"Marcelo tem excelentes condições para ser Presidente da República"

Com um empréstimo fez uma fábrica de latas que cresceu até se tornar império. Preparava o filho para lhe suceder mas tudo ruiu quando ele morreu, aos 22 anos. Entrevista com Ilídio Pinho.
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Quando vinha de Lisboa, fiz um desvio para ir ver Vale de Cambra e Lordelo. Queria ver onde começou a sua vida. O que é que procurou, para lá daqueles montes?

Cresci numa atmosfera de trabalho, de metalomecânica. A família da minha mãe estava na indústria dos laticínios - Vale de Cambra foi o berço desse setor em Portugal. O meu pai era ambicioso, trabalhador, e iniciou o seu caminho no apoio às fábricas, na conservação, manutenção e construção dos equipamentos. Daí passou para os vinhos, as margarinas, as metalomecânicas pesadas. Agora, a Arsopi - do nome do meu pai, Arsénio Soares de Pinho - até produz equipamentos nucleares. É a maior empresa portuguesa nessa área e é exportadora para todo o mundo de equipamento de grandes dimensões.

E os filhos trabalhavam com ele?

Éramos estudantes e trabalhadores. A oficina era por baixo da nossa casa. Não existiam para nós sábados e domingos nem horários de trabalho. Vivíamos numa fase de guerra e estava em causa produzir e poupar. Endireitei milhares de pregos e escolhi montes de sucata à procura de algo que se pudesse aproveitar. Aprendi a ser torneiro, ferrador, malhador, carpinteiro, fresador e tudo o mais que uma empresa destas tem. Também trabalhei como desenhador, calculador, orçamentador, aprendi a relação com os clientes e fornecedores. Isso deu-me uma larga experiência da vida empresarial, que na altura não se chamava nada disso. Nem se sabia o que eram empresários nem se usava a palavra "industrial". O meu pai era um serralheiro.

E ao mesmo tempo estudava e foi fazendo estágios?

Nomeadamente na CUF, na Rabor, em fábricas de tornos, na Alemanha. Aprendi o que é trabalhar de forma organizada, algo que não se usava. Entendi que eu e os meus irmãos tínhamos a capacidade de ter autonomia industrial, cada um no seu projeto, interligados numa holding que oferecesse condições sinergéticas entre as partes e que nos poderia transformar num grande grupo industrial nacional. Mas não consegui passar a ideia, familiarmente. O meu pai impediu que os meus irmãos fossem meus sócios .

Porque é que não foi para fora? O caminho natural, numa situação dessas, era a emigração.

Estive quase a ir para Angola. Mas apaixonei-me pela minha mulher e, se fosse para Angola, era capaz de a perder. E ainda bem, porque o meu sogro revelou-se um grande pai. Ele e a minha sogra adoravam-me e ajudaram-me o mais possível. Não com dinheiro, porque não tinham, mas através de amigos e parentes, que me fizeram empréstimos avalizados por eles. A minha família, pelo contrário, abandonou-me e isso, curiosamente, foi a melhor coisa que me podia ter acontecido.

Quando as coisas são fáceis...

...há males que vêm por bem. Isso deu-me uma enorme força de resistência a privações, ao sofrimento, uma capacidade exaustiva para o trabalho e o desejo de vencer na vida.

Ficou sempre magoado com o seu pai?

Estive quase 25 anos sem lhe falar.

Conseguiram ultrapassar isso?

Com a morte do meu filho, em 1990, os meus pais foram apresentar-me os seus pêsames. Perguntaram-me se o podiam fazer, eu disse que sim e perdoei-lhes, em memória do meu filho. Eu tinha dado ordens para que, se eu falecesse primeiro, os meus pais e os irmãos não fossem ao meu funeral.

Era mesmo uma mágoa muito funda.

Profunda. Nunca consegui ter sonhos bons com o meu pai, tive sempre pesadelos com ele. Terríveis.

A sua mãe não contrariou o afastamento que o seu pai impôs?

Não, não se opôs. Foi pena. Um dia pediu-me que perdoasse o meu pai e eu perguntei-lhe se não tinha de perdoar-lhe a ela também. Quando perdi o meu filho, entendi que a minha ambição empresarial tinha chegado ao fim em termos de autoestima empresarial, em proveito do meu umbigo. Entendi que deveria criar condições para ser um empresário de utilidade pública. E tenho boas razões para não estar arrependido.

Criou a Fundação nessa altura?

É meu entendimento que Portugal deve beneficiar com isso. A Fundação Ilídio Pinho tem desempenhado bem o seu papel quer ao nível da cultura, quer ao nível do objeto fundamental que é a ciência ao serviço do desenvolvimento e da humanização. Com o projeto Ciência na Escola tem ajudado a criar condições para que as escolas sejam motores da ciência e inovação da sociedade que as envolve.

A ciência é decisiva?

Eu sou um apaixonado da ciência. Ciência significa inovação, ou seja, fazer aquilo que nunca tinha acontecido. Ao contrário do que se pensa, entendo que a emigração de alguns dos nossos jovens é excelente para o país, a prazo. Se queres saber o que Portugal precisa, vai primeiro conhecer o mundo. Se não, corremos o risco de pensar que estamos a inovar e não estamos a inovar coisa nenhuma, porque isso já aconteceu há muito tempo por esse mundo fora. Temos a obrigação de ter uma formação planetária para poder saber quem somos e o que queremos ser.

Mas é preciso que eles regressem.

Na sua maioria, regressam. Os portugueses são lusitanos. Portugal tem 800 anos de História, é o país com as fronteiras fixas mais antigas da Europa. Os portugueses têm um desejo permanente e último, que é regressar a Portugal. E trazem conhecimento, afirmação, são mais cultos aos níveis mais avançados, em todos os parâmetros que suportam a nossa vida: educação, saúde, justiça, tecnologia. A prazo, Portugal vai agradecer, talvez a Deus ou às coisas mal feitas que por aí aconteceram, o sacrifício que os portugueses, em geral, tiveram de fazer.

Estes últimos anos não têm sido nada fáceis.

Não têm sido fáceis mas os sucessos conseguem-se à custa das coisas difíceis, das coisas anormais. Porque as coisas normais não são sucesso, isso qualquer um faz.

A leitura do seu livro colocou-me uma série de questões. O que explica essa sequência de dificuldade e dificuldade mas sempre a triunfar?

Há uma razão muito simples. Adotei um princípio que rege a minha vida e espero que vá assim até ao fim: quando não puderes fazer o que queres, faz o que podes. E, portanto, fui fazendo sempre e as coisas foram acontecendo de acordo com o que eu queria. E tenho outro princípio: eu sei o que não quero, para poder saber o que quero. Quando comparava com o que via em Itália, França ou Alemanha, sentia que estávamos a milhas de distância tecnológica. Passei a ter um conhecimento do setor que os meus concorrentes não tiveram.

Não tiveram a curiosidade de ir ver?

Com certeza que não. Resultado: dos 18 concorrentes, só um resistiu. O resto faliu tudo. Nos países onde a tecnologia era mais avançada fui procurando criar relações, através dos fornecedores de equipamento. E também aqui houve o acaso. Ia na estrada em Milão e bati com o meu automóvel numa camioneta da Marzoratti. Fui até à fábrica para resolver o problema do acidente e conheci o Sergio, o filho do senhor Marzoratti. Percebi que estavam a levar latas e pedi para visitar a fábrica.

Fez viagens pela Europa de automóvel, numa altura em que não havia autoestradas como hoje. Como era isso?

Viajava com a minha mulher num Citroën "boca de sapo". Levávamos tudo no carro e enquanto ela cozinhava à beira da estrada eu limpava o carro e arranjava o que fosse preciso.

Foi uma grande companhia, a sua mulher, percebe-se no livro.

