Realidade. Três casais falam da vida num país onde adopção e casamento "gay" são legais.São cinco da tarde, e Ulisses acaba de chegar da creche, ao colo da mãe. De uma das mães. Malin é a mãe que o trouxe nove meses junto a si. Na creche, foi a primeira coisa que disseram quando inscreveram o bebé de oito meses. "Se olharmos na cara, nos olhos, e lhes dissermos que somos lésbicas e o Ulisses é nosso filho, as pessoas portam-se de forma decente." Esta é, pelo menos, a realidade na Bélgica, onde casais do mesmo sexo podem casar-se e formar família. .Discriminação? Não sentem. É quase como uma não questão. "Acho que assumir a homossexualidade contribui muito para isso. É preciso dar a oportunidade às pessoas para que possam agir com respeito", explica Malin. "Às vezes, tenho a impressão de que pertenço a um programa de esclarecimento", continua Virginie, "quando se apercebem, as pessoas querem saber como fizemos para ter um filho, se é complicado.".Ambas sabem que, mais tarde, o filho vai ter de responder a perguntas, mas não antecipam problemas. Para Virginie, Ulisses é o segundo filho. O primeiro nasceu de uma relação heterossexual e tem hoje 23 anos. Não se lembra de quando nem como lhe explicou que era homossexual, mas conta que o filho mais velho "está sempre presente no Gay Pride, sendo heterossexual, e é um apoiante dos direitos gay". Para as duas mulheres, a melhor maneira de mudar mentalidades é assumir a realidade. "É preciso repetir a mensagem", diz Malin. "É preciso mais novelas, mais séries de TV que foquem este assunto", acrescenta Virginie. "Somos muito sortudas", reconhecem. A mudança em todos os outros países da Europa, reclamam-na como "urgente". "Repara, agora com o Ulisses é que não podemos esperar que a sociedade mude.".A fase das perguntas e respostas é coisa por que Maxime, de 15 anos, já passou muitas vezes. "A história é simples", diz com ar de quem a conta pela milésima vez, "vivo com a minha mãe e com a Élise, que casou com a minha mãe há dois anos". Estão juntas há seis e Élise está grávida, e, à semelhança de Malin, recorreu à inseminação artificial com dador anónimo. Andrea, mãe de Maxime, teve um primeiro casamento heterossexual e só "muito tarde" se apercebeu da sua homossexualidade. "Foi um pânico sem tamanho", conta. "A Maxime tinha cinco anos e a pergunta que martelava noite e dia na minha cabeça era só uma: como é que eu explico isto à minha filha?" ."Não foram só os meus colegas na escola que me faziam perguntas", diz a adolescente. "Até os meus professores, quando souberam, quiseram saber como era, se não preferia que a minha mãe tivesse encontrado outro homem, em vez de uma mulher." Na maioria das vezes, confessa que "não sabia bem o que dizer". Hoje, na mesma escola que frequenta, diz, "já há mais miúdos como eu". A "curiosidade", como lhe chama, diminuiu..Estão juntos há nove anos, e há um ano e meio Viorel e Maxim, ambos moldavos, casaram-se na capital belga. "Foi tudo muito rápido, num minuto tínhamos assinado os papéis e estávamos casados", recorda Viorel. Uma "normalidade" muito distante da realidade que os dois vivam em Chisinau, na Moldávia. "O estereótipo que existe no meu país sobre o que é ser homossexual é muito negativo", conta Viorel, ao mesmo tempo que recorda que alguns dos amigos mais próximos se mostraram "muito hostis" quando, aos vinte anos, revelou a sua orientação sexual. Até este ano, os pais de Viorel pensavam que Max era apenas um bom amigo e, "mesmo hoje, que já sabem que somos casados, preferem não falar no assunto". Do lado de Maxim, a situação tem tudo de diferente. Na cidade onde viviam, no país natal, os seus pais fazem parte de um grupo de apoio a outros pais que se confrontam a homossexualidade dos filhos. .Maxim é activista pelos direitos gay, já o era na Moldávia, e hoje trabalha para a ILGA-Europa. "Para ele, o casamento era um símbolo", conta Viorel. "Para mim, é uma questão prática. Comprámos uma casa juntos, queremos preencher uma declaração de IRS conjunta e tudo o mais que um casal faz". Casar com outro homem não era uma possibilidade em parte nenhuma quando os dois se conheceram. Precisamente no ano em que a Bélgica se tornava no segundo país do mundo, depois da Holanda, a legalizar o casamento homossexual, em 2003, Maxim e Viorel mudaram-se para Bruxelas.."A evolução tem sido muito rápida", diz Viorel sobre as garantias e os direitos que os homossexuais conseguiram nos últimos anos. O século XXI trouxe a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo a quatro países europeus e há já uma maioria que reconhece os regimes de união civil. Mas, enquanto a sociedade muda e não muda, há um sem-número de bizarrias que resultam da não uniformização da legislação à escala europeia. .Está fora de questão sair da Bélgica para um país que não reconheça o laço entre os dois, explica Viorel. "Se a escolha for entre Londres e Nova Iorque, não há escolha", conta, conformado, "será Londres, visto que lá reconhecem o nosso casamento e todos os direitos associados". Como são os dois cidadãos moldavos, fora do grande clube europeu só num país onde a legislação seja compatível poderão garantir que um deles, se arranjar um contrato de trabalho, obtenha um visto de residência por força do casamento. .Malin e Virginie não são casadas. Escolheram a união civil, que lhes garante quase todos os direitos de um casamento civil, com excepção de direitos de herança. Mas a chegada de Ulisses trouxe um problema. Malin, a mãe biológica, é sueca, embora viva há dez anos em Bruxelas, e a lei sueca só reconhece a adopção de Ulisses por parte de Virginie, que é belga, se as duas se casarem, como única forma de compatibilização entre a pax (o regime de união civil) e a legislação belga. .Legalmente, por enquanto, pelo menos, Malin é a única mãe de Ulisses, e há oito meses que Virginie, a mãe adoptiva, espera para que o processo ande para a frente. "Sabemos que o processo dura pelo menos um ano", conta Virginie. "O único problema é que, se entretanto acontecer alguma coisa à Malin, eu não tenho direito nenhum sobre o meu filho.".O dia do casamento cada vez mais próximo?.Da Holanda, onde o casamento e a adopção por parte de casais do mesmo sexo são legais desde 2001, a Chipre, onde 75% da população ainda acredita que a homossexualidade é uma doença curável, a realidade europeia não podia ser mais díspar. A maioria dos 27 Estados membros da UE, porém, encontra-se já do lado da aceitação do fenómeno. Em 11 países, contudo, a existência de casais homossexuais é assunto que não está coberto pelas leis. .Portugal está no limbo, com a Áustria, tendo reconhecido em 2001 as uniões de facto do mesmo sexo. Um passo atrás de 12 Estados membros, como a França, o Reino Unido, a Islândia ou a Dinamarca, que consagram hoje as uniões civis registadas (e, no caso do Reino Unido e da Islândia, a adopção), um regime que geralmente consagra direitos equiparados ao do casamento civil. Anos-luz à frente estão a Holanda, a Bélgica, Espanha e, de fora da família comunitária, a Noruega, que acaba de aprovar a nova lei do casamento. Vanguardistas a que se juntam, fora da Europa, o Canadá (2005), os estados do Massachusetts (2004) e da Califórnia (2008), nos EUA, e a África do Sul (2006). Os três últimos por via de decisões de tribunais com base na Constituição; o Canadá, por uma alteração legislativa proposta pelo Governo do liberal Paul Martin, após várias decisões de tribunais permitirem, desde 2003, o casamento de cerca de 3000 casais do mesmo sexo..São 15 os países europeus onde as uniões entre pessoas do mesmo sexo não são reconhecidas. Destes, nove são membros da UE, incluindo a Grécia e a Irlanda. Com uma fatia muito considerável de países do Leste de olhos vendados para a homossexualidade, hoje, a população da UE pós-alargamento é, de acordo com as sondagens, maioritariamente contra o casamento gay e a adopção por parte de casais homossexuais. Os checos são os únicos no Leste favoráveis ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, 52%. Apesar de fraco apoio popular, também a Hungria e a Eslovénia consagram hoje na sua legislação o regime das uniões civis. - A.C..Adopção por casais do mesmo sexo é mais comum na UE que o casamento .O direito à adopção de crianças por parte de casais homossexuais chegou primeiro do que o direito ao casamento em alguns países da Europa. São sete aqueles em que um casal homossexual se pode candidatar à adopção. Destes, quatro não consagram ainda a legislação do casamento do mesmo sexo: Suécia, Reino Unido, Noruega ( a nova lei do casamento só entra em vigor em 2009) e Islândia. .Depois de conduzir durante 18 meses um estudo multidisciplinar que acabou por provar que os casais homossexuais têm as mesmas capacidades para serem pais que os heterossexuais, o Governo sueco estendeu, em 2002, o direito à adopção aos casais gay. Depois, em 2005, a Suécia passou a permitir que casais de lésbicas tivessem acesso, em hospitais públicos, à procriação assistida. Só este ano a Suécia vai votar no Parlamento uma proposta de lei que visa dar o casamento aos homossexuais, mas desde 1995 que consagra as uniões civis. No Reino Unido, o cenário é semelhante. Os casais homossexuais podem ser pais, mas não podem, ainda, casar-se. Londres alterou a lei da adopção em 2003, retirando do texto a obrigatoriedade de o casal ser casado para poder candidatar-se à adopção. A alteração abriu, então, as portas a gays