"A pessoa zangar-se e a pessoa ter raiva faz parte de ser pessoa. Não pode sair por outro lado, sai pelos quadros"

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O maior problema toda a minha vida tem sido a incapacidade de me exprimir frontalmente - dizer a verdade. Os adultos tinham sempre razão: a menina ouve e não responde. Responder, contradizer, era a morte, era cair de repente num vazio terrível.Esse medo nunca me há-de deixar; vêm daí os disfarces infantis, os disfarces femininos. Menina pequenina, menina bonita, mulher atraente. Daí a evasão de contar histórias. Pintar para combater a injustiça». (conversa com John McEwen integrada no livro que este assina, «Paula Rego»).


Esta confissão é um bom introito à obra de Paula Rego. A pintora fascinada com a comédia humana, para quem pintar é desnudar o inconsciente. «As histórias são formas de nos preenchermos, de aliviar o medo». O que ela hoje faz é prosseguir a lengalenga.


As histórias radicam na infância. Remontam ao tempo em que a Avó Gertrudes tinha pintainhos nos bolsos, as empregadas engomavam o colarinho da camisa e logo depois torciam o pescoço às galinhas.Ao tempo em que os verões eram passados na Ericeira, na quinta, com passeios pela praia de mão dada com o pai; o resto do ano era passado na casa do Estoril, e à menina Paula era exigido que aparecesse de luvas brancas na sala.


Um dia, pelos 17 anos, o pai disse-lhe: «Vais-te embora daqui.Isto não é terra para mulheres». Isto era o Portugal bafiento que obrigava as mulheres a terem autorização dos maridos para se deslocarem ao estrangeiro. O pai, engenheiro electrotécnico e anglófilo, ouvia religiosamente a BBC para saber notícias da guerra. A filha foi estudar pintura para Inglaterra. Por lá ficou.Viveu novamente em Portugal entre 57 e 62, com os três filhos ainda pequenos e o marido, o pintor Victor Willing, com quem diz ter aprendido tudo.


A sua primeira exposição data de 65, na Gulbenkian. O que ela pinta desde aí, desde sempre, assenta em jogos provocados pelo poder, pelo domínio, pelas hierarquias: «Dá-me sempre vontade de desalojar a ordem estabelecida». Não espanta, por isso, que Buñuel e Disney sejam os seus realizadores preferidos. E agora também Almodóvar. (Pergunto-lhe se quer o seu contacto, uma vez que tenho um amigo em comum com o cineasta espanhol; ela diz que não, que ia ter imensa vergonha...).


Na pintura fala de Hogarth, sei do seu interesse por Rafael Bordalo Pinheiro, da descoberta de Dubuffet como uma libertação, da impressão causada por Goya. Na sua pintura há as primeiras colagens, depois os bichos, depois a menina e o cão, depois a mulher cão, depois.Pinta com modelo, encena cuidadosamente cada quadro. Do processo criativo, do que a faz pintar, fala-se detalhadamente nas próximas páginas.


Recebeu-nos no seu estúdio na zona norte de Londres. É um espaço amplo que situa imediatamente o universo de Paula Rego. Abundam os vestidos antigos, lindíssimos, os sapatos, os adereços que reconhecemos de diversos quadros. Há o triciclo de quando era pequena. O seu macaco de pelúcia, que pintou recentemente, e que tem a boca cosida, «Como o Hannibal, do "Silence of the Lambs"».Tem ao fundo a cadeira de «Alice no País das Maravilhas», que o seu filho Nic Willing, realizador, usou no seu filme. Deu-a à mãe. Preparou-nos café. Comprara-nos dois bolos, «Comam que são fresquinhos, foram comprados hoje no Marks & Spencer». Mostrou-nos a maravilha do seu mundo de criança inteligentíssima. O tema de partida para a entrevista era a série de oito quadros que pintou para a capela da residência oficial do Presidente da República. Paula Rego respondeu a um convite de Jorge Sampaio, quando este a visitara há uns meses, em Londres. Os quadros, os mais pequenos que já pintou, são uma doação da artista ao estado português.


«É bom que as pessoas percebam que os quadros são feitos com muito gosto e muito respeito. Eu tinha imenso gosto em fazer uma capela: um sítio maravilhoso, uma história extraordinária, um desafio extraordinário. E a pessoa conseguir dar o melhor de si própria... Conseguir fazer com simplicidade e com verdade esta história, uma das mais antigas da nossa História. Estive a trabalhar nisto uns seis meses. Fiz muito depressa. Foi uma sorte, uma inspiração, saiu já feita».
(Falávamos da possibilidade de ter dois gravadores, para o caso de um deles não registar convenientemente a entrevista. Paula comenta:)


Um ouviria a voz que tenho, o outro ouviria a [minha] outra voz.


A propósito dessas duas vozes, logo nas primeiras páginas da «Alice no País das Maravilhas», de Lewis Carroll, Alice diz que muitas vezes se desdobra em duas pessoas.

Um exercício de esquizofrenia?


Imagino que tenha também esses exercícios em que é outra.

Não tenho isso, felizmente. Ou infelizmente. Porque era bom ser outra. Gostava de ser outra pessoa, mas não sou. Estou sempre aqui pegada.


Em que momentos gostava de ser outra pessoa?

De manhã, quando acordo, como na «Metamorfose» do Kafka. Em que alturas gostava de ser outra pessoa? Às vezes gostava de fazer quadros como se fosse outra pessoa.


Para que as histórias pintadas nos quadros fossem outras que não a sua?

Sim. E não é a minha. Os quadros não são a história da pessoa.Um quadro existe sempre em separado. Não é uma expressão, auto-expressão, nada disso. Somos nós que o fazemos porque somos nós que temos a mão para o fazer. Mas um quadro é uma coisa que existe completamente separada de nós.


Porque é que decidiu fazer agora a «Metamorfose»?

Uma amiga minha, a Marina Warner, que é uma escritora muito conhecida, organizou uma exposição chamada «Metamorphing». Convidou muitos artistas a fazerem um quadro sobre metamorfoses. Estava à espera que eu fizesse o Ovídio [autor das «Metamorfoses»].São lindíssimas, as histórias, mas não consegui fazê-las. A minha amiga disse--me: «Ah, mas tenho a certeza que és capaz de fazer um homem-carocha». E eu disse: «Pois sou, porque já o fiz». Em 1953 fiz uma série de homens animais, em que tenho, queira crer, a mulher-cão, o homem-macaco e o homem-carocha.


Nasceu em 35. Pintou isso, que percorre toda a sua pintura, desde as colagens até à fase da mulher-cão (1994), nem com 20 anos.

Estava na escola de arte, tinha uma sebenta e fiz uns desenhos, umas ideias. Estão lá os bichos todos. A gente repete-se constantemente, e não se lembra daquilo que fez há muitos anos. Estavam também o mocho, o pelicano e outros de que já não me lembro.


Por causa da conversa com a sua amiga reuperou isso que tinha desenhado há tantos anos?

Foi. E vi logo o homem com as pernas no ar [no desenho, o genro Tony serve de modelo; o personagem de Kafka está voltado com as pernas para cima, o corpo é humano; não há ainda, senão na posição, que o imobiliza, como às carochas, sinais da metamorfose; a pose é também a das mulheres quando se preparam para parir].


Quando é que leu a obra do Kafka?

Só agora. É uma vergonha dizer isso... Quando fiz a «Celestina» (2000/1), o director do Museu Albert Hall mandou-me uma história do Kafka. Uma história em que o pai humilha muito o filho, e ele acaba por se matar. Fiquei aterrorizada com essa história, e meti-a no quadro da Celestina. Depois comecei a ler outras histórias do Kafka. E, como o Beckett, é tão cómico!, tem um lado muito terrível e ao mesmo tempo um lado cómico. A «Metamorfose» é extraordinária, sendo uma história de todos os dias.


Uma história de todos os dias?

Ele sustentava os pais. Os pais diziam que não conseguiam fazer nada. Ele transforma-se em carocha e não consegue ir ao emprego.Transforma-se num bicho repelente e esconde-se para não ofender a vista dos pais. Todos têm nojo dele. Acaba por morrer e vão todos à vida; os pais habituam-se e têm até uma vida melhor.


A irmã, que ao princípio trata dele, afectuosamente, acaba também por abandoná-lo.

Farta-se daquilo. Mas ainda lhe atira com comida. O que não tem é cuidado com o que lhe dá. Ele, por fim, só come coisas podres.


Ainda antes de ler o livro, pôde ter feito aqueles desenhos onde, no essencial, as coisas já estavam. Também as crianças têm uma sapiência que vão perdendo no correr dos anos.

É verdade. Já via as pessoas como bichos!


Alice está sempre a encontrar bichos, que têm vida própria. Este fascínio pelos bichos e criaturas biformes tem a ver com o momento em que se sentava no cadeirão com o seu pai e viam juntos as gravuras de Gustave Doré para o «Inferno» de Dante? Sentia um misto de fascínio e terror por aquilo.

Tínhamos uma edição muito bonita, um livro enorme, muito pesado.Às vezes o meu pai chamava-me para a sala. Mas muito poucas vezes.Por isso é que era tão especial e tão bom. Mostrava-me. Eu gostava muito. Gostava daquele frisson de ter medo. É uma sensação agradável.


Ficava impressionada com quê?

Não conseguia olhar! Aqueles homens todos enterrados no gelo, com as pernas no ar... Ainda hoje, não consigo olhar para o quadro do Ticiano do Mársias; estão a arrancar a pele e a puxá-la para baixo. É um quadro maravilhoso e não consigo olhar! Faz medo.


Como a imagem em que cortam o olho no filme do Buñuel e do Dalí («Un chien andalou»)?

Exactamente. Não se pode olhar quando é a altura de a faca entrar no olho da menina. Fecha-se os olhos, não é? Quando se vê uma coisa assim, que faz terror ou nojo, fecha-se os olhos.É bom aprender a ter os olhos abertos, para se ver tudo.


O seu amigo e poeta Alberto de Lacerda foi o primeiro a dizer que a Paula pintava para dar uma expressão ao medo. Pintar, contar histórias, é uma maneira de expelir o medo?

É uma forma de enfrentar as coisas que não gostamos de olhar.Foi o Alberto que disse isso, não fui eu. Mas ele é muito esperto e sabe muito bem. Muitas vezes saem coisas das quais temos algum receio, saem sem ser de propósito.


Disse que é bom quando olha para um quadro e a invade um sentimento de vergonha. Vergonha porque se expôs. Mas ao mesmo tempo há uma verdade e uma intensidade nisso.

Às vezes há um lado vergonhoso... É melhor não ir por esse lado...


Então vamos por outro caminho. Fixemo-nos neste quadro da «Anunciação».

