"Se pudesse casar, casava"

Promove a medicina tradicional, a sua terra,  o seu deus e o "respeito pelas opiniões".  Quer deixar de ser padre mas "não o deixam". E partilhar o fim da vida com alguém
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Avida dele dava um filme - e deu, num DVD recém-editado para lhe celebrar a sétima década. Onze irmãos, três dos quais meios, quatro mortos em criança e um na Guerra Colonial, um pai emigrado para Massachusetts clandestino num porão, a mãe morta cedo de tanto parir e lidar o campo, a quarta classe feita em três anos ("Fui o único da terra") e o desejo de ter um rádio - como o pároco da aldeia - a guiá-lo para o seminário. Seminário que o expulsou por muito "bailar com raparigas" mas que o acolheu de volta. "Tinha pensado para comigo que se me readmitissem seria um sinal de que Deus queria mesmo que eu fosse padre. E assim foi."

E, padre há 47 anos, lá teve o rádio e foi o primeiro na aldeia a ter televisão, mais uns puxões de orelhas esporádicos da "hierarquia": "Tive uns avisos. Respeito a opinião dos outros mas gostaria que também respeitassem a minha." E ele tem opiniões, se tem: a Igreja Católica não deve meter-se na sexualidade, "isso é com os casais"; a sida deve ser evitada a todo o custo (incluindo usando preservativo); não é contra a pílula; é pelo fim do celibato dos padres e pela ordenação das mulheres; no início, inspirado pelo Concílio Vaticano II, aboliu o traje eclesiástico nas suas missas; e chega mesmo a escrever, sobre o seminário onde "ocupou quase toda a juventude, demasiado tempo": "Deixa marcas vincadas como as negras batinas dos padres que por ali se moviam. Alguns poucos quase santos, outros, talvez a maior parte, mais que diabos."

Isto tudo, claro, para além de ser "a cara" da medicina tradicional, das mezinhas e dos "curandeiros", o que, reconhece, não foi sempre bem entendido pelos bispos e colegas, receosos das paganices, feitiçarias, de tudo o que convoque os "ocultos" e "mistérios" não especificamente católicos. Um transgressor, pois, António Lourenço Fontes. Nascido em Cambezes do Rio, Montalegre, filho de analfabetos, ela nascida em 1917 e ele 20 anos mais velho, ela desaparecida aos 49 anos, dez filhos depois mais a criação de três de outra mulher (uma história de novela: a mãe dos três meios irmãos do padre Fontes dera o marido como morto na Grande Guerra quando o pai do padre, regressado da América com algum dinheiro, se lhe juntou. Para se separar, levando consigo as três crianças, quando o falecido inopinadamente apareceu), não só galgou a escola primária e se formou padre como faria, já nos anos 80, um curso de História na Universidade do Porto. Mas é à mãe sem estudos que o pároco de Vilar de Perdizes, de Meixide e de Soutelinho da Raia deve a inspiração para o que é tido como a sua grande obra, o congresso de medicinas alternativas que lançou em 1983. "A minha mãe era uma conhecedora de ervas tradicionais e eu, nos anos 60, tentei traduzir o conhecimento dela em livro." Nessa época, diz, com a escassez de médicos e o isolamento da região transmontana, "toda a gente era curandeira". O Serviço Nacional de Saúde, lançado em 1975/76, rarefez o saber e deu-lhe a ideia do congresso: "Uma feira original popular e erudita, um espaço para questionar métodos e crenças, novidades e antiguidades, uma ocasião para conhecer o país real, profundo, oculto, esquecido, marginalizado."

Se consome mezinhas? "Sim, sobretudo quando sinto a doença à porta." De resto, prefere "comer e beber bem". E parar: quer a reforma mas, queixa-se, "não me deixam". A culpa é da "falta de padres", que atribui à "teimosia da Igreja nas suas tradições" e à ausência de salário fixo. Gestor de um turismo rural em Mourilhe e em recolha de um cancioneiro do Barrosão, continua a inventar coisas para fazer. Sonhos vencidos, o de continuar os estudos de padre em Roma ("O bispo não me escolheu") e de ter filhos. Mas é capaz de ser a solidão e o desamparo que, apesar das suas duas proclamadas paixões, a do amor pela terra e pelo seu deus, mais lhe pedem remédio: "No momento se pudesse casar casava - pela necessidade de haver alguém que nos cuide na velhice."

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