"Corrigi quadros de Van Gogh, o que é indesculpável para os críticos em Portugal"

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Os jovens pintores vêm-lhe mostrar trabalhos?

Vêm, vêm.

E tem paciência?

Às vezes não tenho, principalmente se sinto que é mau... Lembro- -me de uma situação que me aconteceu e que me deixou extremamente irritado. Veio um rapazinho falar comigo e começámos a conversar. Eu disse-lhe que a pintura é uma coisa muito difícil porque bem via que ele não o conseguia. Mostrara-me um carvão em que pintava o que tinha visto numa revista; era uma cópia muito mal feita. Fiquei um pouco chocado com aquilo e até lhe disse "a mim tem-me acontecido às vezes não conseguir fazer as coisas por ter muita dificuldade em acordar as formas". E aí, ele olhou para mim e olhou para os meus quadros e diz: "Não me admira, até eu tenho dificuldade."

E irritou-se um pouco?

Irritei-me. Estava a tentar harmonizar a conversa para que ele não se sentisse triste, e ele responde-me aquilo! É verdade que tenho quadros sobre os quais até eu próprio digo "não consigo". Neste quadro que está aqui [aponta para um], aquela lua que é preta só foi feita há poucos dias.

Fez uma correcção do original?

Não estava lá a lua preta. Eu tanto olhei para o que estava antes na tela, que concluí que ali faltava qualquer coisa e pus aquela forma. Onde eu acuso Van Gogh é nisso! Era um grande artista mas vivia do subsídio do irmão galerista em Paris e, quase diariamente, fazia um embrulho que mandava para Paris com os quadros que pintava. E noto que muitas vezes não os acabou devido àquela necessidade de ganhar dinheiro, porque frequentemente os quadros eram defeituosos. Eu fiz isso, corrigi alguns dos seus quadros - tive a petulância e o arrojo -, o que é uma coisa indesculpável para estes críticos aqui em Portugal, que me atacaram porque eu fazia isso. Não vou dizer que acertei no que fiz, mas ele caía sempre nos mesmos erros nos seus quadros. Eu olhava-os e era fatal: "Há aqui um erro." Passado uma semana, voltava a olhar para os quadros e observava o mesmo erro: "Não há dúvida nenhuma de que existe aqui uma falta de compreensão e de percepção das leis da matemática." E, por isso, corrigi alguns dos quadros do Van Gogh.

Não sentiu falta da arquitectura e pena de abandonar o curso?

Sinto que nunca fui arquitecto. Eu fazia arquitectura para viver, mas a minha paixão sempre foi a pintura.

Desde sempre?

Sempre.

É curioso, porque aos 18 anos vendeu o seu primeiro quadro para um museu no Porto. Como aconteceu?

Um amigo meu, arquitecto, que era de Lisboa, convenceu-me a apresentar três quadros para uma exposição do SNI. Era uma colectiva com muitos pintores da época. Eu emprestei-lhe os quadros, ele trouxe-os para Lisboa e foram um sucesso. Até houve jornais que falaram nisso, porque um desses quadros foi muito elogiado - retratava a Ribeira no Porto - e foi adquirido por um museu.

Quando está a pintar gosta de silêncio ou ouve alguma música?

Silêncio.

Prefere pintar de manhã, à tarde ou à noite?

Eu pinto a qualquer hora, até de noite. Se me lembro de um quadro onde penso que errei - às vezes até vejo a imagem de outra maneira -, sou capaz de me levantar a meio da noite para ir retocar esse quadro.

Fica muito tempo a pintar?

Eu vou até ao esfalfamento. Lembro-me de estar na água- -furtada em Paris - geralmente tinha muitos quadros no quarto - e, ao levantar-me da cama, a primeira coisa que fazia era olhar para os quadros. Acontecia-me esta coisa terrível, que era olhar para um quadro e dizer "este está errado". E retocava-o. Se encontrasse a solução, acabava por me vestir e ia para o trabalho no atelier de arquitectura do Le Corbusier. Mas, vamos supor o drama de que eu não conseguia encontrar a solução, como aconteceu muitas vezes. Então, olhava para o quadro e dizia "Há um erro, tenho um quarto de hora para corrigir." Se não fosse capaz, já não ia para o trabalho.

Ficava a retocar o quadro até encontrar o erro?

Ficava ali. Passava-se a hora de comer, ao meio-dia, passava-se a hora de sair, às seis ou sete, passava-se a hora de jantar, e eu ainda à procura da solução. Quando saía para comer alguma coisa, por volta das 11.00 ou meia-noite, olhava para o espelho e estava verde e irreconhecível. E então perguntava-me "Mas como é que cais nesta estupidez?" Era um fascínio! Procurava e às vezes não encontrava! Ia para um restaurante, aí por volta das 23.00, e vivia um estado de surrealismo, pois sentia o tilintar dos copos, as pessoas eram anormais, e entrava numa espécie de ascese e num estado irreal de cansaço. Desde essa altura que me acontece isso. Quando chegava ao ponto de ter de sair do restaurante, os meus passos na rua faziam um barulho sobrenatural, e eu estava transformado.

Quando faz um balanço da sua vida, sente-se reconhecido em Portugal?

Acho que sim. Desde a primeira exposição que fiz com esses três quadros que fui muito reconhecido.

Acha que há grandes pintores em Portugal em número suficiente ou existem poucos?

Há poucos.

Porquê?

Porque é difícil ser- -se hipersensível e a natureza está muito bem feita. Um hipersensível sente as relações matemáticas mas, em compensação, é um infeliz porque se a hipersensibilidade é boa para resolver um quadro também é má para a vida em sociedade.

Acha que o Estado apoia suficientemente a arte em Portugal?

Não apoia nada. Mas não acuso ninguém.

Nem depois do 25 de Abril a situação mudou?

Não, não há apoio. Depois do 25 de Abril há apoio para os que são da cor política.

Actualmente não se preocupa com a situação política ou acompanha o que se passa?

Não me preocupo nada com o que se passa na política.

E vota?

Voto. Mas é pelo sujeito e não pelo partido. É pelo homem. Já votei, por exemplo, em Cavaco Silva, porque me pareceu um homem correcto. Mas também já votei noutros, que são contrários, porque me pareceram homens correctos. Já não vou pelo partido, vou pelo indivíduo.

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