Gosto de improvisar. O principal no trabalho é quando nos surpreendemos a nós próprios. Não sabemos o que vai sair, corremos um risco enorme, pode sair tudo mal. Fazemos coisas de propósito para correr um risco ainda maior. É essa luta interna, como se fosse um jogar na roleta, é esse risco que é estimulante. Imagine que num quadro, em vez de pôr a figura no sítio onde fica bem, põe-se no sítio onde fica mal. Começa-se o quadro perversamente errado.Depois, tem de se arranjar uma maneira de acertar. Com o assunto, muitas vezes acontece o mesmo, começa-se ao contrário. É uma ambição, é fazer-se uma coisa que não se consegue fazer. Como um exame muito difícil.


Tem o lado terrível de se estar a prestar provas.

Constantemente a prestar provas. Constantemente. Os níveis vão sendo cada vez mais difíceis, muito mais difíceis. E isso é interessante. Mas isto não tem nada a ver com os quadros da Nossa Senhora. Fazer os quadros da Nossa Senhora representa um grande risco.


Porquê?

Porque são os quadros mais feitos da história da pintura. Aliás, não são os quadros mais feitos da história da pintura; não há muitos quadros sobre a vida da Virgem Maria. É tudo sobre Nosso Senhor, sobre Jesus Cristo. Mas é o assunto mais feito na tradição da pintura. E é ambicioso. Ver Nossa Senhora como uma mulher, que é o que ela era.


Foi sempre assim que a viu?

Nossa Senhora é uma pessoa a quem rezamos a pedir coisas.


Reza?

Então não rezo? Rezo, pois. Em pequeninos aprendemos a oração, e em alturas difíceis e penosas, a única coisa que nos resta é realmente a oração. É muito mais costume fazer-se a prece à Virgem Maria do que a Cristo. Ela é uma mulher e percebe as coisas melhor. [ A relação] é mais festejada na nossa cultura e na cultura dos países do sul.


O modo como Nossa Senhora é retratada aponta normalmente para o etéreo, como se não tivesse uma consistência humana.

Nem sempre. O Caravaggio pintou-a bem de carne e osso. Aquele quadro do Ticiano, quando ela sobe aos céus, com os braços levantados e o fato encarnado, é bem de carne e osso, não tem nada de insípido.Os pintores pós-renascentistas pintaram-na muito de carne e osso.O próprio Murillo, que deu de Nossa Senhora uma ideia mais lamecha, é um grande pintor.


Dizia também que não era quase nunca visível o terror que Nossa Senhora deve ter sentido quando foi visitada por Deus, através do Anjo. Porque havia uma diferença enorme no estatuto de um e de outro. Uma entidade tão poderosa como Deus aborda uma rapariga para lhe dizer que tinha sido escolhida para ser a mãe do Salvador.Uma imensa responsabilidade.

Foi pintado. Muitas vezes em Botticelli a Virgem está com as mãos levantadas, e o corpo mostra bem o medo. Eu não tencionei dar o medo. Tencionei dar a sensação em que a rapariga se vê, tão jovem e grávida. É uma situação desesperada e difícil, com uma responsabilidade enorme em cima.


No seu quadro ela parece incrivelmente jovem.

E era. Tinha doze anos, doze anos. Tirei a minha história da Virgem da «Lenda Áurea» [primeiro livro que narra a vida dos santos; os artistas da Renascença inspiraram-se imenso nele; conta o que é considerada a verdade histórica e também as lendas].Foi também daqui que tirei as histórias das santas que pus no painel da National Gallery [«O Jardim de Crivelli», 1991]. Como não tinha bem a certeza da história, fui ler a «Lenda Áurea».Na Bíblia há muito pouco sobre Nossa Senhora.


É extraordinário que o anjo que a visita seja uma mulher e que esteja grávida.

Não está grávida. O anjo tem a mão na barriga e diz à menina que ela está grávida. O anjo não está grávido, ou grávida.Foi assim que eu li o quadro. A barriga parece proeminente, como aliás em muitos, muitos outros quadros. Abundam as gravidezes. É esquisito porque os anjos não têm sexo.


Este é uma mulher.

É andrógino. Eu tenho de usar o que tenho à mão. O que tenho é o meu modelo favorito, a Lila [enfermeira de Viseu que posa desde há anos para Paula Rego]. O anjo tem de ser de carne e osso, não é? Afinal, apareceu com o corpo de uma pessoa. Usei a Lila, que é uma mulher, mas que está aqui bastante masculina; portanto, é um anjo andrógino.


Como é a Lila? Não me refiro à Lila que assume várias faces e que retrata nos seus quadros, mas à verdadeira espessura física da Lila.

É feminina, é uma mulher portuguesa. A Lila pode transformar-se em tudo, pode fazer um papel qualquer que se lhe peça. Tem esse talento, e eu consigo projectar sobre ela, utilizá-la para dar imagem às coisas que quero representar. E que ainda nem sei que quero representar.


Como é que o processo decorre habitualmente?

Sentei-me e fiz um caderno de desenhos com os quadros da Nossa Senhora, feitos da minha cabeça.


Só a partir da leitura da «Lenda Áurea»?

Exacto. Os desenhos que lhe vou mostrar são muito diferentes dos quadros. Depois, é preciso dar corpo a esses desenhos, de maneira a se verem melhor. Tenho de arranjar pessoas para representarem o que ali aparece feito directamente da minha imaginação. E nessa altura tem de haver uma compreensão, um comprometimento.


Há um encaixe entre a imagem concebida na sua imaginação e aquela que por fim é encenada e pintada?

Utilizando o modelo, nunca fica como o que tínhamos na cabeça.Mas dá-lhe um certo desconforto e isso é importante para fazer a imagem.


Esse desfasamento é também para que a pessoa que vê a imagem a complete, projectando-se nela?

Nunca penso na pessoa que vê a imagem. Nunca se sabe como é que o outro vê a imagem. Cada pessoa faz as suas histórias à volta daquilo que vê. Óptimo, não me importo nada. Mas ver uma coisa ao vivo e vê-la na nossa imaginação, são duas coisas muito diferentes. Também no desenho à vista a imaginação entra completamente.Estamos com a nossa imaginação a cobrir a figura, a transformá-la.Muitas vezes começamos a fazer com uma ideia e quando continuamos, muda, muda. Muda a figura, muda a ideia e muda a história. No fazer, leva-se a história para outro lado completamente diferente.É uma altercação constante.


E depois faz toda uma encenação, com roupas e adereços próprios, recriando no atelier o ambiente que quer passar para o quadro.

Põem-se os panos com a cor que se pretende, vestem-se as figuras.Faz-se como se fosse um teatro. Um teatrinho como se fossem as crianças a representar a história do Cristo no Natal. Foi uma das razões porque fiz o Cristo e a Nossa Senhora em meninos, porque podia muito bem ser uma festa de escola onde eles representam.Cá na escola fazem isso.


A Paula fez? Fez a primeira comunhão só aos 14 anos.

Nunca fiz a primeira comunhão.


Ah não? Li que tinha feito a comunhão no livro antológico do John McEwen.

Fiz, mas foi às escondidas.


O seu pai não queria que fizesse, não era?

Ele não achava bem. Naquele tempo, o ensino dito religioso tinha mais a ver com as convenções do que com a religião. Era muito pouco religioso. Era mais com o que parece mal, ou não parece mal. Nessa altura eu já andava na escola inglesa, onde havia padres irlandeses que ensinavam coisas.


O seu contacto com a religião aconteceu na St. Julians?

A minha mãe ia à missa. Lembro-me que ia à missa com a minha mãe. Ficava enjoada por causa do incenso. Antigamente as pessoas ficavam enjoadas na igreja por causa do incenso.


Mantinha fascínio por aquele universo, que é, justamente, um universo onde tudo é encenado, ritualizado? Os anjos, os altares, as pessoas a assistir, tudo muito composto.

Não gostava nada, não me impressionava nada. Até tinha um certo medo, tenho impressão. Mas não ia muito. O interesse pelas coisas religiosas, pelas histórias e isso, veio muito mais tarde.


É feminina, é uma mulher portuguesa. A Lila pode transformar-se em tudo, pode fazer um papel qualquer que se lhe peça. Tem esse talento, e eu consigo projectar sobre ela, utilizá-la para dar imagem às coisas que quero representar. E que ainda nem sei que quero representar.

Porque tinha curiosidade. Curiosidade em participar. Queria participar, queria participar no mistério.


Uma das coisas mais difíceis de compreender para uma criança é o mistério da hóstia consagrada.

Não é difícil, nada difícil, as crianças compreendem essas coisas muito bem.


Porque as crianças podem acreditar em tudo?

Há o mistério, a magia. Não sei bem explicar, já não me lembro.


Lembra-se com certeza, nessa fase, de Miss Turnbull, a professora na St. Julians que foi a primeira a reconhecer o seu talento e a encorajá-la.

Mas como é que se lembra disso tudo?


Porque é uma pessoa importante no seu percurso. Recorrendo novamente aos anjos, metaforicamente Miss Turnbull parece um anjo vingador que a resgata da terrível Dona Violeta, a professora que a preparou para ingressar na St. Julians.

A Dona Violeta é muito importante. Se tivesse de escolher uma professora favorita seria a Dona Violeta. A Dona Violeta, à sua maneira, fez-me tão bem como a Miss Turnbull. A razão porque fiquei a fazer bonecos tem tanto a ver com uma como com outra.Bem, a Dona Violeta ia merecer castigo para sempre... Isso também é uma razão boa para fazer coisas...


Nunca, nunca gostou dela?

Não. Ela metia tanto medo, com a camisola de angorá e aquele cabelo à 1940, aquela poupa, aquele rolo... Metia muito medo! A Miss Turnbull era o oposto: muito inglesa, com óculos, olhos azuis, os sapatos rasos, uma saia; não era bonita. Fazia os bonecos que tinha aprendido na escola de arte; tinha o curso e o treino da escola de arte inglesa, como ilustradora. E tinha esse «common sense», que não sei dizer em português porque não há essa palavra em português, e que é o terra-a-terra, que é uma coisa que aprecio muitíssimo. Eu sentia-me bem com ela, porque tinha confiança nela. Confiança. Ela não ia deixar-me ficar mal, no sentido de me trair... Era uma pessoa fixe!


Foi a primeira pessoa a reconhecer os seus desenhos. Mas a Paula pintou desde sempre. No livro de John McEwen, a sua mãe faz a seguinte descrição: «Lá estava ela constantemente a fazer um som nasal - hum, hum, hum - e eu sabia: A Paula está contente, está a desenhar. Ela continua a fazer aquele barulho e continua a desenhar no chão». Durante muito tempo, foi a sua posição preferida para desenhar. As pessoas à sua volta, os seus pais, a sua avó, a tia Ludgera, que reacção exprimiam face aos seus desenhos?

Nenhuma. Aquilo não valia nada!, não era nada! Ninguém me dizia «Olha que bonito». Agora é que se diz isso às crianças, «Ai que lindo, que lindo», e não é nada lindo. A minha mãe achava que não se devia estar sempre a dizer aos meninos «Ai que bonito, que bonito». Tinha toda a razão, toda. Nunca me disse essas coisas, nem pensar nisso. Eu fazia porque gostava.


E o seu pai, apreciava?

Não. Apreciavam-me a mim, como menina. E educavam-me bem. E isso é o principal. Apreciar os desenhos ou não apreciar os desenhos não tinha importância nenhuma.


Não?

Nessa altura não. Eu não era nada. Era uma criança, não tinha importância o que eu fazia.


Apreciavam o facto de ser bem educada, uma menina que sabia portar-se.Mas o desenho era o seu refúgio, o seu mundo. Portanto, apreciavam-na numa face polida para o exterior, e não no espaço onde se encontrava consigo mesma.

Não tinha nada a ver com eles o que fazia no papel! Não fazia para mostrar. Fazia porque me entretinha. A lengalenga do «Hum, hum, hum», dava-me um certo conforto emocional e físico. A lengalenga que se faz quando se está a fazer bonecos é sensual, tem um lado sexual. A criança quando se move e faz o boneco, risca o papel, experimenta um envolvimento total. Tem a ver com a criança, não tem nada a ver com os pais. Mais tarde na escola, quando se faz para mostrar, é outra coisa. O que é muito raro é combinar as duas coisas. Quando se vai para a escola e tem de se fazer os quadros para apresentar à professora, mesmo que a professora nos apoie na expressão do que queremos fazer, é muito diferente daquele brincar de quando se era muito pequeno. Quando fazemos coisas para mostrar, as princesas, as amendoeiras em flor, Roma a arder, essas coisas, é que interessa muito que gostem ou não gostem. Queremos que nos tomem a sério. E nessa altura, tinha sorte em não ter a Dona Violeta e em ter a Miss Turnbull. A Dona Violeta dizia que estava tudo mal feito e a Miss Turnbull encorajava o lado da imaginação.


A sua avó e a sua ama Luzia eram pessoas com quem se sentia muito bem.

Fiz um desenho da minha avó quando tinha nove anos que podia ter sido feito agora. Um desenho à vista, era tal e qual.


Há uma fotografia sua com a sua avó, quando tinha três anos, que transborda felicidade. Consegue recuar até essa altura? Quais são as memórias mais antigas que tem?

Dois anos e meio... Lembro-me muito bem do apartamento da minha avó na Rua Damasceno Monteiro, do quintal, onde tinham as galinhas e a capoeira, da cozinha. Lembro-me muito bem de quando fiquei lá com eles.


Ficou com eles quando os seus pais se mudaram durante um ano e meio para Inglaterra. O seu pai era engenheiro electrotécnico e foi completar um estágio à Marconi. Ficou com os seus avós e com a sua tia, que era dada a depressões.

E também com a minha tia-madrinha, irmã da minha mãe, de quem gostava muito.


Se exceptuarmos o seu avô, eram só mulheres.

E o meu bisavô.


O seu bisavô, ao que consta, participou no regicídio. É verdade?

Não. O meu bisavô era todo beato. Era extraordinariamente religioso e tinha no quarto um oratório enorme cheio de santos; escrevia livros de orações à mão. A minha mãe lia esse livro todas as noites. Era careca, tinha a cabeça rapada.


Asceta?

Não sei se não seria por causa dos piolhos... Sei que vivia num quarto ao fundo do corredor da casa da minha avó. Jogava à bisca com o irmão. O irmão, ah, como é que se chamava?, tirava a placa para fora! Gostava muito do meu bisavô, era carpinteiro.


Como Jesus.

Não como Jesus, porque casou com uma viúva rica. Foi o que nos safou. Ele ficou com o dinheiro dessa viúva rica. Este bisavô era pai do meu avô José Figueiroa Rego, da minha tia-avó Ludgera, e de muitas outras irmãs. Uma chamava-se Balbina. Já ouviu esse nome?


Já. No norte conheço senhoras antigas de nome Balbina. Nomes como Balbina e Ludgera deixaram de se usar. Bem como os nomes religiosos.

Agora são só os nomes das artistas de cinema?


Na minha geração há muitas Inês, Isabel, Marta. Entre as que são agora crianças há muitas Benedita, Beatriz, Carolina.

É por causa da Carolina do Mónaco?


Porque é que uma das suas filhas se chama Carolina?

Caroline. É um nome muito comum em Inglaterra. Não tem nada a ver com a Carolina do Mónaco!, nessa altura não havia a Hola!.Havia a Elle.


Via revistas femininas? A sua mãe era muito chique.

Gostava muito de se vestir. Víamos sempre o Jardin de Mode, que tinha uma secção para juniores. Os fatos eram desenhados, não havia fotografias.


Como eram escolhidas as suas roupas?

A minha mãe e eu escolhíamos juntas. E depois, a menina Francisca, que vinha trabalhar em nossa casa três vezes por semana, fazia tudo. A minha mãe cortava, fazia fatos fantásticos! A menina Francisca fazia as bainhas e chuleava.


Aí está outra palavra que deixou de se usar. A camisa que Nossa Senhora usa no quadro da «Anunciação»...

Está toda chuleada!


A camisa era sua, usou-a pelos doze anos.

Foi a menina Francisca que chuleou isso tudo. Mas o bordado não foi ela que fez; é bordado inglês comprado a metro no Ramiro e Leão ou no Último Figurino. Íamos a Lisboa às compras, de comboio, e eu adorava. A minha mãe punha o chapéu e arranjávamo-nos muito bem, com luvas e sapatos, e lá íamos para o Chiado. Tomávamos chá na Marques. A Bénard era mais chique, mas a Marques era muito confortável e tinha muito bons bolos. Eu tomava sempre um café glacé com bolas de berlim.


