"Com o crioulo não vamos longe, não saímos das ilhas"

Orgulhoso de ser cabo-verdiano, Germano Almeida fala do <em>Do Monte Cara Vê-se o Mundo</em>, romance sobre São Vicente que é também um retrato de um país que tem tanto de africano como de português. Nas línguas, como na sexualidade, explica o escritor
Publicado a
Atualizado a

O seu Do Monte Cara Vê-se o Mundo está cheio de gente de fora, a Yara de São Tomé, o Pepe, que veio de Santo Antão. O próprio Germano Almeida nasceu na Boa Vista. Porque atrai tanto São Vicente?

São Vicente nasceu através das pessoas levadas das outras ilhas. Só começou a ser povoada a partir de 1830, quando os ingleses decidiram transformar o Mindelo num porto carvoeiro. Até àquela altura, São Vicente era um campo de pastagem dos proprietários do Fogo e de São Nicolau. Levavam o gado e no fim iam tirar as peles, fazer a chacina. Aliás, é uma coisa interessante que a escravatura terminou oficialmente em 1876, mas em 1854 ou em 1856 os ingleses já tinham exigido a Portugal acabar com a escravatura em São Vicente.

Quer dizer que não há ninguém que não tenha memória de um avô ou bisavô de outra ilha?

Não, não há. São Vicente é feita com gentes levadas de Santo Antão, de São Nicolau, grande parte também da Boa Vista, mas também das outras ilhas, isto porque nasce numa conjuntura em que Cabo Verde está a atravessar uma grande crise. Por um lado, a questão de as pessoas a verem como local onde conseguem trabalho. Por outro lado, a questão de as pessoas chegarem à ilha e passarem a ser livres. A escravatura acabava lá.

Ao mesmo tempo, São Vicente é terra de emigrantes. No livro percebe-se isso quando fala que Marcos partiu e que também o filho Marquinhos emigra. É este o sonho do cabo-verdiano, procurar fora a riqueza que falta lá?

Querem é um meio de vida, a sobrevivência. Têm a consciência de que as pessoas viverem em Cabo Verde é difícil. E há alturas em que é quase impossível. Enquanto as pessoas vão conseguindo sobreviver nas ilhas, vai-se aguentando. Mas há situações em que é complicado. Então surge a emigração, essa hipótese de salvação. É evidente que com o tempo a emigração se foi transformando numa segunda natureza do cabo-verdiano.

No livro fala da Holanda, destino habitual para os cabo-verdianos, mas depois Portugal aparece referido como "afinal de contas a guarida de tudo que foge de Cabo Verde". Que relação é esta?

Portugal é quase continuação da casa. E mesmo tantos anos depois da independência. Acho que é a língua, que aproxima os povos. Na Holanda sente-se que se está no estrangeiro. Em Portugal não.

Uma das personagens, D. Aurora, diz que em casa só se falava português, mas que isso era malvisto pelas pessoas, para quem o crioulo é que merece andar na boca de toda a gente. Como conciliam os cabo-verdianos o português e a língua nascida no arquipélago?

Dificilmente se encontra um cabo-verdiano que não entenda alguma coisa de português. Pode não entender na perfeição, pode não falar, mas entende. Claro que a língua de Cabo Verde é o crioulo. A vida decorre em crioulo. Mas o português não é língua estranha. Eu falo 95% em português. Os meus filhos 95% em crioulo. E entendemo-nos.

Mas a escola aposta no crioulo...

Eu sou defensor do ensino do crioulo rigoroso, mas o português tem de ser ensinado como uma língua estrangeira, porque não é a nossa língua nacional. Considero muito importante a nossa gente saber falar português bem. Tem-se tentado diversas experiências. Uma delas é começar por alfabetizar em crioulo para depois transbordar para o português, de forma a que as pessoas não sintam que o português é uma língua estranha. As nossas crianças nascem a falar crioulo e só contactam com o português na escola. E para a grande maioria isto é um traumatismo.

Mas não perdem muito os cabo-verdianos se desistirem do português, língua que é também deles?

Eu acho que nos perdemos. Tenho insistido na necessidade de nós em Cabo Verde dominarmos o português até mais do que os portugueses. Porque nós com o crioulo não vamos longe, não saímos das ilhas. Com o português vamos para Portugal, para o Brasil, para Angola.

Essa ideia tem adeptos ou existe ressentimento com Portugal?

Sim. Algumas pessoas dizem que sou um traidor por achar o português tão importante como o crioulo. Eu digo está bem vou continuar. Mas a verdade é que defender o português é ideia que ganha adeptos, felizmente. Por exemplo, há quem defenda o ensino universitário em crioulo e isso é absurdo.

As pessoas em Cabo Verde leem sobretudo em português?

Sim. Ninguém vai traduzir Eça de Queirós em crioulo.

Usa palavras do crioulo no livro, como crau (relações sexuais) ou catchor de lantcha (cão vagabundo). Sente necessidade destas palavras na boca das personagens para lhes dar mais autenticidade?

As pessoas podem pensar que ponho isto à força, mas não. Conto uma história em português, mas sou cabo-verdiano e há expressões que só me fazem sentido em crioulo. Por exemplo, catchor de lantcha, eu não saberia traduzir. Posso pôr "és um malandro", mas...

Quando fala é assim que lhe sai?

Até há gente que diz que eu não sei falar português. E escrever. Porque essas coisas me saem. Mas eu digo sempre que sou cabo-verdiano.

O pano de fundo do romance é São Vicente, mas nele destaca-se a história de amor de Júlia e Pepe. Porém, o sexo está omnipresente. Faz parte da maneira de ser dos cabo-verdianos a sensualidade?

Encaramos o sexo com naturalidade. Faz parte da vida. Como dançar e comer. Cheguei a pensar que era da herança africana. Depois descobri que era também da europeia. Apanhámos dos dois lados.

Cabo Verde é tido como um país modelo. Merece tantos elogios?

Há tempos brinquei com um texto de Obama que dizia ser Cabo Verde exemplo para a democracia no mundo. E eu disse "até para a América, que não é nada democrática". Quando olhamos para os outros e para a nossa fraqueza inicial, temos de admitir que se fez um bom trabalho. Nós cabo-verdianos achamos que se podia fazer melhor.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt