"Há super-heróis que não precisam de explosões"
Sei que estão à espera que refira aqui um filme que terei visto durante os mais quentes namoricos de verão, ou uma daquelas comédias românticas muito previsíveis mas que se veem como se o mundo fosse assim apaixonado e colorido. O verão é também bom para isso: no escurinho da sala, o céu é mais carregado de azul e a Julia Roberts é mais bonita e eterna sem sinal de ruga. Quando a sessão acaba, o dia continua lindo cá fora e a temperatura mantém em lume brando a ilusão do filme.
Volto à minha adolescência, quando em Espinho, onde vivo e cresci, existia um daqueles cinemas gigantes, O Cineteatro São Pedro, onde o som ecoava pela sala sem o brilho do dolby surround , mas num mono que embalava qualquer um. Eu era um vulgar adolescente entusiasmado pelo cinema - todos os dias no São Pedro passava um filme diferente. No verão, eram as cowboiadas, os velhos westerns repostos vezes sem conta para um público renovado.
Lembro-me de que uma dessas sessões me marcou pela dimensão do ecrã, pelas cores fortes, pelo horizonte do filme, pela magnitude épica que pressenti naquela sessão de meio da tarde num verão, não sei qual, em finais da década de setenta. Era uma reposição com vinte anos. Hoje tenho a certeza de que não sendo o filme da minha vida foi o ponto de partida para perceber e desenvolver a minha paixão pelo cinema. Quando saí da velha sala, acompanhado por dois ou três amigos de escola, discutimos o filme durante dias. Serenamente curioso como sempre fui, procurei saber mais do realizador, da técnica que lhe dava aquela dimensão de ecrã e a cor. O ator era para mim um velho conhecido dessas sessões: John Wayne. Do realizador, o senhor de pala no olho, John Ford, já tinha visto muitas outras fitas, westerns, claro, mas só dessa vez fui tentar saber mais.
O ecrã era cheio de magia porque o filme foi rodado em VistaVision, a cor era forte porque o tecnicolor lhe dava uma temperatura invulgar... depois havia a história e os desempenhos, John Wayne, a jovem Natalie Wood e Vera Miles. A minha curiosidade cinéfila despertou naquela sessão e levou-me a vasculhar, no tempo em que não havia computador nem Google. A Desaparecida foi o filme que marcou um verão azul na adolescência.
John Wayne tem uma das suas mais brilhantes interpretações. Ele deu o melhor da carreira na profícua relação com John Ford (A Desaparecida foi a 13.ª colaboração com o realizador).
Até àquela matiné, o cinema, que era um divertido entretenimento para mim, passou a ser um prazer de curiosidade cinéfila, numa procura permanente e descoberta do que está para além das imagens.
Já revi duas ou três vezes esse magistral western em cópia recente de Blu-ray e continuo a achar que só mesmo John Ford sabia filmar assim com aquela dimensão e beleza de cortar a respiração. Acrescento de conhecimento posterior que nesta produção ajuda muito a magnífica direção de fotografia de Winston Hoch e a banda sonora do Max Steiner.
Experimentem ver A Desaparecida, porque vão perceber que há super-heróis que não precisam de explosões ou efeitos para nos surpreenderem. Uma boa história é o ingrediente principal de um grande filme. As cenas mais fortes do filme passam-se no mesmo local onde John Ford rodou algumas das mais importantes sequências de outros filmes memoráveis, (Forte Apache, Cavalgada Heróica). Refiro-me ao Monument Valley, no Colorado, que em homenagem ao realizador tem, hoje, um sítio que é conhecido como o John Ford Point.
O início e final do filme têm a mesma força e são quase decalcados. Logo a abrir há uma porta que se abre e a imagem vai enchendo o ecrã à medida que nos é revelado todo o esplendor do cenário. No final, como num abrir e fechar de página, conclui-se a história e a missão.