"Ser vítima da brutalidade é bem pior do que a morte"

Publicado a
Atualizado a

Há um mistério nos seus livros que a linguagem poética transmite. Ou não?

Eu sinto-o assim. O mistério da morte, por exemplo, fascina-me, embora não a consiga aceitar. Interessa-me enormemente a transcendência. O meu pai era ateu, eu sou crente, mas de uma forma pessoal. Aceito o fim do corpo, mas não do pensamento. A minha escrita está, por isso, cheia de mortos. Lembrar quem já partiu é ter essas pessoas connosco. A morte não existe enquanto nos lembrarmos delas. Para mim não existe.

Gualtiero, depois da morte do pai violento, não consegue ter paz, porque ele morreu naturalmente e não foi ele quem o matou. Diz, nesse conto "Quem faz da vida apenas uma grande recordação não terá futuro." Lida-se como com a memória após o horror?

Mal, muito mal... Fazer da vida uma recordação é, no fundo, viver obcecado com o passado sem conseguir resolvê-lo. O facto de Gualtiero não conseguir matar o pai é uma metáfora. Ele não cresce...

O pai que falta é a sua ausência ou a morte. Segundo Lacan, "o pai é o pai morto e não outra coisa". O filho tem de mata-o para tornar-se sujeito...

Neste caso, Gualtiero nunca terá a possibilidade de reagir contra o pai e ficará mergulhado na dor. Devemos resolver tudo na vida. É melhor um conflito do que o silêncio.

Este livro luta contra a injustiça, mas também contra o silêncio?

Sem dúvida, e contra a ideia de que é impossível reagir contra a força brutal. Ser vítima da brutalidade é pior do que a morte. Há uma altura da vida em que temos de escolher entre o silêncio e a luta. Ao não reagir tornamo-nos cúmplices do mal.

As suas crianças fazem uma aprendizagem contínua do medo. São, de alguma forma, Jobs, vítimas inocentes do mal gratuito, sofredores justos?

De uma certa maneira, podem ser vistas como Jobs. São vítimas da injustiça, pequenos revolucionários contra a ditadura.

A descrição do Inferno é mais fácil do que a do Paraíso, tal como escreveu Schopenhauer?

O bem-estar vive-se, não se escreve. Se houvesse alguém completamente contente, nunca seria escritor. O mal precisa de ser escrito para ser exorcizado.

Não há escritor sem dor?

Não, escritor autêntico não. Os escritores não sofrem mais, mas têm o privilégio de poder expurgar esse sofrimento. Não há um bom livro feliz. A vida é um longo caminho de dores e de vez em quando ganhamos momentos de felicidade. Há que saber vivê-los e prolongá- -los. Vivo no presente e no futuro, usando o passado para escrever, não para construir a minha vida.

E escrever não é ainda assim vida?

Claro, sinto-me viver quando escrevo, mas a literatura é uma coisa, a escrita outra. Não quero viver literariamente, nem fazer da minha vida um romance.

Carla diz que morrerá sepultada em vida. Esta imagem tem atravessado a escrita das mulheres...

É uma imagem árabe, da mulher pecaminosa, caminho do prazer e da perdição. O homem pode dizer sou o perdido, não a perdição. Essa personagem rejeita o prazer da mulher por temer a traição. Mutila-se assim a jóia feminina.

Escreve sobre a escrita dos outros. Como relaciona ficção e crítica?

Só escrevo sobre os romances de que gosto e faço-o porque sou escritora. Não gosto de dizer mal dos outros autores. O crítico militante não deverá ser um escritor. É algo ambíguo. Fica sempre a suspeita de que pode estar a agir por inveja.

Para que serve a literatura?

Para inquietar, para fazer pensar.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt