"Ainda durmo com máquina à cabeceira"

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Cabelos brancos longos. Figura alta e esguia de contrastes que passeia casacos coloridos com uma Nikon ao ombro. Analógica, sempre. Digital não faz parte do seu vocabulário. João Pestana é personagem da cidade do Funchal. Daquelas que se fundem na vida urbana por direito próprio e que todos os dias cruzam o nosso campo de visão nos cenários de sempre. Há muitos anos que regista em película a vida da ilha.

"Eu nunca tenho idade", diz. Aprendeu a arte com "gente que sabia". Prepara, neste momento, uma exposição em Espanha e outra nos Açores. O abstraccionismo e o figurativo misturam-se. Mas nem sempre foi assim. O interesse pela íris da máquina, pela impressão do momento, acontece, ainda, nos primeiros tempos de liceu. A fotografia, por via da família Vicente, pioneira do ofício no início do século XIX, fez escola na Madeira. João Pestana é a prova de laboratório. Ingressa nos serviços de topografia e geodesia da autarquia funchalense. Em Julho de 1963, faz a sua primeira exposição com carácter profissional. Nas décadas de 50 e 60 integrou o grupo de fundadores do Cineclube do Funchal, associação considerada "subversiva" pelo Estado Novo, do qual Herberto Helder fez parte enquanto viveu na Madeira. Ligado ao Cineclube cria-se o primeiro grupo de Teatro Experimental do Funchal onde Pestana interpretou quatro peças - O Doido e a Morte (Raul Brandão), A Cantora Careca (Eugène Ionesco), O Urso e Um Pedido de Casamento (Anton Tchekov) -, entrando ainda em vários filmes rodados na ilha, como actor, assistente de realização ou de produção. Trabalhou com o director de fotografia Jean Rabier em Ilhas Encantadas, de Carlos Vilardebó, rodado na Madeira (1964), para António da Cunha Telles. Conheceu então Amália Rodrigues (protagonista do filme) e o fotógrafo Augusto Cabrita. Em 1961 já tinha colaborado em Ribeira da Saudade, de João Mendes. Mas é a fotografia que impera na vida deste homem para quem "não basta pegar na máquina e disparar". João Pestana bebeu cedo o sentido do enquadramento, o que era medir uma luz olhando para o céu.

"Ainda hoje durmo com a máquina à cabeceira. Fui aprendendo as técnicas com quem sabia. A fotografia é ver, sentir as coisas e guardá-las. Agora com o digital a pessoa não pensa... A fotografia tornou-se uma questão técnica. Deixou de valer mil palavras porque pode ser manipulada, enxertada." Neste ponto diz-se próximo de Eduardo Gageiro, "um amigo muito especial". Recorda, ainda, as "conversas" com Acácio d'Almeida - "um grande mestre de fotografia".

Não faz ideia de quantos negativos possui. Nem guarda o que publicou no jornal A Capital e na revista Flama. No início dos anos 60 recebeu convite para realizar um "documentário cinematográfico" sobre a gente ribeirinha de Câmara de Lobos para se "mostrar a Salazar". O material foi enviado para um laboratório Ulysseia em Lisboa, alguém credenciado levantou o negativo. "Nunca vi o que filmei. Deve encontrar-se na Cinemateca, uma vez que esta recolheu os materiais existentes nos estúdios da Ulysses e da Tobis, onde o meu amigo Cunha Telles, foi, a certa altura, director." |

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