As bolas de berlim também faziam parte do ritual das idas ao cinema com a sua avó, para ver os filmes da Disney. O seu pai chegou a ter uma espécie de sala de cinema em casa.

Antes de casar tinha um cinema por baixo da casa da minha avó, na Rua Damasceno Monteiro. Projectava filmes para ele e para os amigos: Era uma sala privada, com cadeiras de cinema, com tudo o que deve ser. Só o vi quando já estava desmantelado. Ainda vi as cadeiras na Ericeira [onde a família tinha uma quinta; foi vendida já depois da morte do pai de Paula, durante os anos 70].


Chegou a brincar com bonecas de cartão às quais se acoplavam vestidos vários?

Ah, sim! Brinquei muito. Não só brincava como fazia fatos.


Imaginei isso, por causa da sua fase das colagens. (No início da sua carreira, e até à famosa série de bichos que pinta em 81, Paula Rego desenhava bonecos que recortava e colava sobre a tela).

Nunca me lembrei disso. É engraçado... Mas na colagem, cortamos a roupa aos bocados! E às vezes também se fazia isso nos fatos a sério.


Reportando à fase das colagens, há alguma relação entre isso e aquela coisa de miúda perversa...

De cortar os dedos às bonecas? Só cortei uma vez. Esse boneco devia ser dos primeiros de plástico; parecia carne. Lembro-me de terem dito «Olha que engraçado...». Os bonecos até aí eram rijos, este era mole Cortei-o porque era mole.


Não foi porque as pessoas à volta acharam graça ao boneco?

Não, não, o boneco era meu. Foi porque era mole.


É feroz, de qualquer modo. Não corta outras partes do corpo, mas sim os dedos das mãos. Numa pintora, assume redobrado significado.

Os dedos eram a única coisa saliente. As orelhas estavam coladas à cabeça. Os dedos dos pés também estavam juntos. A única coisa que saía, porque não tinha outra coisa que saía fora..., não havia outra coisa para cortar senão os dedos. E cortei um a seguir ao outro, não foram todos ao mesmo tempo.


Com requinte... Era um rapaz ou uma rapariga, esse boneco?

Um rapaz. Não tinha sexo, era um boneco. Eu queria ter a sensação da tesoura a cortar, a cortar. As crianças gostam muito de cortar.Também cortei um grande pedaço das cortinas da minha tia. Depois deitei a tesoura pela janela fora.


Cortar não é castrar, amputar?

Ah, isso não sei. Nessa altura não tinha essas ideias. Era um luxo poder cortar, porque não tínhamos licença para brincar com as tesouras. Pois. As meninas não brincavam com as tesouras. Se apanhava uma tesoura, queria logo fazer qualquer coisa, servir-me dela.


Houve sempre o contraste entre o comportamento exemplar da menina que ia para a sala de luvas e a menina que corta os dedos às bonecas.

Essas coisas, cortar os dedos às bonecas e isso, era completamente impulsivo. Não era rebeldia. Era muito jovem e não fazia coisas às escondidas - toda a gente via os dedos cortados. Não era de segredos nem nada disso. É bom, não é?


É. Quer dizer que não tem a noção de pecado. Adão e Eva só sabem que estão nus depois de comerem a maçã.

É exactamente isso. Se era um impulso, fazia porque apetecia. Não era aperreada. Não tive uma juventude muito aperreada. Era filha única e é sempre diferente de ter irmãos com quem brincar. Sempre me senti bem só, é um treino muito bom para ser artista - apesar de agora trabalhar com modelos. Mas tive uma meninice boa, boa, boa.


Aparentemente a sua infância e adolescência não têm nada de extraordinário, não há traumas, privações. Mas nos seus quadros há uma enorme explosão. Vai buscar imensas coisas às histórias que lhe contavam na infância. No fundo, vai continuando a lengalenga. Há uma ferocidade que não sei onde radica.

Não tem nada a ver. É o que está dentro de nós, é o que está em toda a gente.


Os nossos fantasmas?

Não, fantasmas não. É a natureza humana. A pessoa zangar-se e a pessoa ter raiva faz parte de ser pessoa. Não pode sair por outro lado, sai pelos quadros.


A psicanálise foi importante, não só para libertar essa raiva, mas também para lhe conhecer os contornos?

Nunca fiz propriamente psico-análise. Fiz psico-terapia, que é um bocado diferente. Fica-se com menos medo. Sermos nós próprios faz menos medo e menos vergonha. Vinte e tal anos. Volta e meia, ia lá. Era um senhor, um homem bom.


[Pausa para ligar o aquecimento e para uma coca-cola ligth. Paula diz que quer falar sobre Nossa Senhora]
O que é que gostava de dizer sobre Nossa Senhora?

Primeiro procurei os vários episódios da vida de Nossa Senhora.Faltou-me a «Visitação», a «Refeição em Canaã». [mostra vários estudos] Veja como são diferentes. Vê que não fica nada parecido? «A fuga para o Egipto». Passa-se na Ericeira, na minha quinta, com os eucaliptos, o anjo a abrir o portão lá em cima e a mãe a vê-la a sair, no burro, na mula.


Este anjo que abre a porta é a sua ama Luzia?

