"As novelas brasileiras perderam interesse"
Mais uma temporada em Portugal, coisa que faz com grande regularidade. O Aguinaldo já é quase tão português como brasileiro...
É. Eu já tenho o meu roteiro particular de lisboeta. (risos) Não é um roteiro de turista, já é quase de cidadão. Já sei onde devo ir, que locais frequentar, que restaurantes devo visitar, etc. Na verdade, eu pretendo viver aqui. E é uma ideia cada vez menos remota.
Porque tem casa cá, certo?
Sim, tenho casa no Castelo [perto do Castelo de S. Jorge, em Lisboa] há quatro anos. Quando resolvi que iria comprar uma casa aqui, apesar de os meus amigos me terem recomendado Cascais, eu disse que queria ficar no lugar mais lisboeta possível.
O que é que o atrai tanto em Lisboa?
É uma das três cidades mais bonitas do mundo. Flanar aqui, como diria o Eça, é um privilégio. É de ficar maravilhado. Cada praça, cada recanto, cada beco, cada ladeira é sempre muito bonito. Às vezes, muito maltratado, mas sempre muito bonito. Gosto muito disso, do facto de a cidade ser muito bonita.
Sendo um homem da TV, estando cá em Lisboa tantas vezes, como é que nós nunca tivemos cá, na televisão portuguesa, nada feito por si, a não ser, claro, por intermédio da Globo? Nunca foi convidado?
Olhe, na verdade, eu já fui convidado. Acontece que eu tenho exclusividade com a Globo. E a Globo não me permite escrever para qualquer outro canal de televisão.
Mesmo sendo fora do Brasil?
Mesmo sendo fora do Brasil. Numa dessas ocasiões em que fui convidado chegou a haver uma negociação, ao jeito dos velhos estúdios de Hollywood: eu viria trabalhar por empréstimo, como os jogadores de futebol. Mas a negociação nunca chegou a avançar. Em boa verdade, ela não terminou. Está suspensa.
Mas, com o acordo SIC/Globo, talvez fosse algo relativamente fácil...
Sim, talvez. Acredito que sim. De qualquer forma, o meu contrato com a Globo acaba em Junho de 2010 e aí, provavelmente, eu estarei livre para novas ofertas.
E não lhe agrada a ideia de renovar esse contrato com a Globo?
Eu estou na TV Globo desde 1978. Antes disso, eu estive no jornal Globo, como jornalista, durante oito anos. Tenho a impressão de que é um vínculo muito longo. Eu gostaria de acordar um dia e pensar: "Hoje, eu não estou na Globo." Para ver o que acontece.
Não tem medo desse desconhecido?
Nada. Primeiro, porque eu gosto muito de desafios. Já não tenho idade para isso, mas gosto. Além disso, eu preparei-me para isso. Normalmente, eu divido os autores de novelas em cigarras e formigas. As cigarras gastam todo o dinheiro dando jantares com os actores. Eu não, eu sou a formiga.
Está na Globo há 31 anos, uma vida. Vê-se a escrever para a Rede Record, por exemplo?
Não sei, é difícil. Mas não é por essa razão. É que no caso da Record há várias questões ideológicas a resolver. Eu não concordo com vários pontos de vista do braço financeiro da emissora, que é a Igreja Universal [IURD].
Sim, mas haverá, seguramente, muita gente a trabalhar na Record que não pertence à IURD.
Sim, mas, no meu caso, eu sou um autor de novelas que busca sempre ir além dos limites. E isso criaria sempre problemas...
E é um autor muito activista, muito político, ainda por cima...
Exactamente. Teria de pensar muito. Não descarto, mas teria de pensar muito.
Como é que tem visto este crescimento da Record no Brasil?
Apesar dessa questão ideológica, com muita alegria. Porque eu tenho de pensar no mercado de trabalho. Por causa da Record, a ligação entre a Globo e os brasileiros nunca mais será a mesma. A Globo não voltará a ter nunca mais aquelas audiências estrondosas de 60 pontos, que já teve. A audiência vai ser muito mais fragmentada.
É o que se passa aqui, aliás...
E isso é muito bom. É um sinal de maturidade do mercado. E para a Globo também vai ser bom, porque vai obrigá-la a ser mais criativa e mais ágil. Porque naquela casa ainda trabalham os melhores profissionais. É só colocar aquela gente a trabalhar...
A sua última novela foi Duas Caras. Mas confesso-lhe que tenho imensas saudades da sua Pedra sobre Pedra. Acho que foi uma das suas melhores novelas. Aquele amor do Murilo Pontes [Duarte Lima] e da Pilar Baptista [Renata Sorrah] é um ícone...
Era uma grande história, de facto. Fico contente por você dizer isso.
Este declínio da ficção da Globo (e não vale a pena negar, é mesmo um declínio. Cá e lá...) tem a ver só com o facto de a Record ter começado a trabalhar bem na ficção ou pelo facto de há muito tempo não haver uma grande história de amor como a de Murilo Pontes e Pilar Baptista?
Curiosa essa pergunta. É assim: eu não fujo à responsabilidade. Eu acho que os autores de novelas se tornaram muito burocráticos. Eu incluo-me também aí, naturalmente. Cada autor começou a repetir os seus estilos. Cada autor faz sempre a mesma novela.
E isso era inevitável?
Não, acho que não. Nós deveríamos ter ousado mais, ter perdido o medo de errar. A própria Globo tem tido esse medo, de perder audiências.
Mas essa preocupação está sempre subjacente ao vosso trabalho. Vocês sabem que o Ibope [instituto de sondagens brasileiro, equivalente à nossa Marktest] é lei...
Sim, é verdade, mas a novela é uma obra aberta, você pode sempre fazer mudanças a meio da história. Há tempo para isso. A época das grandes novelas da Globo, na verdade, foi anterior a mim. Foi quando escreviam lá Dias Gomes [O Bem Amado, Roque Santeiro], Lauro César Muniz [O Casarão, O Salvador da Pátria]. Esses autores eram grandes escritores brasileiros que foram convocados pela televisão. Havia rasgo, havia ousadia.
Mas há quem defenda que hoje na televisão está tudo inventado...
Acho que não, acho que não. Por exemplo, no caso da televisão portuguesa, eu acho que as novelas atingiram um patamar muito alto. Produção, direcção, texto. E os actores portugueses têm já uma representação muito naturalista. Mas a novela portuguesa não vai existir como um factor de mobilização nacional em Portugal, como foi no Brasil, enquanto não se fizer um Roque Santeiro português. Ou seja, uma novela que fale do Portugal que está no inconsciente colectivo. Um Portugal que todo o mundo sabe que existe, mas que não se vê nas novelas portuguesas.
Qual é esse Portugal?
É o Portugal profundo, o Portugal rural. Todo o mundo aqui tem um pé na aldeia. Mesmo os alfacinhas. Falta esse Portugal nas novelas portuguesas. E não estou a falar de cor, eu vejo muitas novelas portuguesas.
Qual é a que segue?
Eu procuro ver todas. Gosto muito da novela do Rui Vilhena, Olhos nos Olhos. Gosto menos da que a antecede, a Flor do Mar. Acho menos interessante, embora ela busque exactamente essa ruralidade na Madeira.
E esse Portugal ainda existe mesmo ou esse é o Portugal que os brasileiros acham que existe? O senhor Manoel da padaria... Se calhar, nós portugueses já não nos revemos assim...
Acho que é ao contrário. (risos) Esse português existe e tem de ser situado numa trama que mobilize as pessoas. O que acontece nas novelas portuguesas é que esse português aparece como elemento de humor. A novela tem cenas profundamente dramáticas e depois entra o Manoel da padaria, que faz uma piadinha. É preciso perceber que o Manoel da padaria tem alma, é uma personagem com densidade. Eu há pouco tempo vi uma coisa que me deixou maravilhado: um vídeo dos Gato Fedorento em que aparecia uma personagem criada por eles chamada Gajo de Alfama. Quando eu a vi, disse: "Eu escreveria uma novela com essa personagem." Porque essa personagem poderia ser a protagonista de uma novela. Tão portuguesa, tão verdadeira. Falta essa verdade nas novelas portuguesas.
Acho interessante essa sua visão. Não estou é seguro de que os portugueses queiram ver novelas com um português que eles não querem mais ser. Durante anos, este país era só esse país. Hoje, os portugueses gostam de pensar que são cidadãos do mundo, que viajam, que falam línguas, que são instruídos, que podem ser como os outros da Europa...
É, mas têm origens. E essas origens têm de ser bem contadas. Envolventes.
O que é certo é que os portugueses gostam das novelas que se fazem cá e as da Globo têm cada vez mais dificuldades. Acha que o facto de a Globo se ter obrigado, pela concorrência interna, a dar um cunho mais brasileiro ao seu produto tornou as novelas menos apetecíveis para o mercado externo, uma importante fonte de negócio para a empresa?
Acho que não. Um dos meus maiores sucesso é uma minissérie chamada Tenda dos Milagres. Ela passa, pelo menos, uma vez por ano em algum canal da Alemanha. E é uma história baiana, sobre a resistência da cultura negra do Brasil depois da libertação dos escravos. É um tema muito específico, muito brasileiro, e os europeus adoram ver. Portanto, eu acho que não foi isso que tornou as novelas brasileiras menos interessantes. Mas temos de ser honestos. As novelas brasileiras perderam interesse. Há muito tempo que não se faz no Brasil uma grande novela. A Senhora do Destino foi uma boa novela minha, mas tenho consciência de que as minhas novelas rurais [Pedra sobre Pedra e Indomada, por exemplo] eram bem mais impactantes.
A tentativa de dar mais realismo à novela brasileira (mais criminalidade, mais cidade, mais dramas sociais) não acabou por ser contraproducente?
Talvez. Acho que sim. Há muito compromisso social nas novelas de hoje. E muito pouca imaginação.
Mas é conciliável mostrar as favelas do Rio e a delinquência das grandes cidades com a magia das novelas?
Não sei se é conciliável. Acho que os autores de novelas brasileiros deviam voltar a ler Charles Dickens. Porque ele fazia isso. Ele retratava a mais brutal realidade do começo da era industrial. Temos de voltar a lê-lo. E deixar de pensar na medalha que vamos receber da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro.
O Aguinaldo tem 65 anos, o Manoel Carlos tem 77...
... sim, somos os dois dinossauros da Globo.
Pois, e não há volta a dar ao avanço inexorável do tempo. Por isso lhe pergunto se é reversível este caminho de declínio da Globo. Os autores mais novos da Globo podem inverter esta tendência?
Sim, acho que sim. É preciso muito mais criatividade. A melhor época da Globo foi quando se criava. Todo o mundo criava, pensava. Depois é que veio a burocracia.
Mas quando não se tem concorrência é mais fácil parar para pensar...
É verdade. Mas eu acho que há uma certa timidez nas decisões da empresa sobre o que deve ou não ir para o ar.
Timidez? Ou será medo de errar e perder audiências?
Estou a ser delicado, como já percebeu. Estou a usar a palavra por delicadeza. Mas você está certo. É mesmo medo de errar. Porque em televisão as decisões têm de ser rápidas, embora eu perceba algumas dúvidas. Se uma novela não dá certo, você fica com um cadáver ambulante no ar durante seis meses. Isso está a acontecer com cada vez mais frequência. E isso é preocupante.
Negócio da China chega ao fim no Brasil e foi um flop. Caminho das Índias não descola nem lá nem cá?
Isso mesmo. Acho que está na altura de parar para pensar.
A Globo já vos chamou para discutirem em conjunto o decréscimo das audiências das novelas?
Durante muitos anos isso não aconteceu. Agora, sim, eles têm feito isso. É preciso voltar a trabalhar na criatividade.
Durante anos, as nossas novelas foram a reboque das brasileiras. Curiosamente, hoje os portugueses estão a rejeitar uma novela da Globo que mostra a Índia, um ano depois de os mesmos portugueses se terem apaixonado pela Índia numa novela portuguesa (Fascínios)...
É, é incrível, não é? E agora, como é evidente, acham que já viram aquilo uma vez e que não precisam de ver mais.
A televisão continua a ser o melhor veículo de divulgação de culturas, de normas de convivência social, de respeito pelos outros?
Ah! Sem dúvida! Não sei se será o melhor veículo, mas é o mais utilizado. É o mais imediato. A televisão obriga o espectador a assimilar comportamentos e a encará-los com maior naturalidade. Essa é a grande magia da televisão e das novelas.