"A sociedade portuguesa está a 'berlusconizar-se'"

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Na coluna do "mais" da sua actividade de produtor, exibidor e distribuidor, Paulo Branco tem dois filmes a competir no Festival de Locarno (um deles, Body Rice, é a primeira longa de Hugo Vieira da Silva); levará Transe, de Teresa Villaverde, ao Festival de Toronto (Setembro); será membro do júri do Festival de Veneza (também em Setembro); tem em produção, pós-produção ou preparação, filmes como A Outra Margem (Luís Filipe Rocha), A Meu Favor (Catarina Ruivo), Mal Nascida (João Canijo) ou O Capacete Dourado, de Jorge Cramez; ou ainda um projecto de dez curtas baseadas no livro Sonhos de Sonhos, de Antonio Tabucchi, feitas por realizadores portugueses.

Na coluna do "menos", constam o fecho do complexo de salas do Freeport de Alcochete, do Ávila em Lisboa e de salas no Porto e outras cidades; ou o fim da sua longa relação profissional com Manoel de Oliveira.

Falando na véspera da partida para Locarno, o produtor frisou ao DN que se vive em Portugal um momento paradoxal. "Há filmes portugueses a ter reconhecimento internacional, assinados por realizadores de uma nova geração, mas está-se numa altura das mais críticas quer em termos de produção, quer de perspectivas para os operadores da indústria cinematográfica, na produção, exibição e distribuição. Isto não tem a ver só com a chamada crise nacional. É algo mais endémico, porque representa o prolongamento do desinteresse dos poderes políticos em relação ao sector da cultura, o que mais tem sido esquecido". Assim, continuamos "numa situação de precaridade que é crónica. Ainda estamos como há 30 anos, há uma vergonha e um desinteresse para com tudo que é criação cultural".

Os sinais alarmantes vêm de muitos lados, representando aquilo a que Paulo Branco chama "a 'berlusconização' da sociedade portuguesa".

Temos, por exemplo, "as declarações de Alberto João Jardim, que eram um fenómeno praticamente 'madeirense' há poucos anos, e neste momento são um tipo de discurso quase maioritário"; temos "uma invasão do popularucho em tudo"; "um governo socialista que em dois anos de poder não revelou interesse pela componente cultural e artística do País, nem mostrou, no Orçamento de Estado, e como tem acontecido nos últimos anos de bloco central, vontade de chegar a níveis que permitissem fazer algo de estruturante"; temos a maneira "inacreditável como foram renegociadas as licenças das televisões privadas, em completo segredo, sem ninguém protestar ou a opinião pública reagir". E temos Maria João Pires: "Além da enorme projecção internacional que ela nos tem trazido, é líder de um dos poucos projectos de descentralização cultural existentes neste País. E tudo está a ser feito para que parta de vez. Que tristeza!".

Uma lei controversa

Há ainda o estranho caso da Lei do Cinema e do Audiovisual: "Vivemos num regime fora da lei, com uma lei que não está regulamentada e que portanto não existe, e uma antiga que já não existe também", diz Paulo Branco. E segue: "Continuo de pé atrás em relação ao que será uma dos suas vertentes essenciais, o chamado Fundo. Este prevê participações, algumas obrigatórias, da TV por cabo, outras voluntárias, dos canais de televisão, e a obrigatoriedade do Estado entrar com uma percentagem. Mas a orientação do Fundo tende toda para que quem vá decidir a utilização dessas verbas, sejam os próprios participantes. É uma maneira descarada das televisões irem recuperar o que investem e buscar ao Estado, através da participação que nos dizem ser do Ministério da Economia, verbas para produzirem o audiovisual que vemos todos os dias, ou seja, conteúdos sem qualquer valor formativo ou cultural. É um escândalo absoluto."

Aquilo que Paulo Branco chama "a subordinação do poder político à força das televisões" tem também "contornos berlusconianos. "Não estranho que um dos ministérios mais importantes associados a esta lei seja o dos Assuntos Parlamentares de Augusto Santos Silva. Quando ele era Ministro da Cultura, houve uma permissividade total no relacionamento entre o ICAM e as televisões, que retinham a taxa da publicidade e não a pagavam a este instituto a tempo, criando uma situação dramática. Só a intervenção do Procurador da Justiça restabeleceu a normalidade".

E conclui, entre a ironia e a esperança, voltando ao cinema: "Espero que este seja só o lado paranóico da minha análise. É que o facto de se terem sempre conseguido fazer filmes em Portugal é heróico, mas agora já atinge dimensões épicas. Felizmente, é das dificuldades que muitas vezes nasce a qualidade. Não duvido que o cinema português continue a existir. Há 30 anos que o faz, no meio das maiores dificuldades."

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