Não. A Luzia está lá dentro a fazer a comida. Este é o primeiro desenho para a «Natividade». Na história da «Lenda Áurea», José chama uma parteira, que se chama Salomé. E a parteira, quando vai ajudá-la, a mão engelha. E vem o anjo que diz: «Deixa. Quando nascer a criança, toca-a e a mão fica sã». Quando nasceu, ela tocou e a mão ficou bem outra vez.


De qualquer modo, no estudo, a atitude de Nossa Senhora é já a de uma parturiente. A posição é basicamente a mesma.

Pois então, a criança tinha de nascer! Este é a «Visitação» a S.João Baptista. Aqui é a «Adoração dos pastores». Está a ver aqui o Espírito Santo? [pomba] Esta é outra «Adoração dos pastores».Este é uma história inventada por mim: «A agonia no jardim».Cristo é abandonado pelos discípulos e está sozinho, antes de ser preso; fiz essa história com Nossa Senhora. Ela está sozinha, é uma menina e o anjo adormeceu.


Deixou de velar por ela?

Sim. Ela está muito aflita. Esta é a «Purificação no templo».A Sant'Ana, a mãe, leva duas pombas para a purificação no templo. Aqui está a «Lamentação debaixo da cruz», esta é a Madalena e esta a Nossa Senhora. Isto é uma «Pietà», outra «Pietà», esta é uma «Pietà» com o anjo a ajudar a descida da cruz. Isto é para mostrar como é que as coisas saem da nossa cabeça, a tentar descobrir uma imagem que não seja uma imagem já vista nos livros. Os quadros são muito trabalhados, e são apagados, e feitos outra vez, e feitos novamente, e completamente refeitos, etc, etc. Este é estudo da «Anunciação»: a minha neta e a Lila, com as asas. Tenho um monte! Uns deito fora, outros guardo. Não se pode guardar tudo.


Esse é o seu prazer, desenhar sempre? No fundo, é estar sempre a fazer. Fica angustiada se termina um e não tem outro começado.

Oh... Depois não tenho ideias, não sei o que é que hei-de fazer a seguir, é uma chatice. Estou sempre a perguntar às pessoas o que é que hei-de fazer. Leio histórias, leio contos tradicionais portugueses, Leite de Vasconcelos, que é o melhor, Teófilo Braga.Contos extraordinários, violentos, que nós temos e que nunca li noutra língua. Cortar as maminhas para dar de comer aos maridos, por exemplo. Cortar os seios e guisar, um e depois o outro.


Teve a sua primeira filha aos 20 anos. Como é que foi quando soube que estava grávida?

Já foi há tanto tempo... Engravidei sem querer, mas gostei muito de ter a minha filha. Muito. Gostei de a ter nova. Agora tenho cinco netas, tudo raparigas.


Quando veio para Londres, a pessoa responsável por si comentou que as meninas que iam para a Slade School of Art engravidavam.

Na Slade, as meninas engravidavam mas continuavam a pintar.Iam para lá com os meninos, punham o saco no sítio onde penduravam os casacos e iam para o atelier pintar. Ter uma criança naquela escola não era uma coisa especial ou esquisita. E o crescimento artístico continuava. Desde que tivesse algum dinheiro. Isso é que é o mais difícil. O meu pai sempre foi extremamente generoso e apoiante, tive essa sorte. E o meu marido era uma pessoa excepcional, que me ensinou muito de pintura. Fiquei a ganhar em todos os sentidos.


Como é que conheceu o Vic (Victor Willing)?

O Vic era um homem muito bonito e dançava muito bem. Jive.Muito bom pintor. Era mais velho que eu sete anos. Aprendi tudo com ele: de pintura, a não me ralar com muita coisa, a dar atenção a outras coisas.


Foi amor à primeira vista?

Não. Ele tinha barba e eu não gostava. Quando cortou a barba, vi-lhe a cara. A mãe dele dizia que a barba era como um ninho de aranhas a correr-lhe pela cara! Ficava-lhe muito mal.


Gostou logo de si?

Ele era casado. Se gostou logo de mim? Não sei se gostou logo de mim. Não falávamos dessas coisas. Gostas de mim?, Não gostas de mim?, quem é que dizia essas coisas? Ninguém. Eles falavam e eu ouvia. Falavam do que se passava em quadros e em filmes. Eu era muito envergonhada e não dizia nada. Não dizia nada mas ouvia. E assim, vai-se aprendendo muito.


Quando começou a fugir da Slade para ir para o cinema...

Ah, constantemente. Ia sozinha. Gosto de ir sozinha, de comer gelados e ver filmes.


É verdade que aprendeu mais no cinema do que teria aprendido na escola?

De certeza absoluta. No princípio, do que gostava mais era do título. A expectativa do filme é melhor do que o filme. Do fim não gosto nada, o «The End» é horrível. Mas o princípio, arrrrrrrrgggg, [rugir de leão], Metro Goldwyn Mayer, é o melhor.Nessa altura havia dois filmes e notícias e bonecos animados; estávamos no cinema quatro horas seguidas e pagávamos só um bilhete. Se quisesse podia passar o dia todo no cinema. Havia umas pessoas bêbedas que faziam isso. Eu via os filmes, e ia-me embora para outro cinema. Sair do cinema quando ainda é dia é uma sensação muito desconfortável. Parece que é o fim do mundo. Parece que se deixou tudo de bom dentro do cinema.


É sair do sonho e entrar na realidade?

Se calhar é isso. Mas não é sonho: é a história que outra pessoa nos contou. Ir para outro sítio, do qual não se conhece ainda a narrativa, é desconfortável. A narrativa é muito importante.


