hoje nunca nos disseram nada. E eu pergunto porquê. Há tempos apareceu aí nos meios de comunicação uma moça que esteve a fazer um estágio de três meses em Paris, e disseram na imprensa que era fantástica... Três meses de estágio num costureiro... E de mim, um profissional que vestiu algumas das pessoas mais importantes do mundo, que levou a casa Lapidus ao topo, não falam...

Quem gostou mais de vestir?

_A cantora Sylvie Vartin, porque era uma pessoa elegante, a Brigitte Bardot, a Brigitte Fossey. Mas gostei mais da Sylvie Vartin, tinha algo, uma elegância particular. Entre os homens, vesti o Gilbert Bécaud, o Johnny Hallyday, o Michel Sardou, Enrico Macias. Fazia tudo o que era fatos especiais, sedas pintadas à mão. Gostei muito de vestir essa gente toda, mas não me subiu à cabeça, sabe? O Jacques Brel um dia disse-me que o artista era eu. «Tu transformas em belo uma coisa de nada. Eu vou ao fundo daquilo que sinto, mas tu é que és um artista...» Ouvir palavras destas é fantástico.

Mas para si é diferente vestir um artista como o Brel ou uma pessoa normal?

_Pode ser qualquer pessoa, desde que ela reconheça o que se está a fazer e que admire o que eu faço.

Quando faz uma coleção nova, o que é que o inspira?

_Quando se tem um passado grande, há sempre peças que nos marcam. Agora, quando fiz os 25 anos e fiz o desfile em Guimarães, quis apresentar 25 fatos, um de cada coleção daqueles anos. Ninguém notou a diferença. A alta-costura e a criação são intemporais, a elegância é só uma. Quando se quer pôr em evidência o corpo de uma mulher, só isso importa.

E se o corpo não é perfeito?

_Quando se cria para uma coleção, fazem-se os fatos para um manequim. E depois, cá estamos para fazer as adaptações necessárias ao corpo da cliente. Mas voltando à inspiração... Eu sou uma pessoa que dorme pouco, e quando começo a pensar lembro-me de viagens lindas que fiz. Tomo notas e ponho em cima da mesa. Não sou grande praticante de desenho, sou mais de anotações, mas quando é necessário faço eu o desenho. Se tenho uma pessoa forte à minha frente faço um desenho forte, não minto à pessoa. Tinha muito o hábito de me sentar numa esplanada dos Campos Elísios para tomar um café, via pessoas a passar e reparava num ou noutro pormenor. É aí que nasce tudo. Vou para a frente do manequim, agarro num pano cru, corto. E atrás de um modelo vem outro. Depois, como tenho com antecedência conhecimento dos tecidos, vejo que aquele tecido é apropriado para a peça. E as coisas vêm umas atrás das outras, de forma surpreendente.

Qual foi o vestido mais difícil que já fez?

_Foi para uma pessoa que tinha 147 cm de anca. Nunca mais esqueço. E o marido, que era tão boa pessoa, chegou a minha casa e disse que queria que eu lhe vestisse a mulher, tal como via nas coleções. Tinha os ombros pequenos e a anca muito grande, um busto curto, alarguei-lhe os ombros, fiz a cinta cá em baixo, tentei tudo. Quando ele viu o vestido disse: «Eu sei que a minha mulher é forte, mas tu tiraste-lhe muitos quilos...» Adorei ouvir aquelas palavras, mas deu-me muito trabalho. Fiz um manequim em minha casa com as medidas dela e foi assim que consegui. Houve também outros vestidos complicados... Um vestido de noiva para uma princesa da Arábia Saudita, que demorou quase cinco meses a elaborar, todo bordado a fio de ouro... Mesmo com a segurança que tinha, estava inseguro, pois havia o receio de chegar ao dia e ela não gostar, ou pensar que faltava qualquer coisa. Falta sempre qualquer coisa.

Como é essa sua relação com os tecidos?

_É uma relação íntima. O tecido fala. Eu falo com os vestidos. Esse momento é só meu. Tenho uma casa grande em Guimarães. Cheguei a um ponto de dizer que não queria ninguém lá em casa. Ninguém. É só para mim. Rodeio-me de pedaços de tecido. Não gosto de trabalhar em sítios muito organizados. Sei encontrar-me.

Os seus pais acabaram por ficar muito orgulhosos de si, no final?

_O meu pai nunca esteve de acordo. Dizia que a alta-costura não era para homens. Ele admitia que eu fizesse peças para homens, mas não gostava que eu trabalhasse para senhora. O meu primeiro dinheiro foi para comprar uma casa aos meus pais, que viviam numa casa muito má. O meu pai, antes de falecer, apertou-me a mão e perguntou-me se eu lhe perdoava, porque se tinha enganado em tudo sobre mim, que pensava que eu era um louco, que não ia dar nada na vida, que só pensava em luxos, mas que tinha sido eu a proporcionar-lhe os melhores tempos da vida e ajudado a ter uma vida melhor. Fico triste de pensar que ele vivia com essa mágoa. O meu pai era duro, mas foi graças à dureza dele que eu enfrentei os problemas que tive.

E a sua mãe?

_Sempre disse que eu conseguia. Esteve sempre de acordo comigo e tinha cumplicidade. Tenho pena de ter chegado cá tarde, quando ela já tinha uma idade avançada, porque gostava que ela tivesse trabalhado comigo, ela tinha um dom, um dom que eu herdei.

Fez vestidos para ela?

_Fiz-lhe um vestido para o batizado do meu filho. Adorou.

Quem eram os seus maiores críticos? O seu pai?

_Não, porque o meu pai nunca teve grande oportunidade de ir ao meu atelier. A minha mãe não usava a crítica, achava sempre tudo fantástico. As maiores críticas foram as profissionais.

Os clientes mudam para onde está a mudar o dinheiro?

_Mudam... Temos muitos brasileiros, americanos, italianos... Nesta avenida passa toda a gente. Já fui convidado para fazer uma loja em Angola.

Não está arrependido de ter vindo para Portugal?

_Quando faço uma coisa e ninguém reconhece o valor, fico triste. O melhor de ter vindo para Portugal é a minha filha - se não estivesse cá não a tinha -, e criar o mundo em que vivo.

Tem esperança em Portugal? Podemos vencer a crise?

_Acho que sim. Vejo pela minha filha. Tem 25 anos, está na investigação em medicina. É fanática pelo trabalho dela, está até às duas ou três da manhã no laboratório. Há jovens que são bons e é preciso dar meios a esses que são bons. Assim iremos para a frente. Se os deixarmos sair do país porque não lhes damos o que precisam, nunca mais vamos a lado nenhum...

Mas já pensou no que seria a sua vida se tivesse ficado cá?

_Não sei o que seria... Talvez um pequeno alfaiate...

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt