Marco Chagas. Foi um dos melhores ciclistas portugueses de sempre mas diz que só Joaquim Agostinho está ao nível de Eusébio ou Cristiano Ronaldo. Ao fim de 18 anos de profissão, traça o retrato do ciclismo em Portugal e lembra os momentos mais insólitos, dolorosos e felizes..José Azevedo vai ser o vencedor da Volta a Portugal deste ano?.É o grande favorito e ele próprio tem esse objectivo. Mas há outros nomes fortes, nomeadamente o David Blanco (vencedor da Volta a Portugal em 2006) e o Cândido Barbosa. Há equipas muito apostadas numa vitória, como a Ribeiralves - Boavista e a Duja - Tavira. Mas do estrangeiro também pode chegar o vencedor..Comparando com o seu tempo pode dizer-se que a organização da prova melhorou muito?.Muito. Ao nível da organização não estamos muito atrás da Volta à França. Essa melhoria foi clara a partir do momento em que a organização está a cargo de profissionais. Por outro lado, a qualidade dos pisos melhorou muito..O que vale em termos internacionais a Volta a Portugal?.Tem alguma projecção. Não a que gostaríamos e essencialmente por dois motivos: é uma prova demasiado longa, o que afasta à partida as grandes figuras, e, depois, realiza-se em Agosto, um mês de muito calor, o que também afasta muitos ciclistas..Não há maneira de corrigir esses problemas?.É muito difícil. A Volta é o grande acontecimento desportivo do Verão, mas só é assim porque o futebol ainda está relativamente parado nessa altura. Quando há bola, o resto não conta. Em Portugal é bola, bola, bola..O futebol é importante em Itália, França, Espanha, onde se realizam as três maiores Voltas....É diferente. Se a nossa Volta fosse em Abril ou Maio, altura em que muitas vezes se está a discutir quem vai ganhar o campeonato de futebol, a Volta desaparecia..Qual é a etapa mais difícil da Volta e porquê?.Este ano vai ser a penúltima, que é a chegada à Torre. Subir a dois mil metros de altitude é sempre difícil mas ainda mais nas vésperas de terminar uma prova muito longa. Já na minha época subir à Senhora da Graça era duríssimo, provavelmente ainda mais do que hoje porque na altura era um piso de montanha, muito duro. Mas a subida à serra da Estrela será sempre o ponto mais difícil da nossa Volta..Ganhou quatro Voltas a Portugal....As últimas etapas dessas quatro Voltas foram os momentos mais marcantes da minha carreira. Também tive momentos muito felizes a nível internacional, nomeadamente a vitória na Volta à África do Sul e na Volta da Independência, no Brasil, e até na minha participação na Volta à França..Como gostaria de ser lembrado pelos portugueses?.Como alguém que dedicou muitos anos da sua vida a uma modalidade, que tentou fazer o melhor e que foi capaz de fazer amizades por onde passou, nos clubes, nos colegas, nos adversários, nos jornalistas..O seu grande adversário foi Venceslau Fernandes....O Venceslau foi o homem que mais trabalho me deu. Foi um adversário duro..Como é que hoje convenceria um miúdo da cidade a escolher o ciclismo em vez do futebol?.Convencia-o com a bicicleta de montanha. A BTT é uma forma .extraordinária de chegar à juventude, porque há contacto com a natureza, porque há adrenalina, porque é simultaneamente radical e olímpica. A bicicleta está a voltar. Está a passar a fase em que as crianças passavam do triciclo para a motoreta. Hoje, os pais voltam a oferecer bicicletas..Que razões explicam a popularidade que ainda hoje tem este desporto?.É uma modalidade que vai a casa das pessoas. As bicicletas passam nas terras mais recônditas de Portugal. E de graça. O futebol já não é assim. Depois há uma ligação forte das pessoas às bicicletas, que foram as sucessoras das carroças e dos burros..O ciclismo é "o" desporto do povo?.É um dos desportos mais populares de todo o planteta. Perdeu algum peso mas mesmo com transmissões televisivas leva muitas gente à rua. .Há muitos milhões de pessoas que seguem a Volta à França. Que ainda é a grande prova mundial do ciclismo..É um desporto rural?.É um desporto rural, de província, embora hoje já se encontrem ciclistas até com nível universitário..Não era fácil nos anos 40, 50, 60, as crianças das aldeias terem uma bicicleta. É um desporto mais caro do que, por exemplo, o atletismo....Só tinham bicicletas os meninos de famílias ricas. A minha primeira bicicleta foi-me oferecida pelo meu pai quando tinha seis anos, e era do filho de um senhor rico da minha aldeia. A bicicleta já estava no lixo mas o meu pai, com todas as dificuldades e enorme sacrifício, comprou-a e leva-a a reparar na oficina de um amigo. Ficou espectacular. Quando na manhã do dia 25 de Dezembro entro na cozinha - uma cozinha de aldeia - e vejo aquela coisa lindíssima, a brilhar, fiquei sem palavras. Foi o dia e continuará a ser o dia mais feliz da minha vida. Tinha seis anos e sempre sonhara com aquela visão. Mais tarde, com 14 anos, lá consegui arranjar uma outra, "tipo corrida". "Tipo", porque não era legítima. Foi com esforço, até porque já trabalhava desde os 12 anos, numa casa de fotografia..Onde é que arranjou esse sonho?.De um tio, irmão da minha mãe. Chama-se Ramiro Martins e foi ciclista, campeão nacional e esteve até nos Jogos Olímpicos de Roma. Deixou a modalidade com 20 anos. E via-o em casa dos meus avós onde havia sempre o cheiro das coisas da bicicleta..Dos óleos?.Sim e dos cremes para as dores musculares. Era ainda quase um bebé e adorava aquele cheiro a cânfora..Quem o ensinou a andar de bicicleta?.O meu pai. Tinha uma pasteleira ( bicicleta pesada) e, como não tinha altura para andar sentado, metia uma perna por dentro do quadro e depois pedalava..Ainda hoje guarda a bicicleta dos seis anos?.Guardo. Só guardo duas bicicletas .- essa e a última..Os ciclistas têm, é claro, uma relação afectiva com as bicicletas....É uma paixão. Durante 18 anos de carreira ficava doente se não pudesse andar um ou dois dias. Ainda mais no meu tempo, quando era o ciclista quem tratava da sua própria bicicleta. Passei horas a substituir peças, a afinar, a polir. A bicicleta tinha de ficar a brilhar. E algumas já eram bem velhas. Vendia uma para poder comprar outra um bocadinho melhor. Mais tarde as bicicletas passaram a ser oferecidas pelas marcas..A situação mais insólita e desesperante da sua carreira?.Fui mordido por uma abelha na língua, em plena etapa de uma Volta a Portugal. Nessa etapa era camisola--amarela e quando isso aconteceu estava a comer fruta cristalizada. Senti uma dor terrível e uma aflição que nem sei explicar. Em pouco tempo a língua inchou de tal maneira que não cabia na boca. Sempre a pedalar chamei o carro do médico mas o médico não estava. Isto aconteceu no Alto-Douro, com um calor tremendo, e só mais tarde chegou um enfermeiro que me aliviou as dores. Mas nada se compara aos momentos que passei com a morte de Joaquim Agostinho e de um irmão de Manuel Zeferino, um rapaz de 20 anos. No caso de Joaquim Agostinho foi um cão que se atravessou na estrada e no outro caso foi uma queda colectiva..As quedas são o vosso pior pesadelo?.São. As quedas são o nosso pânico. Os corredores querem chegar em primeiro, arriscam ao máximo e muitas das quedas são provocadas por isso..Numa descida, ficou muitas vezes sem travões?.Algumas e é uma sensação horrível. Aconteceu-me em algumas etapas de montanha dos Alpes e dos Pirenéus, na Volta à França. A gente quer, quer, mas aquilo não pára. Felizmente nunca dei grandes trambolhões..O que se faz numa situação dessas?.Descrever muito bem as trajectórias e aumentar o espaço em relação aos colegas. O grande objectivo é conseguir continuar em cima da bicicleta até que a situação melhore. Isso acontece muito com chuva. Com piso seco a bicicleta é o veiculo mais seguro do mundo. Com chuva o caso muda de figura e podemos passar por situações de desespero..O ciclista tem de aliar resistência a velocidade. Nesse sentido é um desporto completo?.É, porque um sprinter tem de ser mais do que isso, e a resistência por si só também não chega. Os portugueses são mais resistentes que rápidos, mas em todas as gerações têm aparecido um ou dois bons sprinters mesmo a nível internacional, como é o caso do Cândido Barbosa.|