"Não pensamos a longo prazo"
Cresceu numa casa de ciência. Como entrou na sua vida a ideia de fazer ficção cientificamente fundamentada?
Foi um processo perfeitamente natural o meu pai era cientista, a minha mãe uma escritora... Só podia acabar como escritor de ficção científica! Tive a sorte de ser criado numa casa que tinha grandes escritores de ficção científica como amigos da família, como o Ray Brad- bury, o Isaac Asimov.
O seu pai garantiu certamente à sua educação uma vivência atenta às questões da ciência...
Sim, mas nunca me condicionou no sentido de fazer de mim um cientista. E foi uma alegria suprema ter dúvidas sobre o universo e um pai como o Carl Sagan para dar as respostas. Porque é o céu azul?... Ele dava sempre uma explicação razoável. Aprendi... E senti depois a diferença ao chegar à escola e a modelos de ensino mais ligados à memorização e repetição em vez de uma aprendizagem efectiva.
Quando se falava em família das questões que ele levantava nos seus livros e programas?
Era sobretudo ao fim da tarde e quando íamos ver as estrelas. Mas conversávamos sobre tudo. Lembro-me de falarmos sobre Guerra das Estrelas. Há uma cena em que o Han Solo diz que o Millenium Falcon percorre um certo espaço em 8,3 parsecs... O meu pai levantou as mãos e exclamou o parsec é uma medida de distância, não de tempo! Eu respondi-lhe "Pai, é apenas um filme!" E ele disse então que quem o fez tinha dinheiro suficiente para pagar a alguém que garantisse a ciência correcta. A ficção científica tem de ser divertida, mas também plausível. Tive ainda a sorte de ter conquistado algum sucesso como escritor quando ele era ainda vivo, podendo então discutir com ele o tipo de trabalho que estava a fazer.
Contacto, o romance de ficção científica do seu pai foi, precisamente, um exemplo quase atípico de sólida plausibilidade científica...
Tem fundamentações científicas profundas. Ele estudou muito sobre wormholes... E é um romance diferente do típico livro de ficção científica que costuma apresentar um herói e uma história... Eu escrevo uma ficção científica diferente, mais social.
Que escritores de ficção científica mais admira?
A minha santíssima trindade são o Asimov, Bradbury e Heinlein. Também me interesso pela fantasia, e aí li Tolkien, C. S. Lewis. Na adolescência descobri também o Lovecraft. E continuo a descobrir novos autores. Mas como autor sinto que coloco tanta energia na libertação de ideias para fora, que dou pouco tempo à entrada de outras para dentro. E reconheço que é preciso repensar coisas, aprender mais. Há arte e vida. Muitos têm a vida. Mas se se faz arte, devemos garantir que haja muita vida na nossa arte.
Vê a ficção científica como um género fundamental da literatura americana do século XX?
Sem dúvida. É um género muito importante. Ao contrário de muitos outros, é prospectivo, levanta a questão do que se vai passar a seguir. Por muito bom que seja um mistério, um western ou um romance, não coloca as questões importantes que temos de colocar a nós mesmos ao encarar o próximo século, o próximo milénio. Há muita ficção científica pateta, mas a que coloca questões sérias presta um serviço válido a todos nós.
Disse uma vez que, como escritor, o seu papel é o de dar às pessoas as mais interessantes visões do céu e do inferno...
Há grandes questões que se levantam sobre para onde vamos como espécie neste momento. Somos primatas incrivelmente inteligentes, desenvolvemos tecnologias maravilhosas, mas também com tendência para formar grupos que se destroem entre si. À medida que a tecnologia evolui aprendemos como matar mais gente com menos trabalho. A questão é saber se seremos capazes de controlar esse impulso. Há por isso muitos futuros plausíveis, uns belos, outros horríveis. E o meu trabalho como escritor de ficção científica é o de escrever histórias que possam mostrar o que pode correr bem e mal no nosso futuro. Esperando, no fim, poder criar uma utopia possível ou, pelo menos, um futuro em que possamos usar a tecnologia de forma a não nos auto-destruirmos.
Acredita na tese, que o seu pai defendia em Cosmos, sobre a tendência natural das civilizações para se auto-destruirem?
Sim, e uma das razões para assim acreditar é a tese, que acho provocatória e espero seja falsa, que defende que a razão pela qual não encontrámos ainda vida extraterrestre se deve ao facto de as civilizações, ao atingirem um certo patamar tecnológico, se destruirem a si mesmas. É terrível pensar nisso. Uma das maiores influências do meu pai sobre mim tem a ver com a mudança dessa perspectiva. Ele originalmente acreditava que, mesmo sendo o espaço tão vasto, quando o SETI e outros programas começaram a procurar sinais de vida inteligente exterior houvesse resultados no seu tempo de vida. À medida que o tempo passou e não viu resultados, começou a falar mais ainda da preciosidade que é a vida neste planeta e a importância de a preservar. Isso afectou-me e muita da ficção que escrevo fala sobre essa preciosidade que é a vida e os perigos que enfrentamos.
As visões do apocalipse que hoje lemos na ficção científica são diferentes das que a religião historicamente inscreveu nas culturas...
Estão re-sintetizadas... Veja-se o caso do Childhood's End [de Ar- thur C. Clarke], onde ainda temos a visão clássica do Diabo. Gosto muito de mitologias e penso que os contos apocalípticos religiosos são muito interessantes, mas acredito que nos podemos matar de muitas maneiras sem nada disso. O horror tecnológico, vírus assassinos, armas nucleares... Não precisamos de um deus zangado para nos matar.
Acha que a ficção científica pode mudar a humanidade, alertando-a quanto a potenciais perigos?
A ficção científica, e alguns outros géneros de ficção, têm uma certa capacidade de atingir as pessoas porque entram não pela porta, mas antes pela janela... Ou seja, se eu quiser escrever uma história sobre o facto de a guerra no Iraque ser um erro muitos iriam tomá-la como sendo uma mensagem política. Seria o aqui e agora, e as pessoas concordariam ou discordariam. Se eu escrever uma história projectada noutro tempo, até mesmo noutro planeta, mas com o mesmo tema, posso fazer passar a mesma mensagem, e o leitor reagirá de outra maneira. A ficção científica e a fantasia têm a capacidade de abordar os assuntos de maneira subversiva e sinuosa, e assim inspi- rar as pessoas onde, através de outras abordagens, poderiam estar de mente fechada a outras ideias.
O cinema hoje dá-nos mundos pós-apocalípticos diferentes dos que a actual literatura de ficção científica retrata. Veja-se O Dia da Independência, O Dia Depois de Amanhã, o Impacto Profundo...
As visões que têm vindo da literarura são mais assustadoras. É mais fácil acreditar que aí vem um monstro que nos quer matar. E não que somos nós que nos podemos matar... O realizador John Carpenter fala disto como o terror de esquerda contra o terror de direita, sendo o de direita o dos monstros assassinos. E o de esquerda aquele em que os monstros somos nós mesmos. Uma das coisas de que me orgulho nos meus livros é o facto de as personagens serem, mais que humanas, demasiado humanas. É algo que não se costuma ver em Hollywood.
Será preciso um apocalipse para o homem se reinventar e reposicionar entre si e face ao seu mundo?
É preciso passar por algo difícil, sofrer, para poder aprender. Mas espero que, como espécie, não precisemos de enfrentar mais terrores e desastres para nos fazer pensar. Mas a verdade é que não pensamos a longo prazo. Danificamos tanto o ambiente, e pode ser que tenhamos mesmo de enfrentar um desastre ecológico para repensarmos a forma como agimos. Costumamos adiar certos problemas para a geração seguinte.
A ficção científica tem contribuído para repensar a relação da religião com a ciência, as éticas biológicas e tecnológicas?
Espero que sim. Mas, em primeiro lugar, a ficção científica tem que ser entretenimento.
Pensa no que diria o seu pai a cada novo livro que escreve?
Sim, mas não apenas quanto ao que escrevo. Gostaria de falar com ele sobre tudo o que se passa no mundo.