e lésbicas. Apesar dos desenvolvimentos, naquela data o Reino Unido não tinha ainda regulamentado as uniões civis entre parceiros do mesmo sexo, o que só acabou por acontecer em 2005. .Numa outra perspectiva do direito à adopção, países como a França, a Dinamarca e a Alemanha possibilitam que uma pessoa, ainda que não casada, possa adoptar os filhos, biológicos ou adoptados, do seu parceiro do mesmo sexo. Em França, a mudança data de 2006, por força de uma decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que deu razão a um casal lésbico em união civil quando a mãe biológica de uma criança quis partilhar a responsabilidade parental com a parceira. . Foi a Holanda a inaugurar a tendência, em 2001. Na primeira vez em que os democratas-cristãos não ocupavam a cadeira do poder, o Governo liberal consegue a maioria parlamentar e aprova a lei do casamento para homossexuais e o direito à adopção. No último Eurobarómetro, de 2006, mais de 80% dos holandeses concordavam com o casamento entre pessoas do mesmo sexo e 69% com a adopção. 2003 foi ano de a Bélgica dar o "sim" ao casamento para gays e lésbicas. Também sem rasto de conservadores no poder, o Governo de Guy Verhofstadt propôs o casamento e, três anos mais tarde, apesar da discordância da maioria da população (58%), a proposta de estender os direitos de adopção e de assistência na procriação passa o crivo do Parlamento belga. A lei espanhola de Zapatero surge em 2005, concedendo o direito ao casamento e à adopção. A última foi a da Noruega, com a entrada em vigor da nova lei a 1 de Janeiro de 2009. A Suécia será o país que se segue, com o apoio da maioria da população. .A Agência dos Direitos Fundamentais da UE, criada em 2007, realizou a pedido do Parlamento Europeu um relatório sobre homofobia e discriminação com base na orientação sexual no qual sublinha a "necessidade de clarificar a situação" dos casais homossexuais "em conformidade com os direitos humanos internacionais, no que toca a direitos e benefícios dos cônjuges e parceiros". Em particular, o relatório foca as três directivas europeias que tratam os assuntos da discriminação: emprego, reunificação familiar e qualificações. Na sua análise, a agência critica a acção legislativa da UE na medida em que, "paradoxalmente, o direito comunitário cria uma hierarquia artificial para os vários tipos de discriminação, protegendo um dos tipos de discriminação (o da raça) de forma mais consistente do que outros". Para a agência especializada em direitos humanos na UE, é preciso que o mesmo grau de protecção seja oferecido a todos os tipos de discriminação. Em concreto, a agência que tem sede em Viena, na Áustria, recomenda à UE que dedique melhor regulamentação aos esforços anti-discriminação de indivíduos LGBT, em linha com os princípios consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da UE, onde, e pela primeira vez em todo o mundo, está proibida a discriminação com base na orientação sexual. - A. C. .Diferentes leis criam confusão .Para a ILGA-Europa, espécie de federação das associações LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgénero) do mesmo nome nos vários países europeus, a legislação comunitária contra a discriminação "oferece um quadro de protecção suficiente" a gays e lésbicas". ."A União Europeia não tem competências ao nível do direito da família, logo, a nossa estratégia é pressionar para que os Estados membros sigam os princípios de direitos humanos que eles próprios fundaram", diz Juris Lavrikovs, responsável pela campanha pelas uniões do mesmo sexo. "Não estamos preocupados com o título que os governos podem encontrar para definir uma união entre pessoas do mesmo sexo, o que pedimos é a atribuição dos mesmos direitos e das mesmas responsabilidades." .Ao mesmo tempo, a organização alerta para a criação de "situações bizarras" entre as legislações dos Estados membros da UE e do Conselho da Europa, já que o enquadramento legal das uniões homossexuais é tão diferente de país para país. "Se um belga se casar com um cidadão extracomunitário e quiser mudar de país dentro da UE e for para Portugal, por exemplo, este casal corre o risco de o país de acolhimento não conceder um visto ao que vem de fora da UE, já que Portugal não reconhece o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ora, isto já é do campo da liberdade de movimentos consagrada nos tratados e o visto seria concedido ao marido ou esposa extracomunitário num casal heterossexual." .Juris Lavrikovs acredita que a situação vai melhorar nos próximos anos e destaca que a evolução tem sido rápida: "Se pensarmos que há 20 anos os homossexuais não tinham quaisquer direitos, hoje já fizemos um caminho muito, muito longo." - A. C.