Foi e é. Somos casados vai fazer 53 anos. Nunca amuámos na vida. Tivemos zangas mas nunca tivemos um amuo. Foi uma condição que impusemos a nós próprios. Sabe quais eram as zangas que tínhamos? Era quando ela me fazia esperar. As senhoras têm um hábito curioso, que é ficar ao espelho a arranjarem-se, e o marido à espera.

Mas depois não gostava de que ela ficasse bonita?

O mais possível. Eu gosto muito de ver a minha mulher bem arranjada.

Numa dessas viagens, passei por Espanha, França, Alemanha e fomos parar a Berna, à Aluminium Suisse, que era a maior fábrica de alumínios da Europa. O diretor comercial aconselhou-me a fabricar camiões-cisterna frigoríficos para transporte de produtos alimentares. Levantei dificuldades, desculpas, para não fazer aquilo e ele acabou por me dizer: "Vou ser franco contigo. Conheço muito bem Portugal e os portugueses e há uma enorme diferença entre nós: enquanto nós aqui na Suíça, quando temos um problema, atacamo-lo e resolvemo-lo, vocês em Portugal, passam a vida a criar problemazinhos e bloqueiam, não conseguem decidir coisa nenhuma."

Isso fez um clique na sua cabeça?

Foi um clique! Nunca mais me esqueci. Isso passou a ser o pilar estrutural da minha vida. Nunca deixo que um problema se transforme em dois ou em n. Se assistir a uma reunião aqui, vai ver que enquanto um problema não estiver resolvido não se sai daqui. E a verdade é que chegamos ao fim e tudo se resolve. E se eu deixar que cada um fale à Lagardère, livremente, sobre o que lhe vier à cabeça, a gente sai da reunião pior do que dantes. O problema existe, ataca-se, resolve-se, ponto final. Quando ele me disse aquilo fiquei completamente perdido, ansioso. Queria libertar-me do homem, ir-me embora e o tipo teve a delicadeza de oferecer um almoço a mim e à minha mulher. Foi o almoço mais penoso da minha vida. Porque eu queria ir para Itália, queria ir para a Marzoratti. Levantou-se um temporal enorme, atravessei o São Gotardo, tinha havido um acidente, havia mortos. E depois descemos do lado do lago Como, quase na vertical - ainda não havia túnel. Telefonei ao Sergio e combinei ir ter com ele à fábrica. Contei-lhe a história da minha vida. Da desgraçada da minha vida, sem dinheiro. Ele chamou o pai e disseram que ficavam à minha disposição, que contasse com eles. Disse à minha mulher: vamos embora que eu já sei o que vou fazer da vida - uma fábrica de latas. Parece impossível como é que fui encontrar a solução em Berna. Foi a grande lição da minha vida.

E aí começou a sua vida de empresário?

É verdade. Eu fui um latoeiro. A Colep começou com máquinas em segunda e terceira mão. Eu não tinha dinheiro, portanto comprei máquinas usadas, em segunda, terceira mão. Comecei a produzir latas para bolachas, que depois levavam rótulos. As bolachas vendiam-se à unidade nas lojas, nas tascas...

Em cartuchos de papel que se fechavam com uma guita?

Sim, sim. Em papel mata-borrão. Enrolava-se a parte de cima, dobrava-se e aquilo fazia umas orelhas. É tão engraçado falar dessas coisas.

Como conseguiu o primeiro grande cliente, a Fábrica Triunfo?

Tinha um parente e amigo que me apresentou ao Vítor de Sousa Machado, filho do Vítor Machado, os grandes donos da Triunfo. Começou a comprar-me latas. O principal fornecedor dele, o António Ribeiro, da Rimarte, foi lá dizer mal de mim, e que eu não durava três meses, para ver se conseguia que ele não me comprasse as latas. O Vítor Machado, um homem extraordinário, de uma cultura notável, não gostou e a partir daí não lhe comprou mais e passou a comprá-las todas a mim. E gostou do que aconteceu, porque a Colep se portou muito bem. Eu tenho um princípio, quase um vício: aquilo que eu disser é para fazer. Ele estava habituado a um comportamento, normal na época, em que não havia prazos, aquilo era conforme ia acontecendo. E eu tinha um comportamento de exigência comigo como também o fui sempre com terceiros. Eu cumpro, os outros também têm de cumprir, senão fico com mau feitio. Com isso, passámos a fornecer latas à Favorita, à Aliança. Depois vieram as latas litografadas para a Triunfo.

Também houve aí a interferência de uma pessoa especial, na litografia da fábrica de conservas Vasco da Gama, não foi?

Foi. Quando a Triunfo decidiu ter latas litografadas, o Vítor Machado - já éramos amigos, nessa altura - perguntou se eu era capaz de produzi-las e eu disse que sim. Mas os meus concorrentes de Vale de Cambra ameaçaram as litografias - se trabalhassem para mim deixavam de ser clientes deles. Fiquei sem condições para cumprir o que tinha prometido. Fui encontrar--me com um dos donos da fábrica a quem tinha comprado as máquinas em segunda mão e contei-lhe a minha desgraça. E ele apresentou-me o Manuel Barroso, que quando ouviu a história ficou revoltado. "Isso não se faz!" Até porque estavam a cobrar-me pela folha-de-flandres em branco um valor muito alto: "Você está a ser explorado. Vou fornecer-lhe a folha litografada ao preço a que lhe vendem a folha em branco." Eu nem queria acreditar! Fui no ar, para casa.

Onde vivia, nessa altura?

Em Vale de Cambra, num apartamentozinho pequenino. Para terem capacidade para me fornecer, ele e o irmão Fernando instalaram uma segunda linha de litografia. Mas não era suficiente. E aí começa a dar-se o fenómeno, a minha grande ideia estratégica: a palavra autonomia. Vi que era preciso ter a minha própria litografia, que era uma coisa absurda, numa terra como Vale de Cambra, cuja região não tinha o mínimo de tradição nisso.

Nem sequer tinha estradas...

As estradas eram péssimas, não tinha escolas: nem uma escola do ciclo preparatório, nem básica, nem secundária, não tinha uma escola social, não tinha coisa nenhuma.

Já era autónomo na parte dos transportes.

Sim. Precisava de ter camiões próprios, com características próprias, para fazer o transporte de embalagens. Começámos a dominar o setor da embalagem de produtos alimentares sólidos, depois entrámos no ramo das tintas, e passados dois anos éramos líderes. Depois fomos para os lubrificantes e assim sucessivamente.

Como é que hoje se relaciona com o poder? É amigo de muitos políticos de setores diferentes. Por exemplo, é amigo de Mário Soares?

Um amigo absoluto. Eu não sou propriamente um partidarista. Digo-lhe com toda a firmeza: nunca pedi um favor pessoal a nenhum político. Pedir para a utilidade pública, faço-o cegamente, até o exijo e com muita força, que eu não sou fácil quando tenho a razão do meu lado. Mas nunca pedi para mim. Foi sempre para o país, para a região, para a minha terra. E as pessoas sabem que o meu poder - se é que existe - se sustenta mais na fidelidade aos valores e aos princípios. Nunca fiz corrupção, nunca dei um troco a um deles nem eles me deram a mim.

A corrupção existe, funciona, há casos em tribunal. Como é que passou pelos pingos da chuva?

Muitas vezes, tornando-me uma pessoa dura, difícil, digo às pessoas aquilo que tem de ser dito. Nunca suportei as empresas protegidas pelo Estado, porque achei que prejudicavam o interesse nacional através do imobilismo a que eram obrigadas as empresas privadas, sujeitas aos interesses das empresas do Estado que, de uma forma geral, beneficiavam as pessoas envolvidas nessas empresas.

Como chegou à amizade com Mário Soares?

Ele veio como primeiro-ministro inaugurar uma fábrica de plásticos na Colep, gostou do que viu. Aproximavam-se as eleições presidenciais. Juntámos em minha casa uns 80 empresários do Norte que apelaram para que ele se candidatasse. Depois apareceu a candidatura do professor Freitas do Amaral e a grande maioria desses empresários afastou-se para apoiá-lo. Mas eu entendi que o Mário Soares era a pessoa que reunia as melhores condições humanas, quase monárquicas, para ser Presidente da República de Portugal. Eu entendo que o PR deve ser uma espécie de monarca capaz de levar esperança aos portugueses, paz, confiança, abraços e generosidade. E acho que não me enganei.

Acha que Cavaco Silva também tem esse perfil?

Tem caraterísticas completamente diferentes. Mário Soares tem uma forma de estar espontânea. Não direi que seja um homem especialista em economia. Cavaco Silva em termos económicos tem uma consciência muito rigoro-sa do que é Portugal, aliás diz que nunca se engana, mas talvez essa sua característica o impeça de ter a espontaneidade humanista que tem Mário Soares.

E acha que Marcelo Rebelo de Sousa tem características para ser Presidente? Se ele se candidatar, vai apoiá-lo?

Não posso dizer que seja o candidato que eu prefiro, porque não sei quem são os outros. Mas ao contrário de outros amigos meus, pessoas com quem me relaciono bem, até institucionalmente, acho que o professor Marcelo Rebelo de Sousa tem excelentes condições para ser Presidente. Portugal tem vivido com alguma tristeza nos últimos 20 anos e precisa de alegria. Acho que Marcelo, para além da sua elevada categoria e de um conhecimento exaustivo de Portugal e dos portugueses, terá a capacidade de trazer alegria. Tenho dificuldade em ver as pessoas tristes ter sucesso. Portugal precisa de alegria.

Rui Rio não teria essa alegria?

Não estou a dizer que não tenha características para ser um bom PR, mas perguntou-me pelo professor Marcelo e não retiro nada do que disse.

No livro há várias referências a uma orquestra dos trabalhadores da Colep e diz que era o vocalista. Que tipo de música cantava?

Música que tivesse muito amor, muito carinho e paixão. Muito sentimental.

O que é que isso quer dizer?

Quer dizer que, por dentro desta frieza ou distância que às vezes posso mostrar, eu sou um sentimental.

Qual era a música que gostava mais de cantar?

Feelings. Nem hesito. Eu tenho duas vidas. Tenho uma vida empresarial, em que sou extremamente rigoroso e organizado. E depois tenho uma vida familiar e de relações de amizade em que sou o mais informal que se possa imaginar. Por exemplo, todos os anos, por tradição, ofereço a um grupo de amigos um almoço de bacalhau assado, numa herdade que tenho no Alentejo. Gosto de me levantar a saber mais do que quando me deito. A meio da noite acordo, vou ver as informações do mundo, e quando me levanto sei o que anda por aí. E gosto de me deitar a saber mais do que quando me levanto. Dá-me gozo saber mais e saber que cada vez mais há mais para saber.

No final do bacalhau, vamos para a sala - somos normalmente 70 ou 80 pessoas - para falar sobre um tema. Este ano esteve lá Paulo Portas a falar sobre uma estratégia para Portugal. Estavam lá Daniel Proença de Carvalho, Mira Amaral, o reitor da Universidade de Aveiro, Eduardo Catroga e outros. Falámos seriamente. No ano passado esteve lá o primeiro-ministro, e antes dele o Eduardo Catroga, e antes o secretário de Estado da Cultura, e antes o Mário Soares.

O que aprendeu com Paulo Portas este ano?

Aprendi que é um político bem preparado. Já o tinha ouvido fazer um discurso sobre diplomacia económica e fiquei bem impressionado. Mas agora não me peça comparações. É um homem bem preparado para participar nos próximos anos na governança de Portugal.

Depois das dificuldades que teve com os seus pais e os seus irmãos, criou a sua própria família, com a sua mulher e os seus dois filhos.