Para começar, o que se diz acerca de si e da sua pintura é que tem fascínio por contar histórias. Pintar é a sua forma de contar histórias.

É. É dar uma forma à vida. É uma forma de dar ordem à vida. Vamos falar de Nossa Senhora?


Continuemos então a ver as imagens.

Essa, [«Adoração do Menino»], é uma confusão muito grande .Passa-se na Índia, porque há um tigre. Não são os reis magos, mas os peregrinos. Vão a uma gruta onde aparece Nossa Senhora com o Menino Jesus, um templo de portugueses. Os marinheiros que foram para a Índia, alguns levaram as mulheres, que são muito devotas. Vão a esta gruta onde aparece Nossa Senhora. E a gruta é guardada por tigres, está a ver? Os tigres manifestam o seu apreço à Nossa Senhora. É uma história que inventei agora...


Gosto da ideia de serem peregrinos.

Os peregrinos também contam, não é?


Na «Purificação», Nossa Senhora tem uma flor no cabelo, parece incrivelmente jovem e tem um vestido de comunhão.

Tem toda a razão. Não é de propósito, mas calhou.


Aqui é a «Fuga para o Egipto».

O anjo é pesado, é um anjo-pessoa, que faz sombra.


Quem é que assiste à partida?

A mãe dela, a Sant'Ana, que a vê ir embora.


É uma representação da sua mãe?

O modelo foi a minha filha. Se é a minha mãe? É capaz de ser.


Lembrei-me dela por ser uma senhora chique. Não será uma fuga para o Egipto mas uma fuga para Inglaterra.

Foi você que disse, não eu! [risos]


Na «Lamentação», Maria Madalena aparece como uma prostituta moderna, com mini saia e botas altas. Não tem uma maquilhagem carregada nem uns cabelos horríveis como as prostitutas habitualmente têm.Pelo contrário, há uma suavidade no rosto dela.

Não pensei nisso, mas tem razão. Tenho muita simpatia pelas prostitutas. A maior parte das vezes são abusadas, vítimas da droga, vítimas dos homens que ganham dinheiro à sua custa, vítimas da sociedade que é completamente hipócrita. Defendo-as. Mas esta menina... Há um filme muito bonito chamado «Breaking the Waves», [«Ondas de Paixão», Lars von Trier]. Viu-o?


Esta menina é inspirada na figura da Emily Watson, a actriz que protagoniza o filme?

É. No filme, ela prostitui-se para criar o milagre que salva o homem que ama. No sofrimento dela, na humilhação dela, vem a salvação dele. Pensei que ela ficaria muito bem como Maria Madalena.


Chorou no filme?

Não, mas adorei o filme. Quando os miúdos começam a atirar-lhe as pedras... Gostei menos quando começam a tocar os sinos e se ouve o milagre. É um bocado óbvio. Mas do outro filme que ele fez, com eles todos nus a correrem pela casa, já não gostei nada.[«Os Idiotas»]


E o filme de um outro dinamarquês, onde se diz que «Ondas de Paixão» vai beber, «A Palavra», de Dreyer?

Esse nunca vi. Nem nunca vi a «Joana D'Arc». Ainda tenho à espera alguma coisa boa para ver! Esta é a Pietà, com o Orlando e a Lola [Lola é a neta, de 12 anos; Orlando é seu amigo, tem a mesma idade, mas parece mais novo]. A tristeza pelo filho que está aqui..., é como se ele fosse um menino. Para nós, os rapazes, os nossos filhos, são sempre meninos. É o menino da sua mãe.E por fim a «Assunção» da Virgem que vai para o céu nas costas do anjo.


Por que é que a Virgem tem um vestido escuro?

Nossa Senhora morreu com 73 anos, é preciso saber. Nessa altura, as pessoas usam fatos mais sóbrios. Não é preto, é cinzento escuro.


A ascensão aos céus, como momento de máxima purificação...

Vai ter com o filho.


O quadro da «Assunção», não sei se pelo vestido escuro e pelas asas do anjo, fez-me pensar na série das bailarinas avestruzes (1995). Que são as suas harpias - figuras mitológicas, metade ave, metade mulher, por quem sente fascínio. A propósito das avestruzes, disse na altura que elas tinham uma maldição à nascença: já nasciam grandes!

Nunca disse isso! Ah! Eu digo coisas de que nunca mais me lembro! Que eu invento tudo! E de cada vez que me perguntam, invento coisas diferentes. Mas não me lembro de ter dito que são grandes à nascença... Veja lá que imaginação! As pessoas nascem todas pequeninas, de um ovo! Coitadas das mães!


Eu não pensei nas mães; pensei que se nascem grandes, perdem a inocência da infância.

[gargalhada] Mas a inocência não depende do tamanho! É uma coisa muito complicada, é uma coisa para ser debatida pelos anjos e pelos filósofos. Mas palavra que nunca me lembrei das avestruzes quando fiz estes quadros da Nossa Senhora. A única semelhança que há é que é o mesmo modelo, é a Lila. E não é cómico, nenhum destes quadros é cómico. São feitos a sério.


Nas avestruzes havia um lado grotesco, e por isso cómico.

Com certa ternura. Mas nunca maldoso.


Nos seus desenhos, mesmo quando há coisas tremendas, nunca há maldade.

Nunca. Há maldade, mas não é essa de escárnio. Há outra espécie, fruto de vingança.


Como não gostar de uma mulher e pô-la com a língua de fora num quadro, para se vingar.

Pois, pois.

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