"Maratona olímpica foi a mais fácil"
Empresário, dirigente, treinador, organizador de eventos. Aquele que, para muitos, ainda é o melhor atleta português de todos os tempos tem dificuldade em definir a sua actual actividade principal. Carlos Lopes, com 62 anos, ainda é um todo-o-terreno como o era há 25 anos quando se sagrou campeão olímpico da maratona e fez subir pela primeira vez a bandeira portuguesa no mastro mais alto do pódio nos Jogos de Los Angeles'84.
Compreensível para quem nunca foi um especialista como atleta de alta-competição. Lopes foi, como ninguém, capaz de se desdobrar com sucesso em áreas tão diversas como o crosse (tricampeão mundial), pista (recordista da Europa e medalha de prata nos10 000) e estrada (campeão olímpico e recordista mundial da maratona). Um curriculo tão vasto, quase impossível de igualar pelos atletas europeus.
"Hoje, o meu dia normal começa por não querer fazer nada [risos]... mas tenho de fazer", assume o antigo campeão, trocando um olhar cúmplice com a sua mulher, Teresa, antiga atleta do Sporting, quando questionado pelo DN, em sua casa de Torres Vedras, sobre as suas actividades, . "Não me falta o que fazer: tenho responsabilidade na Fundação Carlos Lopes, com os meus filhos; sou solicitado com frequência para palestras e encontros nas escolas; organizo eventos da fundação com a Maratona Carlos Lopes em Lisboa; continuo a manter actividades como treinador; sou vice-presidente do Comité Olímpico de Portugal. ... tudo actividades que procuro conciliar", justifica, interrompido por Teresa, que recorda os tempos em que o marido "não parava quieto" mesmo quando era atleta de alta-competição. "Ele era um autêntico 'bicho carpinteiro'. Ao contrário de outros atletas, mantinha sempre actividades paralelas ao treino. Fazia todos os trabalhos de casa. Para ele era uma forma de se distrair das responsabilidades do stress da alta-competição", recorda a antiga meio-fundista do Sporting.
Lopes foi um dos atletas a be- neficiar da dispensa de meio dia de trabalho para poder realizar treinos bidiários, no plano que Mo- niz Pereira apresentou a seguir ao 25 de Abril de 1974 para pre- para os Jogos Olímpicos de Mon- tereal'76. "Mesmo nessa altura procurei manter o meu empre- go porque sempre defendi que não era bom para mim só pensar em alta competição. Era um descanso activo", recorda, defendendo que "hoje os atletas devem ter outra actividade, seja o estudo ou o trabalho".
Hoje, saudades dos treinos, das competições, das vitórias, das viagens, de uma vida intensa, exigente mas única de um atleta que competiu até aos 40 anos... "não tenho saudades de coisa nenhuma. A única saudade que tenho é dos tostões que poderia ganhar", atirou rápido, a sorrir. "Mas não me custou nada abandonar as pistas. Não fui nem sou saudosista. Sempre tive na minha mente que há um principio e há um fim em tudo. Quando chegou ao momento de dizer que acabou... acabou. Foi o que aconteceu. Nessas coisas sou muito objectivo. Não sou nada daquele tipo de pessoas que passam uma vida a lamentar não poderem continuar a competir", continua, parafraseando o seu treinador Moniz Pereira, numa a das sua letras para fado quando diz que "valeu a pena". "Foram momento únicos. Entre tantas vitórias, tantos trofeus, tantas homenagens , recorda a festa após a medalha de ouro olímpica nos 'leões' de New Jersey, em Newark."
Em sua casa, guarda os troféus conquistados em mais de 20 anos de carreira num espaço ainda fechado que quer organizar como museu, com destaque para a medalha de ouro olímpica.
Visíveis sobre os móveis da sala estão as imagens que recordam muitos desses momentos únicos que viveu. As fotos com os reis de Espanha, com os ex-presidentes Ramalho Eanes e Mário Soares. "Falta ai a foto da visita ao Presidente Ronald Reagan", atira do fundo da sala Carlos Lopes, para a mulher quando esta mostra todas essas fotos onde se destaca os três filhos já crescidos.
"Todas essas recordações", diz Lopes , "fazem-me pensar num tempo em que, mais que tudo, eu ajudei a quebrar barreiras psicológicas. Rasgamos horizontes aos portugueses. No fundo, esta medalha de ouro prova que éramos tão capazes de obter grandes resultados desportivos como qualquer outro povo, desde que tivéssemos condições de treino idênticas", acrescenta. "Andei dois anos e meio a pensar, com convicção, aquilo que queria fazer naquele dia da maratona olímpica. Sabia, com 37 anos, que era a minha última oportunidade para o conseguir e não queria perder essa oportunidade."
"Se tinha confiança? Ter confiança não chega. Estava predestinado ser campeão olímpico", acredita. "Um ano antes tudo se tinha tornado mais claro na minha mente. Apesar de ser o melhor em 5000 e 10 000 metros na época anterior, o facto de não me terem atribuído o titulo de melhor atleta do mundo ...foi um choque. Mas isso acabou por ser um estimulo. Eu quis demonstrar às pessoas que mandavam no atletismo, que era o melhor do mundo" , recorda.
Quase como se tivesse a reviver os momentos daquele que é considerado o ano de ouro para o atletismo português, Lopes quase se ofende quando lhe questionamos que dificuldades encontrou. "Dificuldades, treino, adversários, adaptação, clima. Tudo isso me passou ao lado. Era muito independente o meu maior adversário era os 42 195 metros... esse era o meu problema. Porque não eram os outros que temia." Ainda assim apanhou um susto na segunda circular, em Lisboa, quando foi atropelado a 16 dias da maratona olímpica: "Estava a realizar um treino de 15 km para 43.30 minutos, foi complicado. Consegui partir o vidro do carro. Fiquei todo esfolado, mas não fiquei lesionado."
Chegado o dia da prova, "Eu tinha feito uma excelente preparação para a Maratona e sabia que tinha de resolver o problema e estava preparado para fazer 14 minutos nos últimos 5000 metros. Fiz 14.33 porque não foi preciso fazer melhor. Foi a mais fácil maratona que corri.", atira convicto.
A pressão nunca foi factor limitativo apesar de saber que tinha os portugueses todos a ver a prova de madrugada. "Eu sempre disse que para além de ser uma pessoa muito responsável era, ao mesmo tempo, muito irresponsável, porque sabia o que tinha de fazer mais ao mesmo tempo tinha de me alhear de toda essa pressão. Quando um tipo como eu tem 46 pulsações por minutos, a 45 minutos antes do tiro de partida, acham que está com pressão?", questiona para responder de seguida "faziam da maratona, com como de todas as provas uma festa. Havia um treinador que dizia quando me via antes da prova que parecia que ia para uma festa".
As lesões foram o seu único problema. "Mesmo assim eu não pensava nisso. Mas quanto maior fosse a competição mais descontraído eu estava. Porque no dia-a-dia era uma pessoa nervosa. Melhor, ainda hoje sou." Ainda assim insistimos no que o que mais poderia enervar numa prova? "Que não começasse a horas. Que houvesse atrasos. Se fizesse o aquecimento e a prova se atrasasse ficava todo nervoso, mas mesmo assim concentrava-me logo após o tiro de partida."
Uma paragem abrupta que teve como consequência imediata uma transfiguração na sua imagem. Claro que dos 53 kg de peso em forma para os Jogos de Los Angeles, o antigo fundista solicitado por uma vida de inúmeras obrigações sociais acabou por subir para os "sessenta e tal". "Não, nunca me preocupei com aquilo que os outros diziam. Era normal que quando se deixa de correr em média 36 km por dia iria engordar. É normal que não iria comer como comia e manter esses hábitos para sempre. Passados dois ou três anos passei a ter mais cuidado, principalmente com as bebidas brancas." Justiça, "Vinho? Do Dão e oferecido."