Continuo a ter dois filhos. Um está a descansar em paz, o Ilídio Pedro. A minha filha Daniela trabalha aqui na Fundação e é linda. Tenho uma neta que é uma beleza, com 18 anos, que quer estudar gestão, e um neto que vai fazer 15 anos e quer estudar engenharia. E adoro-os.

Projeta alguma coisa neles?

Projeto que devem ser ganhadores. Já lhes disse que se forem gastadores não lhes deixo fortuna, deixo-a à Fundação. Não gosto de gastadores, gosto de pessoas que tenham o sentido da utilidade da vida e isso está claramente dito por escrito e verbalmente. Ou são úteis ou têm de pagar a fatura por isso.

Porque é que resolveu fazer este livro, este balanço da vida?

O dinheiro não é tudo. Os valores materiais ficam cá todos. O que é que sobra? É a memória de quem foi útil ou de quem foi inútil. Há aqueles que vão em paz e a gente não se lembra deles na primeira esquina. Mas há aqueles que por força da utilidade da sua vida vão perdurando. Eu comecei de pequenino a trabalhar nas oficinas do meu pai. Aprendi o que era a vida em todos os seus aspetos. Pensei muitas vezes em escrever as minhas memórias e muitos amigos me falaram nisso. Só cedi quando concluí que seria uma pena a experiência vivida morrer comigo. Se isso puder ser útil a alguém que queira evitar fazer os erros que eu fiz e as imperfeições que eu tive, fico feliz com isso.

Qual foi o maior erro da sua vida?

Há uns anos respondi a uma jornalista: não me arrependo de nada, de nenhum erro que fiz ao nível empresarial. Porque é tudo uma sequência de milhares de decisões umas sobre as outras, todos os dias. Eu fui feito para decidir. As pessoas trazem-me as informações necessárias e eu só decido aquilo que entendo, não gosto de decidir sobre o que eu não sei. A resultante das decisões que tomei é altamente positiva, portanto não me posso arrepender de nada. Mas hoje respondo de outra maneira. O maior erro que cometi na minha vida foi não ter dado a presença que gostaria de ter dado, de ligação familiar, de pai, aos meus filhos e à minha mulher. Porque pensei sempre que se as minhas coisas iam bem empresarialmente, a minha família também iria. E passei por cima da presença. Dias e dias de viagens, de avião, de automóvel, para Lisboa, para Paris, para o mundo e os meus filhos não tiveram o aconchego que precisavam do pai. É disso que mais me arrependo.

O momento mas difícil da sua vida presumo que foi a morte do seu filho.

Absolutamente. Tive um primeiro desgosto, que foi o comportamento dos meus pais e de três dos meus irmãos, para comigo e para com o meu irmão mais velho. O meu pai nunca me deu nada. O último ano do meu curso tive de pagá-lo com o dinheiro que ganhei na CUF, em estágios, e dinheiro que tive de pedir emprestado. Fui o único filho a quem ele não deu emprego quando me formei. Tive de me ir empregar na Oliva, uma grande fábrica de São João da Madeira.

E foi despedido ao fim de três dias.

Sim, porque acharam que ia aprender a tecnologia deles e depois ensinava tudo ao meu pai. Trabalhei seis meses com o meu irmão na Florestal, hoje a Vicaima, a vender madeira. Só então o meu pai finalmente entendeu convidar-me, mas deu-me metade do ordenado que eu ganhava, prometendo no final do ano uma gratificação compensadora. Quando vim embora, 18 meses depois, nem metade do ordenado nem compensação. Pelo trabalho que eu fiz, paguei-lhe toda a formação que me deu. Não lhe devo nada. Quando criei a Colep, propus sociedade aos meus irmãos e ele não permitiu. Disse-me mesmo: "Ainda hás-de vir pedir-me emprego de rastos." Desejou-me a falência! O que desejo é que o meu pai, em memória, tenha paz. Quer que lhe diga qual foi o momento mais feliz da minha vida?

Quero sim, mas antes queria que me respondesse.

O momento mais atroz, mais horrível, mais insuportável, quase enlouquecia, foi a perda do meu filho. Passei noites no cemitério, chorei milhares de horas. Eu e a minha mulher combinámos nunca visitar o nosso filho juntos. Era um tipo preparadíssimo, um líder natural, educadíssimo, um rapaz extraordinário que me acompanhava nos encontros com os políticos, os ministros, os empresários, em reuniões dentro da própria empresa. Por vezes dizia-lhe que interviesse quando achasse bem. Respondia: só falo quando tenho alguma coisa para acrescentar. Que grande lição este filho dava ao pai dele. Foi um mundo que se destruiu, porque eu queria que o meu filho fosse o meu continuador e perdi-o.

Isso mudou a sua maneira de encarar a vida?

Eu tinha cerca de 50 cargos de presidência das mais diversas empresas. Decidi que é obrigação de um empresário criar condições para que aquilo que ele criou tenha vida para além dele próprio. Gradual e progressivamente, fui fazendo o que tinha de fazer por forma a que o que eu tenho não sejam problemas agudos para a minha filha nem para os meus netos. Eles não devem ser submetidos à vontade do avô de egoisticamente, por ambição ou autoestima, lhes deixar um camião de problemas. Não, eu deixo-lhes, se eles tiverem condições para isso, aquilo de que eles precisam para criarem a vida deles, o futuro deles, mas que o façam por eles próprios. É como o problema social que temos aí, das pensões. Deixar problemas àqueles que vêm aí e que não os criaram não é justo. Também entendi que não seria justo deixar aos meus netos problemas que o avô criou para eles resolverem.

Qual foi então a maior alegria que teve?

Três anos depois de o meu filho falecer, convidei o meu pai para visitar a Colep. Já tinha fábricas em Espanha e na Arábia Saudita, tinha o banco, a companhia de seguros, a Transinsular, a distribuição do gás no centro do país, os cabos elétricos, fábricas em Ovar e Matosinhos, e em Angola tinha parcerias fantásticas. E ele ficou a olhar para aquilo. Nunca tinha visto tal coisa. Foi o maior prazer da minha vida, mostrar--lhe a minha vitória, mostrar-lhe que se enganou. E disse-lhe: "Não quero nada do que é seu. Sabe porquê? Queima-me os dedos." Qual é o grande favor que devo aos meus pais e aos meus irmãos? Foi não terem aceitado ser meus sócios. Porque se o tivessem feito eu perdia a autonomia que é o meu paradigma.

E que proposta tem para Portugal?

É precisamente deste paradigma que Portugal precisa, de autonomia para decidir o seu destino. Portugal tem todas as condições para ser um país estratégico para a Europa, uma plataforma intercontinental de investimento estratégico estrangeiro. Temos uma história excelente, de paz, amizade e confiança com todos os continentes, da América do Norte à América do Sul, África, Ásia. E se souber criar condições para isso, Lisboa pode transformar-se numa city financeira com os melhores resultados para o desenvolvimento de um país sustentado num turismo a outra dimensão, numa tecnologia a outra dimensão, numa cultura científica a outra dimensão. Portugal é um país que oferece elevada confiança. Se souber fazer isso, os bancos vêm naturalmente. Eles vêm para onde entendem que existem condições. Não é uma coisa para fazer amanhã. Mas temos de ter uma ideia do que queremos e criar as condições para que aconteça. Se criarmos as condições para uma estratégia de internacionalização, então os portugueses poderão ser ressarcidos e compensados das dificuldades por que tiveram de passar para não serem caloteiros. Nós portugueses não somos caloteiros. Como diz o Kaplan, a burocracia torna difícil o que é fácil através da inutilidade. Precisamos de ter um aparelho administrativo amigo do cidadão. Porque hoje dificulta que o cidadão tenha direito à lei quando precisa. Essa é a base da corrupção em Portugal: tem de se comprar legalidade.

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