"Sofri com choques elétricos e obrigaram-me a comer durante o Ramadão"
Moammar Dokhan mantém viva a recordação dos sete anos e meio vividos na prisão de alta segurança de Guantánamo onde, afirma, foi tratado "como um animal". A maior parte desse tempo foi passada na solidão em celas minúsculas, com 2,4 por 3,7 metros. Sair para os interrogatórios era pior do que ficar no confinamento da cela. "Colocaram-me numa cama e deram-me choques nos pés [tornozelos] enquanto me faziam perguntas. Depois daquilo eu já admitia tudo. Que era talibã, jihadista, terrorista. Tudo. Ficava maluco", conta o sírio ao DN.
A tortura deixou marcas que perduram, sobretudo quando tenta puxar pela memória. "Dão-me estas dores de cabeça. Eu chamo--lhes as dores de cabeça de Guantánamo. Fiquei assim desde que levei choques." Mantém um discurso estruturado, embora por vezes incoerente em datas, e diz com ar triunfante: "Não conseguiram enlouquecer-me."
O prisioneiro 317, o número que lhe deram em Guantánamo, garante que nunca partilhou momentos com outros detidos, exceto quando era mudado de cela. "Em Guantánamo Bay havia vários campos: um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito... Nunca estive no quatro, onde os detidos podiam fazer desporto, rezar juntos, ir ao pátio. Um autêntico hotel de cinco estrelas [risos]. Mas eu estive sempre sozinho."
Os relatos de Moammar ao DN correspondem ao que a Administração Bush chamava de "técnicas de interrogatório agressivas" e algumas têm um nível de gravidade que viola os princípios das Convenções de Genebra sobre Tratamento de Prisioneiros de Guerra. O sírio que agora vive em Portugal esteve detido em Guantánamo entre 2002 e 2009, precisamente o mesmo período em que ocorreu o programa que a CIA intitulou de Extraordinary Rendition and Detention Programa.
A Comissão de Serviços Secretos do Senado dos EUA publicou um relatório (ver texto na pág. 6 ) que confirma atos bárbaros contra suspeitos de terrorismo. O presidente norte-americano, Barack Obama, chamou-lhe "programa perturbador" e o seu ex-rival republicano, John McCain, "pior do que criminoso". Mas a CIA praticava-o.
Moammar sentiu na pele as consequências da ligação aos talibãs (ver DN de ontem) e o facto de ter sido detido poucos meses após o 11 de Setembro de 2011. Chegou a Guantánamo a 11 de fevereiro de 2002 e seguiram-se 2754 dias em cativeiro até ser "restituído à liberdade" em Portugal, a 28 de agosto de 2009.
A solidão dos dias em Guantánamo só era interrompida pelos interrogatórios. Quando existiam. Para quebrar a rotina, muitas vezes, Moammar desafiava a autoridade dos guardas. Num documento do Pentágono de março de 2008, são registadas 306 infrações disciplinares de Moammar e o seu comportamento é definido como "não cooperante e hostil para os guardas e o staff prisional". A última ocorrência então registada, de fevereiro de 2008, é um exemplo de que muitas destas infrações eram menores: "Provocou uma inundação da cela, ao sabotar a sanita."
Forçado a comer no Ramadão
Há outras queixas do Departamento de Defesa norte-americano mas não têm o nível de gravidade das relatadas por Dokhan. Além dos choques elétricos, houve outro tipo de tortura. O sírio conta ao DN que fez "várias vezes greve de fome". E porquê? "Às vezes ao darem-me o prato cuspiam lá para dentro. Noutras colocavam fezes no prato. Como poderia comer aquilo?"
O sírio acusa ainda as forças norte-americanas de não respeitarem a religião. "Queriam que deixasse de ser muçulmano. Tentavam à força alimentar-me mesmo durante o Ramadão. E quiseram que comesse porco", acusa o ex-detido.
Quando fazia greve de fome (não por motivos religiosos, mas em protesto) também era forçado a comer. Moammar não especificou a forma como era forçado, mas garante que "não era bonito". Recorde-se que o então diretor da CIA, Michael Hayden, no relatório do Senado norte--americano defendeu práticas utilizadas pelos serviços de inteligência neste período como "alimentação e reidratação retal".
A violência mais frequente durante o período de detenção, no caso de Moammar, foi o espancamento. O sírio garante que nos primeiros anos "não houve um único dia em que não me batessem com violência. Às vezes estava a rezar na minha cela e entravam para me espancar. Uma vez contei 15 pessoas, que me espancaram à vez, sem eu ter feito nada."
Moammar não foi sexualmente agredido mas tentaram persuadi-lo: "Foram três vezes à minha cela, com três mulheres para fazer sexo com elas, duas eram normais [civis], uma era militar da prisão. Como recusei a fazer sexo, os guardas espancaram-me. O objetivo deles era tornarem-me como eles, ocidental, e que deixasse de ser islâmico."
A tortura pelo sono e pelo frio
O frio ou a privação do sono são outros dos métodos denunciados por Moammar. O sírio conta que "ligavam o ar condicionado frio na minha cela e obrigavam-me a ficar apenas com shorts. E ficava ali dias e dias a tremer". Na cela havia semanas em que só tinha "a almofada e um colchão fino com apenas um centímetro e um cobertor; em outras, não tinha nada". Revela que sofre de reumatismo e por vezes vomita sangue, devido às condições a que foi submetido em Guantánamo.
