Este romance decorre no tempo que vai da independência de Angola até à actualidade. São 30 anos que se assinalam no próximo dia 11. Foi um livro de balanço histórico?.É quase uma coincidência. O livro aborda a ascensão de uma personagem-tipo, alguém que representa um grupo social que começa a aparecer a partir da independência. São os últimos 30 anos da vida de Vladimiro Caposso. Ele é o pretexto para contar a história do país. Mas não tive essa preocupação, até porque normalmente nem me lembro de datas. Este livro surge por eu achar que era tempo de tratar o aparecimento e a ascensão de uma nova burguesia..Fala de uma geração imediatamente pós-Geração da Utopia [1992]. Em que é que difere da anterior?.Esta é uma geração que já não tem ideais. A outra - que é a minha - tinha e lutou por eles, apesar de ter cometido erros. Mas pretendia fazer coisas. Caposso só pensa nos seus interesses e utiliza os meios à disposição, com muita habilidade, para construir uma riqueza enorme. A grande questão que se põe é a de saber se essa riqueza serve ou não o país..Como é que surgiu esta personagem que encarna uma série de características de uma classe social, a nova burguesia de Luanda?.A personagem é fictícia, mas há muita gente parecida ou que percorreu caminhos paralelos. Não tive intenção de seguir alguém. Nunca faço isso. Prefiro inventar e ficar aquém da realidade. Mas não há invenção no que se refere à situação económica e social do país. .Com este livro regressa ao chamado romance clássico depois de dois policiais. Chegou a dizer que essa incursão nos policiais era uma forma de tentar captar novos leitores. Acha que conseguiu? Tem hoje mais leitores?.Acho que sim. Houve muitos jovens que leram esses livros e se interessaram depois por outros que eu tinha escrito. O policial atrai. Hoje em dia, um filme, um livro, qualquer coisa tem de ter, um pouco de suspense e, infelizmente, um pouco de violência associada. Eu evito um pouco isso. Os meus policiais são soft nesse aspecto....Este romance começa com um crime, o que pode indiciar uma continuação desse género, mas depois....Foi uma provocação ao leitor. Uma ou duas páginas depois aviso que este não é um livro policial. .A dada altura lê-se que o nome não interessa nada, mas o que é certo é que para si há nomes que interessam muito. Como é a sua relação com os nomes das personagens?.É conflituosa. Às vezes os nomes têm significado Vladimiro Caposso, Jaime Bunda, Luéji [nomes de protagonistas de livros seus]. Quase sempre é o primeiro nome que me ocorre, mas acontece a meio do livro mudar o nome de alguém. Quando a personagem me faz lembrar um nome, eu mudo. Há personagens que, ao se desenvolverem, exigem determinado nome. Hoje é tão fácil mudar! .Um dos aspectos mais curiosos neste romance é o modo como Vladimiro Caposso e Angola vivem a religiosidade, entre muita hesitação... .De um modo geral o povo angolano é religioso, qualquer que seja a religião e, às vezes, com religiões associadas. A Igreja Católica diz que metade dos angolanos são católicos. Só que boa parte desses católicos também acreditam noutras coisas, têm crenças que lhes vêm das tradições. Todos se protegem mais ou menos com a religião católica e com certas manipulações. É forçoso que a literatura angolana toque muito no aspecto da religiosidade. E há fenómenos novos associados, famílias que acusam crianças de serem feiticeiras. É uma coisa que tem chocado e está a gerar muitas discussões. .Foi por isso que transportou o tema para o livro?.Sim. É actual. Algumas crianças são mortas, outras abandonadas, violentadas, porque são vistas como feiticeiros, como uma justificação para males que ocorrem. Antes era com adultos e estava quase sempre associado a invejas ou vinganças. Uma criança estaria isenta disso. É um aspecto novo da religiosidade..Que inclui o culto ao líder....Faz parte. Segundo as crenças tradicionais, o chefe fazia a ligação entre o sobrenatural e a sociedade. Os nossos Estados são modernos, as pessoas têm formação universitária, mas o modo como o povo vê o chefe está ligado ao tradicional. É fácil, nestes países, cair-se no que se chama o culto da personalidade..