"Vivemos num mundo de meias verdades"

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Que diz aos seus alunos sobre onde começa e acaba a verdade na fotografia?

Quero que descubram por si qual é a fronteira. Hoje, verdade e mentira são categorias muito abstractas que nunca se apresentam no seu estado absoluto. Depende do ponto de vista do observador. Vivemos num mundo de meias verdades.

Está a exibir no Instituto Cervantes de Paris a série Googlegramas. O que é?

Junta dois universos o fotomosaico e o universo Google, que é muito mais do que um motor de busca - foi criado por dois estudantes de filosofia e entra em conceitos filosóficos como o Google Zeitgeist, que determina a notoriedade das personagens ou a pertinência dos conceitos a dado momento. A Internet exemplifica uma espécie de arquivo exaus- tivo, universal e democrático, e o projecto tenta averiguar se a informação circula livremente, ou se continua a haver censuras, filtros ou acidentes lógicos.

Como funciona?

Uso um programa freeware, em que uma imagem é refeita em milhares [são 13 ampliações, algumas com 10 mil peças]. O software liga-se à Internet e, através do Google, permite procurar imagens por palavras- -chave. Por exemplo, para a foto da tortura em Abu Ghraib, no Iraque, em que se vê a soldado Lynndie England com um preso pela trela, há o documento do Congresso dos EUA ou a lista de todos os civis e militares incriminados. O resultado funciona como palimpsesto à distância vemos uma imagem, perto vemos muitas outras. Mas quando pesquisei o nome do seu namorado, o Google não deu qualquer imagem - e havia milhares no Yahoo ou Altavista! Ou seja, em dados momentos, o Google filtrava, censurava a informação. Continua a haver forma de controlar e orientar a informação. Para a exposição, o programador retocou o software para oferecer ao visitante propostas interactivas que têm a ver com França.

É uma ironia sobre a própria fotografia.

Em todo o meu trabalho há uma vertente historicista e um prisma irónico. Não é pura reflexão analítica, racional, usa como estratégia crítica componentes da ironia.

E o que o leva a ironizar sobre algo?

Sou uma esponja, até faço recortes de jornais! Há três anos estive em Portugal e fiquei fascinado com a história de um tarado sexual que convenceu muitas mulheres a fazer mamografias por satélite! Ainda farei um projecto sobre isso! [risos] Qualquer trabalho artístico é autobiográfico, e creio que crescer durante uma ditadura gerou na minha geração atitude de crítica e esforço para ler nas entrelinhas. Por outro lado, dada a minha formação, o meu material é a informação, a semiótica, a cultura de massas.

Em Securitas, usou chaves de políticos para abordar o tema da segurança...

E a procura do equívoco, da ambiguidade. Indo à origem da fotografia, porque uso as chaves como um cliché projecto-as directamente, recuperando a ideia do fotograma, a pura sombra. Os relevos parecem montanhas, o que remete para a dimensão paisagística, formal.

Aí jogou também com as nossas convicções e papel de cidadãos.

Sim, e com os símbolos do poder. Se a chave é minha, isso não afecta ninguém. Mas se é do ministro da Economia, do governador do Banco de Espanha ou do primeiro-ministro, repercute na paisagem da segurança colectiva. Para mim, a obra de arte é feita também pelo espectador, na medida em que há uma memória e feedback. Cada vez me interessam mais os processos e menos os resultados.

Abandonou a linha de Fauna e Sputnik, em que criava uma história, interpretava-a e convencia- -nos de que era verdade?

Não, esses projectos narrativos são mais lentos. Há projectos que são para galerias e outros para museus de ciências, a feira de arte ou o supermercado - porque me interessa tirar a fotografia de locais conotados com a arte.

Isso tem a ver com os problemas do projecto O Artista e a Fotografia para os museus Picasso, Tàpies e Miró, que não foram receptivos às propostas?

Não, mas a confrontação faz parte do projecto. Posso dizer que os museus são mausoléus, insti- tuições de poder que não se abrem ao diálogo com a arte contempo- rânea, mas tenho de o mostrar - e para isso preciso que me rejeitem.

Os directores dos museus estão a esquecer a evolução da arte, é isso?

Não... As instituições de arte empurram o artista para que perverta outros domínios a política, a ciência, os media... O seu trabalho tem de provocar. Mas quando a provocação é com a própria instituição, então, assustam-se. Foi o que aconteceu e parece-me uma atitude hipócrita. O trabalho foi polémico porque visava as bases do mercado da arte: a autenticidade, a originalidade, a assinatura, a autoridade no mundo da arte e a sua retórica.

Quando descobriu que o seu caminho era a arte?

Ao fim de três anos em jornalismo e publicidade, compreendi que já tinha aprendido o suficiente.

Sobre o quê? O simulacro?

Sim, sobre a mentira, o simulacro, as aparências, e sobre as técnicas de persuasão, de sedução. Então, o que fiz foi inverter a direcção e aplicar as técnicas para desconstruir os discursos da publicidade, da política, da ciência, da Igreja, da universidade, o discurso emitido a partir das instâncias de poder.

É curioso que o diga, porque agora também faz parte da universidade...

Sim, mas não me considero académico e gosto muito do ensino, precisamente, como provocação. Sou artista autodidacta e o que faço é confrontar os alunos com problemas para que encontrem soluções. Ensino-os a aprenderem por si.

Mas como crítico, investigador ou comissário, está a validar o próprio discurso da arte. Não sente o paradoxo?

Não, porque isso dá-me amplitude. As obras de arte, muitas vezes, servem de meras ilustrações do discurso do comissário, e, conhecendo a situação, tento proteger - ou não! - o meu trabalho. Pelo menos, não tenho uma atitude ingénua.

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