O sírio recorda-se de ter passado "vários dias de pernas para o ar, em que só me tiravam umas horas para descansar, sem nunca me deixarem dormir". Por vezes, segundo conta, era colocado por baixo de uma goteira e "durante horas caíam-me pingos na testa".
Nem todos os interrogatórios eram feitos sob tortura. Ao DN, o sírio conta como era uma inquirição normal . Sentava-se de um lado da mesa, algemado, e do lado oposto estavam "três ou quatro pessoas", que o questionavam. Um deles era sempre "um tradutor de árabe".
"Por que entraste no Afeganistão?", perguntava um norte-americano. "Porque sou um homem livre e vou para onde quero. Aquilo é o Afeganistão, não é os Estados Unidos da América. Vocês não mandam lá. Por isso não têm de me fazer perguntas sobre o que eu fiz lá."
Escritos de mártir
Muitos interrogatórios não passavam disto, mas outros seriam mais produtivos para os serviços norte--americanos. De acordo com documentos do Pentágono sobre o prisioneiro 317, havia vários motivos para que Dokhan continuasse preso: "O detido garante que quando for libertado vai matar americanos no Iraque ou em qualquer parte do mundo"; "o detido considera-se "irmão" [no sentido figurado e não familiar, apontavam os documentos] de Bin Laden e amigo de Al-Zarqawi".
Nesses documentos são relatadas as suas várias infrações como prisioneiro: "tentativa de puxar um guarda pelo buraco do feijão [orifício na porta da cela]", "incentivo a motins" (contraria a afirmação de Moammar de que não conviveu com outros detidos na prisão), "gestos provocatórios" ou "posse de comida por contrabando".
Para os serviços secretos, uma das descobertas mais preocupantes foi um documento escrito, encontrado na cela a 7 de fevereiro de 2008, em que Moammar terá demonstrado conhecimento sobre a jihad e terminava com a seguinte frase: "Alá (...) concedo-lhe o martírio com honra e respeito (...) Do teu querido irmão, que adorava ser um mártir."
Ao DN, Moammar justifica estas palavras - alegadamente escritas pouco mais de um ano antes de vir para Portugal - com o sofrimento e a injustiça a que era submetido na prisão. A 4 de março de 2008, segundo o documento divulgado pelo The New York Times, era claro para o Pentágono: pelo perigo que representava, o detido 317 deveria continuar em cativeiro.
Porta para a liberdade
Nesse mesmo ano de 2008, a liberdade deixou de ser uma miragem. O democrata Barack Obama, senador pelo Illinois, venceu as eleições presidenciais norte-americanas. Uma das suas promessas mais emblemáticas (ainda hoje não cumprida) era encerrar a prisão de Guantánamo.
A 22 de janeiro de 2009, o presidente norte-americano fez publicar um decreto em que garantia que "o centro de detenção de Guantánamo objeto desta ordem será fechado o mais rapidamente possível e, no mais tardar, no prazo de um ano a partir da data da ordem". E dava uma garantia: "Posso dizer, sem exceção ou equívoco, que os Estados Unidos não vão torturar."
Entretanto, Moammar - em conjunto com as suas advogadas norte-americanas - tentava conseguir a libertação através dos tribunais federais norte-americanos. Em tribunais da Florida, processou Bush. Processou Obama. Pediu habeas corpus. Sem êxito.
A Administração Obama iniciou diligências para começar a encerrar a prisão, colocando os prisioneiros em países que não os de origem.
Até então, segundo relatórios de ONG como a Amnistia Internacional terão passado por Guantánamo mais de sete centenas de pessoas sem julgamento nem acusação formada.
Depois de Guantánamo, os prisioneiros não poderiam voltar à terra natal (também para garantir a sua própria segurança) nem ser integrados na sociedade norte-americana (o Congresso dos EUA proibiu). Os EUA só tinham uma saída: pedir aos aliados para receberem os prisioneiros. Portugal foi prontamente um dos países que se ofereceram para ajudar.
Moammar conta o que aconteceu no verão de 2009: "Recebi visitas de funcionários do SEF, ainda lá em Guantánamo. Fizeram-me perguntas. Perguntaram-me se queria ir para Portugal e fizeram-me promessas. Eu aceitei vir. Queria sair de lá." O mesmo aconteceu com outro prisioneiro sírio.
Depois de quase três mil dias, Dokhan pôde tirar o fato cor de laranja e largar as algemas. Entrou no avião, rumo à liberdade e só parou em Lisboa, onde chegou a 28 de agosto de 2009. Passou quase despercebido, porque o país estava em campanha eleitoral. Um mês depois, o então primeiro-ministro, José Sócrates - cujo papel neste processo, a par do do ministro Luís Amado, foi fundamental - ganhou as eleições legislativas.
O DN questionou o Pentágono sobre as torturas relatadas, mas até ao fecho desta edição não obteve resposta.
A vida de Moammar em Portugal não está a ser fácil nem corresponde ao que ele esperava. O sírio tem muitas queixas do governo português, que acusa de ser negligente e de lhe ter retirado o passaporte. Portugal deu-lhe casa e um pequeno subsídio, mas isso não lhe é suficiente. O ex-prisioneiro tem um desejo: voltar à Síria.