"Gosto de música de baile"

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Entrevista Miguel Gomes, REALIZADOR

Na forma em que se vai estrear amanhã, Aquele Querido Mês de Agosto não é o filme que queria fazer, mas sim o filme que foi possível fazer. O que é que se passou?

Sim, este é o filme que eu pude fazer, não o filme que estava previsto. Esse tinha um argumento mais "clássico", mas por duas razões - questões de casting, faltava a personagem do pai, e sobretudo por questões orçamentais, faltava dinheiro - acabámos por ser confrontados com a impossibilidade de filmar o argumento tal como ele existia. E estávamos só a umas seis semanas do início da rodagem.

O que fez então?

Quando os produtores vieram ter comigo e disseram que ou eu simplificava o argumento - que nessa altura já parecia o Ben-Hur da Beira, tinha mil e tal figurantes -, ou então tinha que esperar um ano até ao próximo Verão, e até se arranjar mais dinheiro, fiquei dois dias deprimido. Mas depois decidi ir para a frente com uma versão mais magrinha do argumento, porque as festas de Agosto já estavam a acontecer, estavam lá as pessoas, os músicos, os locais. E então avancei para a Beira com uma equipa mínima e uma câmara de 16 milímetros. Foi um desenrascanço: ir filmar o que achasse interessante e aproveitar tudo. E isso acabou por se tornar no motor do filme.

Esse contratempo afectou muito a estrutura narrativa do filme, em especial a história de ficção entre o pai e os dois primos?

Digamos que da parte ficcional do argumento original, sobraram dois terços. Algumas sequências foram transferidas para a parte mais documental. Mas havia mais personagens, e algumas estavam mais desenvolvidas. Aliás, neste filme acontece uma coisa curiosa: não vemos as personagens nascer, vemos é surgir as pessoas que as vão fazer. Quando o filme continua sob uma forma claramente mais ficcional, o que nós temos são aquelas pessoas que vimos antes, na parte mais documental, a tornarem-se em personagens imaginadas por mim, para um filme comum.

E a ideia de meter a própria equipa de rodagem no filme? Foi de última hora?

Isso aconteceu porque na primeira rodagem sem actores havia dias em que não acontecia nada, não havia bailes, não se passava grande coisa. Por isso, filmava as pessoas da equipa. No filme, há uma espécie de encontro do cinema, das máquinas, dos meios e das pessoas que vêm de Lisboa, com as daquela região.

Sempre quis usar actores amadores, ou fê-lo por não poder ter profissionais?

Sempre quis ter amadores, de preferência originários da terra e que fossem músicos de bailes populares. Esse era o cenário ideal.

Foi fácil encontrar os membros do elenco?

Eu trabalhei três verões no filme, com início em 2005, para encontrar as festas e os ambientes. Passámos para o argumento, e tentei que os escolhidos no primeiro casting já surgissem inseridos na história, caso da Sónia Bandeira e do Fábio Oliveira, que fazem os primos apaixonados, e que surgiram depois de termos andado a divulgar nas escolas e nas juntas de freguesia, que procurávamos pessoas daquela idade que soubessem cantar ou tocar instrumentos e quisessem entrar num filme. Em 2006, fizemos a primeira rodagem com actores, e aí descobrimos alguns deles.

Passava férias naquela zona da Beira, quando era novo. Aquele Querido Mês de Agosto tem um lado afectivo forte?

Sim. Tenho lá uma casa de família, o meu bisavô era daquela zona e desde pequeno eu ia para lá, gostava muito do rio e de ver passar os carros de bombeiros que iam combater os incêndios. Conheço bem a região. Na adolescência ia às festas, sempre tive um fascínio pelos bailes populares. Dão-me para a melancolia, acho que tem a ver com as colunas de som. O som é sempre mau, os músicos, por vezes, também... Há uma coisa que eu não pus no filme: uma família em palco com um bebé de meses ao lado de uma coluna a segurar numa pandeireta e a chorar. A mãe era a vocalista e às tantas, deixou de cantar e foi dar de mamar à criança atrás do palco.

A música popular, agora dita "pimba", é um dos seus "guilty pleasures"? O título do filme vem de uma canção de Dino Meira...

O Dino Meira era uma espécie de papa dessa música, que tem muitos subgéneros, eles vão-se especializando: há sempre a mulher traída, que fica com a Ágata... Mas a música de baile está a sofrer uma mudança que não me agrada muito, está a ficar influenciada pelo imaginário da MTV, as cantoras começam a imitar a Shakira. E a música está a perder aquilo que me agradava nela. Eu gosto de música de baile e de ambientes de música de baile, e queria aproximar o filme do registo do melodrama. Por isso, pus a banda a tocar músicas românticas. Um dos seus grandes expoentes é o Marante, que aparece a certa altura. Ele tem uma música famosa, Som de Cristal, sobre um tipo que passa a vida num bordel e certa noite vê chegar a mulher, que se cansou de esperar em casa por ele e tornou-se prostituta. Isto tem a ver com o melodrama, que é sempre um bocado absurdo. Mas o que eu gosto no melodrama é que é surreal, está num patamar diferente da realidade. No meu filme, o melodrama é alimentado por esta música romântica, que está à escala da história e do sítio onde se passa.|

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