"Um secretário-geral omnipotente é uma tradição que vem dos bolcheviques"

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José Medeiros Ferreira

Militante e ex-dirigente do PS

Dirigente estudantil na crise de 1962 que abalou o regime de Salazar

Em 1976, foi ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Constitucional, de Mário Soares

Foi deputado e dirigente socialista

Medeiros Ferreira é hoje um sério candidato ao papel de "consciência crítica" do PS. Afastado voluntariamente de cargos directivos no partido, alerta: "Qualquer aprendiz de decisor gosta hoje de se contrapor a Guterres. Mas começo a ter saudades de alguma ponderação nas decisões." Entretanto, lamenta que o congresso socialista - do qual estará ausente - não aproveite para debater o "estilo do Governo". Por exemplo: "Será função do Governo crispar a sociedade?"

O PS reúne-se em congresso, no próximo fim-de-semana, numa fase em que "o partido está calmo e o Governo está agitado", como escreveu no DN. Haverá agitação a mais por um lado e calma a mais por outro?

O PS está demasiado dependente do destino do Governo. Os seus quadros, no fundamental, são "criaturas" dos governos de António Guterres entretanto cooptadas por José Sócrates. Admito que este con- gresso venha a terminar com esta fase de transição. Então sim, a partir daí, teremos um PS efectivamente liderado pelo actual secretário-geral.

O partido está muito dependente do Governo?

É muito difícil um partido como o PS - que regressou muito rapidamente ao Governo, após dois anos na oposição - não ficar estonteado com a vocação governamental. Seria difícil não ficar dependente da agenda governamental. Muito mais surpreendente é que outros partidos, que não estão no Governo, se mostrem tão amorfos.

Há um défice de oposição?

Há uma expectativa na oposição, sobretudo da parte do PSD. Não diria o mesmo do PCP, por causa da movimentação social e sindical que se verifica. Mas se isso acontece na oposição, por maioria acontece no partido que sustenta o Governo. Preocupa-me ver que o PS está hoje demasiado dependente do destino do Governo. Se o Governo triunfar nas suas reformas, o PS triunfa. Se o Governo falhar nas suas reformas, o PS terá uma vida muito difícil.

Falta autonomia estratégica ao PS?

O PS devia ter saído da sua subalternização em relação ao Governo levando uma agenda própria ao congresso. Por exemplo: que soluções queremos para a União Europeia?

Mas que debate será possível num congresso que antes de ter começado já viu o secretário-geral do partido ser eleito com 97% dos votos?

Nunca fui grande partidário destas eleições directas do secretário- -geral antes dos congressos. Tenho uma ideia colegial do funcionamento de um partido de esquerda. Não tenho nada esta noção de um secretário-geral omnipotente, que é muito mais uma tradição bolchevique do que social-democrata. Hoje existe muito o culto da imagem... Há uns anos falava-se muito do culto da personalidade. Quanto a mim, o culto da imagem é muito mais perigoso e vácuo; o culto da personalidade, embora fosse perigoso, ao menos tinha alguma substância. Os partidos socialistas e sociais-democratas deviam ter o culto da decisão colegial.

É também por isso que não espera muito deste congresso?

Não será um momento politicamente decisivo. É um momento de reafirmação da liderança de José Sócrates, com a característica da eleição antecipada do secretário-geral. Isto foi introduzido no tempo de António Guterres sob o pretexto de que assim os congressos iriam debater mais ideias do que pessoas. Mas como se tem de elaborar a lista da Comissão Nacional, e a partir daí a lista da Comissão Política, a discussão sobre pessoas mantém-se e o cesarismo democrático acentua-se. Isto para além deste fenómeno "exótico" de termos um secretário-geral eleito com 97%.

Mas o congresso deve debater a prestação do Governo?

Seria positivo que houvesse esse debate - não me refiro ao debate de políticas muito concretas, mas ao estilo do Governo. Será função do Governo crispar a sociedade? A possível anulação de adversários dá força executiva ao Governo na sua política de reformas? Coisas como estas deviam ser debatidas. Sem esquecer que Portugal já teve vários períodos de reformas. Convém recordar isto, pois parece hoje que o elã reformista é uma espécie de Novo Testamento. Mas não há novos profetas neste domínio: é algo que vem de trás.

O estilo de governação actual é muito diferente do de Guterres?

Qualquer aprendiz de decisor gosta hoje de se contrapor ao António Guterres. Mas confesso que começo a ter saudades de alguma ponderação nas decisões políticas.

As derrotas nas autárquicas e nas presidenciais foram avisos ao PS?

Essas derrotas, as manifestações e as greves devem ser fontes de ponderação para as decisões governamentais. Mal iria qualquer Governo que, tendo perdido duas eleições, não ponderasse o seu modo de decisão, por muito que isso custe às pessoas que gostam de decidir rapidamente. Eu, por exemplo, veria com muito maus olhos que uma das funções do PS fosse quebrar a espinha ao movimento sindical. Esse nunca poderá ser o seu papel.

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