É uma barreira à democratização?.Claro. Porque se tem medo de criticar o chefe e, sobretudo, as pessoas que estão à vota do chefe têm medo de tomar iniciativas porque não sabem se o chefe vai apreciar ou não. O melhor é não tomar iniciativas porque ele pode zangar- -se. São barreiras que existem e que estão ligadas à religiosidade tradicional, à maneira de ver o mundo. .Ao longo do livro o autor vai estabelecendo um diálogo com o leitor e confessa o gosto pela inverosimilhança, o que tem a ver com o dosear de realidade e ficção. É pelo efeito surpresa?.É para abanar o leitor, para que não adormeça aborrecido. A intenção é provocar. Com a inverosimilhança ou com a chamada de atenção, ou de outra forma qualquer. Noutros livros foi, sobretudo, a brincar com os narradores. .Mantém aqui a ironia, ainda que mais contida..Não consigo escapar. É um traço nacional, do povo angolano. .Esse traço contagia a sua linguagem, o modo como usa a língua portuguesa. .A minha linguagem é muito próxima do português padrão, mas de vez em quando há umas fugas. A elite angolana tem dois registos de linguagem. Se estamos em Portugal, falamos de uma maneira, se estamos lá, entre amigos, falamos de outra. Não gosto de usar demasiado certas formas de calão, expressões que não me dão garantia de sobrevivência dos livros..Porque são muito datadas?.É. Tento usar só aquilo que tenho a certeza que se irá manter, que é estrutural, uma linguagem que daqui a vinte anos um falante de português normal possa ler.As línguas estão sempre a evoluir, a serem interferidas. É um problema que se põe ao escritor que tipo de linguagem usar, mesmo quando são as personagens a falar, senão há tantas notas de fim de página... .Numa entrevista ao DNa em 2002, confessou que já raramente se surpreende com o que escreve, mas que sempre que isso acontece abre uma garrafa de champanhe. Abriu muitas garrafas de champanhe enquanto escreveu Os Predadores?.Eu já bebo pouco champanhe. Mas apeteceu-me em alguns momentos da escrita deste livro..Por exemplo?.A descoberta da Mireille [filha mais nova de Caposso] surpreendeu-me. A maneira como evolui no romance. Foi uma personagem que me escapou completamente e quando percebi, deixei-a seguir o seu caminho. Gosto quando uma personagem faz partidas destas. .Em A Parábola do Cágado Velho (1997) indicava uma esperança no futuro de Angola. Em Predadores, a decadência recente de Caposso é um sinal de que a esperança se mantém?.A esperança vem mais dos mais jovens. As leis já estão feitas e tenho esperança de que se comece a obrigar a cumprir certas regras e a fugir um bocado do capitalismo selvagem que existe hoje. .Ainda existem Vladimiros Capossos?.Sim, e que não estão em queda. .Que balanço faz destes anos de independência?.Houve um reforço da nação angolana. Angola conseguiu resistir a uma série de forças centrífugas que a queriam destruir. É o aspecto mais importante. Outro aspecto tem a ver com a formação. Há uma elite que não havia na altura da independência. De resto, quando se começa a fazer o balanço, a coisa é um bocado negativa. Trouxe sempre a experiência... Acho que as novas situações levam sempre os homens a cometer erros. .Num país onde um livro custa cerca de um terço do salário mínimo, qual é o papel do escritor?.Há poucos que podem comprar livros e poucos que podem ler porque as bibliotecas quase não existem. Mas o que o escritor tem a fazer é chamar a atenção, levar as pessoas a reflectir sobre certas coisas. Penso que esse é o papel do filósofo. O escritor, no fundo, é um filósofo... Ou então inventar mundos que não existem, mas baseando-se na própria realidade. O Tol-kien não criou um mundo assim tão diferente da terra, ou dos regimes que apareceram na terra desde que o homem existe. .O que está a escrever, voltou ao Jaime Bunda?.Não. É provável que volte, mas vou deixar passar mais tempo. Ando só a tomar notas, mas para qualquer coisa diferente deste e do Jaime Bunda.